O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo", no sábado, 15 de maio:
A HISTÓRIA da filosofia clássica -e, em particular, da metafísica- ocidental pode ser entendida como o desenvolvimento gradual de uma crítica radical, feita pela razão, à autoridade tanto da tradição quanto do carisma. Descartes, por exemplo, como dizia Alexandre Koyré, preparou "a mais formidável arma de guerra contra a autoridade e a tradição". Kant afirmava que absolutamente tudo devia ser submetido à crítica, sob pena de perder a credibilidade.
Ora, quem acredita nas narrativas de intelectuais "pós-modernistas", como Foucault, Derrida, Deleuze ou Agamben, supõe que os filósofos clássicos e, sobretudo, Descartes produziram um pensamento conservador e repressivo.
Penso que, em grande parte, isso se deve à influência de Heidegger. É verdade que Deleuze não se refere tanto a ele quanto os outros acima citados, mas, ao tentar liquidar o conceito de sujeito, ele prossegue o gesto de Heidegger, como observa Agamben, para quem "a história das relações entre Heidegger e Deleuze -também via Blanchot, trâmite de muito heideggerianismo inconsciente na filosofia francesa contemporânea- ainda tem que ser feita".
Foi através de intelectuais franceses que Heidegger readquiriu, e até superou, seu prévio prestígio intelectual. Paradoxalmente -mas também compreensivelmente-, em parte isso talvez tenha a ver justamente com o feroz anticartesianismo do seu pensamento.
Suponho que não sejam poucos os estudantes franceses que se sintam oprimidos e enojados pelo consenso nacional e secular em torno de Descartes e pela obrigação de conhecer de trás para a frente as "Regras", o "Discurso", as "Meditações", os "Princípios". Heidegger os vinga, pois acusa Descartes de ter inaugurado a metafísica moderna da subjetividade.
Segundo Heidegger, a partir do cogito, de Descartes, o "eu" humano torna-se o único sujeito, para o qual todas as demais coisas são reduzidas a objetos. Concebido como autoconsciência, o sujeito é interiorizado e fechado, ou oposto ao mundo, exceto na medida em que este lhe possa ser instrumental.
Para Heidegger, essa instrumentalização do mundo, em que todas as coisas e, em última análise, os próprios seres humanos viram meros dispositivos, manifesta-se tanto no mundo terrorista do socialismo real e do nazismo quanto no que considera a desolação espiritual dos EUA.
Mas me parece que o namoro desses intelectuais franceses de esquerda com Heidegger tem, mais ainda, a ver com o fato de que, dadas as revelações sobre os regimes terroristas de Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot etc., e dado o colapso da União Soviética, tenha-lhes parecido preferível abandonar de cabeça erguida o marxismo, trocando-o por um modo de pensar pretensamente ainda mais radical do que ele.
Com certeza, a filosofia de Heidegger lhes pareceu pelo menos tão capaz quanto a de Marx, tanto de diagnosticar (mas com maior "profundidade") a realidade (tida por eles como insuportável) do mundo capitalista e liberal em que vivemos, quanto de desprezá-la.
Além disso, é possível, com Heidegger, desdenhar (mas, igualmente, com argumentos mais "profundos") não só o que, desde o marxismo, esses intelectuais, em maior ou menor medida, já haviam considerado como o embuste da democracia, dos direitos humanos etc., mas também o humanismo, o conceito de homem, de sujeito, a razão.
De fato, Heidegger, por meio de um de seus famosos passes etimológicos, chega a tentar relativizar o conceito de razão ("ratio"), tal como empregado pela tradição filosófica, considerando-o como mais superficial do que o seu sinônimo alemão, ("Vernunft"), com o argumento infame de que este, derivado do verbo "vernehmen", "escutar", seria mais "auscultante" do que aquele...
A desqualificação da tradição filosófica não poderia mesmo deixar de se acompanhar de uma desqualificação da razão, uma vez que essa tradição consistiu exatamente no desdobramento da razão ao ponto máximo de sua ambição. Em Deleuze, Foucault e Derrida, o irracionalismo de esquerda é ainda envergonhado e não ousa dizer o seu nome.
Mas hoje, com Alain Badiou, por exemplo, ele é descarado. Vitalista, voluntarista e fideísta, como convém a um irracionalista, Badiou, emulando o apóstolo Paulo, prefere os acontecimentos milagrosos à racionalidade, a verdade dogmática à argumentação, a fé à razão.
E, segundo seu camarada Slavoj Zizek, "a força incomparável do pensamento de Badiou supera de longe tudo o que se publicou na França nos últimos anos". Pobre França!
mas, Montaigne também era francês, bem francês...
ResponderExcluirSeria ótimo que pudéssemos resolver tudo com tanta facilidade! Irracionais de um lado, paladinos da razão do outro. Infelizmente, não é possível. A filosofia contemporânea sofre de um transtorno-bipolar semelhante ao da física atual. Fique somente coma razão e você vai ter de dizer que os índios tem um pensamento pré-lógico, ou que a cultura ocidental e superior a do oriente. Vá para o outro lado, e se verá defendendo a infibulação praticadas em algumas sociedades muçulmanas... Mesmo assim, parabéns pelo artigo.
