Rafael Martins observou um paralelo entre o poema do José Luis Hidalgo e o seguinte poema de Rilke:
Deus, que será de ti...
Deus, que será de ti, quando eu morrer?
Eu sou teu cântaro (e se me romper?)
A tua água (e se me corromper?)
Sou teu agasalho, sou teu afazer.
Vai comigo o significado teu.
Não tens mais sem mim aquela casa, Deus,
que com quentes palavras te acolhia.
Perdem teus pés exaustos as macias
sandálias: também elas eram eu.
De ti desprende-se o teu longo manto.
O teu olhar, que a minha face, quente
coxim acolhe, virá entrementes,
virá procurar-me longamente
e deitar-se depois, ao sol poente,
entre pedras estranhas, nalgum canto.
Deus, que será de ti? Tenho medo, tanto...
Was wirst du tun,Gott...
Was wirst du tun, Gott, wenn ich sterbe?
Ich bin dein Krug (wenn ich zerscherbe?)
Ich bin dein Trank (wenn ich verderbe?)
Bin dein Gewand und dein Gewerbe
mit mir verlierst du deinen Sinn.
Nach mir hast du kein Haus, darin
dich Worte, nah und warm, begrüßen.
Es fällt von deinen müden Füßen
die Samtsandale, die ich bin.
Dein großer Mantel läßt dich los.
Dein Blick, den ich mit meiner Wange
warm, wie mit einem Pfühl, empfange,
wird kommen, wird mich suchen, lange -
und legt beim Sonnenuntergange
sich fremden Steinen in den Schoß.
Was wirst du tun, Gott? Ich bin bange.
RILKE, Rainer Maria. "De O livro das horas". Poemas. Tradução e introdução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Cícero, os últimos posts fazem pensar numa antologia de "poemas ateus".
ResponderExcluirNão seria uma pesquisa linda garimpar esses poemas?
Sim, Fred, mas daria trabalho. Seria preciso garimpar mesmo, pois tais poemas ou trechos de poemas são normalmente ignorados, subestimados ou "interpretados" de tal modo que seu ateísmo desapareça.
ResponderExcluirCicero,
ResponderExcluirBelíssimo!
Um poema recente:
"um pouco"
queria outro
corpo
outra hora para outra
esperança
outra
paisagem
mudança
outro fim
de semana de luz
queria a luz
imensa luz
imensa verdade de
luz
outra estória
menos repetitiva
a mesma
estória
de quando eu era...
mas eu nunca fui
eu nunca passei por ela
eu nunca
tentei passar
por mim... outro
instante
rompendo o dia
outro
semblante conhecido.
outra vez
(eu
chorando aqui em casa
e ninguém
por perto) a vida,
essa quimera
corrosiva...
ai, a cicuta!
quem me dera e eu
queria
outra chance
de dizer aquele tempo
de dizer aquela vontade
de dizer
que era para estar
à espera de um ponto qualquer
e ...
era eu a cantar a existência
de tudo
e a querer
um único milésimo de segundo
para
perdoar as minhas faltas...
e era outro
a morrer em mim
enquanto me penso
enquanto
pondero
peso
espanto-me:
nada mais sou
nem ouso.
Você já garimpou belos exemplares por aqui...
ResponderExcluirabraço!
Lindo poema de Rilke!! Tão lindo quanto o anterior - de José Luis Hildalgo. Gosto dessa força.
ResponderExcluirAbraços.
Jefferson.
athanatoi thnêtoi, thnêtoi athanatoi, zôntes ton ekeinôn thanaton, ton de ekeinôn bion tethneôtes
ResponderExcluir"imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte destes, morrendo a vida daqueles" Heráclito.
Cícero, fosse para destacar Zôê e Bios, como ficaria a tradução?
Grande abraço.
Caro Climacus,
ResponderExcluirPara ser inteiramente sincero, acho que, no contexto, não tem sentido destacar zoê e bios, pois não vejo nele nenhuma oposição entre essas duas palavras. Você não estará caindo num anacronismo tipicamente agambeniano? Afinal, o substantivo “zoê” não é nem utilizado aqui. A expressão “zôntes ton thanaton” tem a forma de “zôntes ton bion”, que era muito comum. Na Odisseia 15,491 Homero diz: “zôeis agathon bion”. E a substituição de “bion” por “thanaton” é tipicamente heraclítica.
Abraço