Cícero, O texto é delicioso, como sempre. Mas, como eu gosto de gravura, chamaria a atenção também para a gravação, porque isso é uma xilogravura colorida feita com diversas impressões. Essas xilos não eram para reproduzir algo, mas para "captar a alma de coisas ou pessoas no papel". Assim, às vezes, um simples galho de bambu impresso numa folha de papel de arroz é intenso porque parece balançar ao vento. Essa que você postou é de uma série sobre o monte Fuji, que se vê bem ao fundo. Abraço, JR.
O poema abaixo, A Suposta Existência, é na minha opinião um dos mais lindos do mundo e penso que tem tudo a ver com as aulas de música e letra que você está dando no POP. Espero que você também goste.
Um abraço,
Eleonora
A Suposta Existência
de Carlos Drummond de Andrade
Como é o lugar quando ninguém passa por ele? Existem as coisas sem ser vistas?
O interior do apartamento desabitado, a pinça esquecida na gaveta, os eucaliptos à noite no caminho três vezes deserto, a formiga sob a terra no domingo, os mortos, um minuto depois de sepultados, nós, sozinhos no quarto sem espelho?
Que fazem, que são as coisas não testadas como coisas, minerais não descobertos - e algum dia o serão?
Estrela não pensada, palavra rascunhada no papel que nunca ninguém leu? Existe, existe o mundo apenas pelo olhar que o cria e lhe confere espacialidade?
Concretitude das coisas: falácia de olho enganador, ouvido falso, mão que brinca de pegar o não e pegando-o concede-lhe a ilusão de forma e, ilusão maior, a de sentido?
Ou tudo vige planturosamente, à revelia de nossa judicial inquirição e esta apenas existe consentida pelos elementos inquiridos? Será tudo talvez hipermercado de possíveis e impossíveis possibilíssimos que geram minha fantasia de consciência enquanto exercito a mentira de passear mas passeado sou pelo passeio, que é o sumo real, a divertir-se com esta bruma-sonho de sentir-me e fruir peripécias de passagem?
Eis se delineia espantosa batalha entre o ser inventado e o mundo inventor. Sou ficção rebelada contra a mente Universal e tento construir-me de novo a cada instante, a cada cólica, na faina de traçar meu início só meu e distender um arco de vontade para cobrir todo o depósito de circunstantes coisas soberanas.
A guerra sem mercê, indefinida prossegue, feita de negação, armas de dúvida, táticas a se voltarem contra mim, teima interrogante de saber se existe o inimigo, se existimos ou somos todos uma hipótese de luta ao sol do dia curto em que lutamos.
coisa liiiiiinda!
ResponderExcluirbjs,
F.
Cícero,
ResponderExcluirO texto é delicioso, como sempre.
Mas, como eu gosto de gravura, chamaria a atenção também para a gravação, porque isso é uma xilogravura colorida feita com diversas impressões.
Essas xilos não eram para reproduzir algo, mas para "captar a alma de coisas ou pessoas no papel". Assim, às vezes, um simples galho de bambu impresso numa folha de papel de arroz é intenso porque parece balançar ao vento.
Essa que você postou é de uma série sobre o monte Fuji, que se vê bem ao fundo.
Abraço,
JR.
super aflitiva essa onda-mão de garras afiadas...
ResponderExcluirOi Cícero,
ResponderExcluirO poema abaixo, A Suposta Existência, é na minha opinião um dos mais lindos do mundo e penso que tem tudo a ver com as aulas de música e letra que você está dando no POP.
Espero que você também goste.
Um abraço,
Eleonora
A Suposta Existência
de Carlos Drummond de Andrade
Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?
O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?
Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?
Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?
Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?
Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibilíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?
Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente Universal
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.
A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese
de luta
ao sol do dia curto em que lutamos.
De A Paixão Medida, 1980
Carlos Drummond de Andrade
não sequele
ResponderExcluirnão entre na onda erradamanifeste-se ofenda o próximochute a cabeça dos imbecismetaforicamente alcançará a epifania suicida quer morrer?
TSUNAMI
ResponderExcluirHokusai espera pacientemente
de sua desmedida cidade alucinada
que sua profecia poética pintada
sem excesso de cor se cumpra de repente
contempla em lótus de haraquiri
a divina montanha sem um pingo de neve
que também aguarda o tudo azul que a leve
enquanto sob ambos a turba nem aí
e lá vem o dia a tremer de morte
do pico do pagode enxerga quem salga
crescendo e cobrindo o cume do monte
chegando e ascendendo rumo à sua ilharga
até que apenas o espírito do mestre
soprasse por sobre a superfície dágua
Parabéns ao autor de Tsunami!
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