ResponderExcluirCaro Cícero
ResponderExcluirO seu texto diz coisas que eu não entendo e portanto não posso comentá-lo mas gosto muito de ouvir e ler essas coisas que dão a medida de minha ignorância. Abraço
Paulo Henrique,
ResponderExcluirDesculpe, mas não entendi o seu comentário. Sim, Montaigne era francês, bem francês: e daí?
Anônimo,
ResponderExcluirO pior etnocentrismo concebível é pensar que a razão é privilégio do "Ocidente". A razão não pertence a nenhuma cultura particular. Ela é universal. E também a irracionalidade e o irracionalismo podem ocorrer em qualquer cultura. Aliás, os exemplos que estou criticando no artigo ocorrem no "Ocidente".
Alain Badiou, foi acusado por você de ser de "vitalista, voluntarista e fideísta". Vai ver que é. Mas tire o fideísta é o rótulo serve também para Nietzsche. Aliás, Nietzsche é o Grande Ausente do seu texto. Heidegger, inclusive, foi um grande leitor do filósofo. Nietzsche não é o mestre fundador das pessoas que você chama de irracionalistas?
ResponderExcluirhá de fato um istmo de bagagem cultural entre mim e vc intransponível, então, dá um desconto se eu tiver pagando mico, ok? rs
ResponderExcluirando lendo justamente derrida, agamben e foulcaut (na verdade, tentando lê-los...).
e me considero de esquerda.
mas como repudio a irracionalidade, acredito q devo ter cuidado ao ler tais autores.
quando vc diz "Em Deleuze, Foucault e Derrida, o irracionalismo de esquerda é ainda envergonhado e não ousa dizer o seu nome.", esse irracionalismo seria apenas o desprezo pela democracia, pelos direitos humanos, enfim, pelos avançoes que o liberalismo democrático possibiltou, ou há algo mais que eu deva prestar atenção?
um abraço.
Anônimo,
ResponderExcluirPrimeiro, a pior das três características, para mim, é justamente a de fideísta, que é a mais diretamente irracionalista, e ligada ao milagre, ao dogma e, evidentemente, à fé. É por estarem associados ao fideísmo que o vitalismo e o vitalismo se tornam desprezíveis.
Segundo, enquanto Nietzsche foi um pensador reacionário porém original e grandioso – embora, como sempre digo, mais poeta do que filósofo –, Badiou é um pensador de segunda. Nietzsche, como diz Domenico Losurdo, é “o maior pensador dos reacionários e o maior reacionário dos pensadores”. Badiou é o mais fraco dos panfletários radicais e o mais radical dos panfletários fracos.
Nobile José,
ResponderExcluirVocê não está pagando mico nenhum.
Há mais do que o desprezo pelos direitos humanos etc., porque esse desprezo já repousa num desprezo pela racionalidade. Leia, por exemplo, neste blog, o artigo http://antoniocicero.blogspot.com/2009/05/foucault-e-o-fundacionismo.html.
Prezado Cícero,
ResponderExcluirao responder ao "Anônimo", você afirmou que a razão é universal e não pertence a nenhuma cultura particular. Mas, no artigo, há uma frase sua que é a seguinte:
"a desqualificação da tradição filosófica não poderia mesmo deixar de se acompanhar de uma desqualificação da razão, uma vez que essa tradição consistiu exatamente no desdobramento da razão ao ponto máximo de sua ambição."
Se entendi bem (e isso, evidentemente, não tomo como certo), embora a razão não seja privilégio do Ocidente, é na tradição filosófica ocidental que ela atinge o ponto que lhe dá a capacidade de se tornar um instrumento indispensável da crítica, etc. As perguntas são:
1) a "razão" pode ser universal enquanto uma capacidade humana (mais ou menos vaga), mas ela parece ter essa forma histórica bem determinada que é ocidental, não é?
2) é possível desvencilhar essa constatação (se é que você concorda com a pergunta anterior) de um etnocentrismo cultural? Afinal, ao tomarmos a "razão" tal como ela se configurou no Ocidente, não carregamos inevitavelmente com ela toda uma série de valores, costumes, instituições etc, que são "nossas", mas que usamos para julgar e avaliar outras culturas?
Antes de concluir, antecipo que não acho um eventual etnocentrismo em torno da razão, tal como você a concebe, nenhum crime, muito pelo contrário. Nesse sentido, as perguntas que fiz tem mais o intuito de retirar algumas noções do index que a pós-modernidade relativista criou para o pensamento.
Um abraço.
Prezado Cícero,
ResponderExcluirli além deste, o post seu "a ressurreição do apóstolo Paulo" (03/10/2009). Segundo depreendi, concluo que os filósofos citados não são seguidores desse apóstolo. Pensam compreendê-lo, contudo, sendo ignorantes, acrescentam mais má fama ao apóstolo.
