27.3.22

Giuseppe Ungaretti: "O notte" / "Ó noite": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti

 



Ó noite



O ansioso abraço da aurora

Desvela a folhagem.


Dolorosos despertares.


Folhas, irmãs folhas,

Ouço o vosso lamento.


Outonos,

Moribundas doçuras.


Ó juventude,

Um instante mal nos separa.


Altos sonhos, céus da juventude,

Livre arroubo.


E já deserto estou.


Perdido nesta curva melancolia.


Mas a noite dispersa as distãncias.


Oceânicos silêncios,

Ninhos astrais de ilusões,


Ó noite.










O Notte



Dall'ampia ansia dell'alba

Svelata alberatura.


Dolorosi risvegli.


Foglie, sorelle foglie,

Vi ascolto nel lamento.


Autunni,

Moribonde dolcezze.


O gioventù,

Passata è appena l'ora del distacco.


Cieli alti della gioventù,

Libero slancio.


E già sono deserto.


Preso in questa curva malinconia.


Ma la notte sperde le lontananze.


Oceanici silenzi,

Astrali nidi d'illusione,


O notte.






UNGARETTI, Giuseppe. "O notte" / "Ó noite". In:_____ Poemas. Seleção e tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017.

22.3.22

Ricardo Silvestrin: "Lixo sem luxo"

 



Lixo sem luxo


Ele sabe que será jogado 

na lata de lixo da história,

mas esperneia.

Tira de sua cabeça,

como um coelho morto

de uma podre cartola,

ideias sem serventia.

Os medíocres que o seguem

aplaudem sua iniciativa

e votam em assembleia

os dejetos que se transformam

em decretos.






SILVESTRIN, Ricardo. "Lixo sem luxo". In:_____ Carta aberta ao Demônio. Porto Alegre: Libretos, 2021.


16.3.22

Eugénio de Andrade: "Eu amei esses lugares"

 




Eu amei esses lugares



Eu amei esses lugares

onde o sol

secretamente se deixava acariciar.


Onde passaram lábios,

onde as mãos correram inocentes,

o silêncio queima.


Amei como quem rompe a pedra,

ou se perde

na vagarosa floração do ar.





ANDRADE, Eugénio de. "Eu amei esses lugares". In:_____ "Matéria solar". In: SARAIVA, Arnaldo (org.). Poemas de Eugénio de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

12.3.22

Antero de Quental: "Nocturno"

 



Nocturno


Espírito que passas, quando o vento

Adormece no mar e surge a lua,

Filho esquivo da noite que flutua,

Tu só entendes bem o meu tormento...


Como um canto longínquo – triste e lento –  

Que voga e subtilmente se insinua,

Sobre o meu coração, que tumultua,

Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...


A ti confio o sonho em que me leva

Um instinto de luz, rompendo a treva,

Buscando, entre visões, o etemo Bem.


E tu entendes o meu mal sem nome,

A febre de Ideal, que me consome,

Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!






 QUENTAL, Antero de. "Nocturno". In:_____ Sonetos. Edição organizada por António Sérgio. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1963.

9.3.22

Vasco Gato: "A mdmória"

 



A memória



A memória

do dia em que

o teu cão morreu

e entendeste que

a roupa da vida

não pára de encolher

há-de ser revisitada

até servir

de tecto ao coração.


A capela sistina

é uma manta de retalhos

e tu

dois dedos 

que jamais se tocam.







GATO, Vasco. "A memória". In:_____ Um passo sobre a terra. São Paulo: Corsário-Satã, 2021.

6.3.22

Marco Lucchesi: "Luz"

 



Luz



modula


a pupila


nas trevas


o raio


do poema



em sua


tão densa


luz





LUCCHESI, Marco. "Luz". In:_____ Clio. São Paulo: Blblioteca Azul, 2014.

4.3.22

Paul Valéry: "Le Sylphe" / "O Silfo": Nelson Ascher




O Silfo



Entrevisto e esquivo,

Eu sou esse aroma

Finado mas vivo

Que no vento assoma!


Entrevisto e incerto,

Acaso ou talento?

Mal se chega perto,

Concluiu-se o intento!


Entrelido e oculto?

Que erros, ao arguto,

Foram prometidos!


Entrevisto e alheio

Lapso nu de um seio

Entre dois vestidos!







Le Sylphe



Ni vu ni connu

Je suis le parfum

Vivant et défunt

Dans le vent venu !


Ni vu ni connu

Hasard ou génie ?

À peine venu

La tâche est finie !


Ni lu ni compris ?

Aux meilleurs esprits

Que d’erreurs promises !


Ni vu ni connu,

Le temps d’un sein nu

Entre deux chemises 





VALÉRY, Paul. "Le Sylphe / "O Silfo". In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998. 




1.3.22

Luís Miguel Nava: "Sem outro intuito"

 



Sem outro intuito



Atirávamos pedras


à água para o silêncio vir à tona.


O mundo, que os sentidos tonificam,


surgia-nos então todo enterrado


na nossa própria carne, envolto


por vezes em ferozes transparências


que as pedras acirravam


sem outro intuito além do de extraírem


às águas o silêncio que as unia.











NAVA,  Luís Miguel. "Sem outro intuito". In:______ Poesia completa1979-1994. Org. por Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002.