Filósofos consagrados como Nietzsche soçobram em sua crítica ao apóstolo, pois desconhecem o plano de entendimento que as cartas paulinas se destinam, bem como a gramática simbólica da Bíblia e a concepção lógica de seu uso. Os destinatários são chamados de santos, ou em transição para santo, denominação nada assemelhada com a titulação dada pela igreja católica.
Tais santos têm desperto faculdades cognitivas de ordem mais elevada, por isso não davam inteligência às palavras bíblicas em sua forma crua, antes desdobravam-se em outro plano de inteligência, pois o referente dizia respeito às coisas da dimensão nova de consciência que lhes desabrochou (fenômeno ontogenético testemunhado pela espiritualidade autêntica que se desenvolveu em lugares diversos deste planeta, contando com reduzidíssimo público, historicamente identificado como budismo esotérico, hinduísmo esotérico, sufismo e outros).
Essa abertura para uma nova consciência é que permite a dialética bíblica de um “mundo condenado e sua sabedoria louca”, que é estágio de consciência que se superou, superação que requer uma extrema disciplina interior. Sendo o “mundo condenado” estágio de consciência a se superar, - também identificado universalmente pela espiritualidade autêntica como estágio dual ou dualidade - Paulo se dirige aos seus discípulos coríntios, pessoas históricas, que ainda não tinham alcançado a condição de santo, nestes termos (1Coríntios, 6:2):
“Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser julgado por vós, sois, porventura, indignos de julgar as coisas mínimas?”
Esse "saber do mundo condenado” é que produz o conceito de deus como um Outro apartado de nós, de existência negativa ou positiva, sendo a positiva o mote da "religiosidade" tradicional, e de ateístas tradicionais a existência negativa.
O conceito de deus de Paulo em Atos, cap. 17, diante dos atenienses, sepulta esse tipo de entendimento e subordinação à qualquer forma de religião organizada e dogmática, ou de um deus irado impondo peso aos ombros humanos. O deus da religiosidade tradicional cristã já estava morto pelo evangelho paulino, muito antes do advento de Nietzsche.
Então, como compaginar as cartas paulinas com o seu conceito de Deus do cap. 17 de Atos?
Primeira ressalva a destacar é que as cartas de Paulo são um tratado do psiquismo humano em estágio mais avançado ontogeneticamente. Termos como Deus nelas presentes não se prestam para conceituação do que seja Deus. O público a quem as cartas se destinam não vive esse imbróglio ingênuo de conceituação de Deus, pois esse é exercício da razão ordinária. Quando emerge a razão extraordinária, essa dúvida se dissipa, nem deus se encarna mais em um Outro.
É essa razão extraordinária que está presente nos santos, cuja vocalização do que seja Deus seria muito confundida com o monismo. Quem tem a razão extraordinária sabe que a razão ordinária jamais pode compreender o que ela contempla, por isso a declaração paulina:
1Co 1:23 mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gregos.
1Co 2:14 Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.
Porém, esse tema acho que não é pertinente ao tema do post. Mas expondo melhor a faceta do apóstolo, fica-se claro que poucos filósofos podem tomá-lo como seu modelo de inspiração.
Cícero, seu blogue é muito fecundo. Um grande abraço.
Espero críticas de todos os leitores. Acrescenta? Conturba? Inútil? Por quê?
Flávio Santos
Caro FTB,
ResponderExcluirVocê faz a seguinte pergunta (retórica):
1) a "razão" pode ser universal enquanto uma capacidade humana (mais ou menos vaga), mas ela parece ter essa forma histórica bem determinada que é ocidental, não é?
Não concordo. A razão consiste em primeiro lugar na crítica, isto é, na separação, isto é, na negação. É a crítica que torna possível, por exemplo, a produção da linguagem. Esta, por sua vez, potencializa a própria a crítica. Pois bem, a razão se desenvolve ao criticar ou negar em primeiro lugar a própria cultura do povo em que ela – a razão – se manifesta. O ser humano é tanto mais racional quanto mais é capaz de criticar a cultura em que foi criado e, portanto, de se separar dela.
É por isso que a razão se manifesta com mais força onde não há uma cultura única dominante, como na Grécia, que era um conjunto de polis situadas em parte no extremo oriente da Europa, em parte na Ásia Menor (extremo ocidente da Ásia) e em parte em ilhas entre a Europa, a Ásia e a África. Longe, portanto, de ter sido a força da cultura grega que desenvolveu a razão na Grécia, foram a influência, o atrito e o desgaste recíproco das mais diversas culturas que permitiram a formação de áreas de manobra em que se desenvolveu a razão crítica e universal na Grécia.
O mesmo aconteceu na Europa renascentista. Quando Montaigne, por exemplo, em nome da razão, critica a França, a Europa, a Cristandade etc., comparando-as desfavoravelmente a outras culturas, inclusive à dos índios brasileiros, ele está, enquanto indivíduo portador da razão, a se separar da França, da Europa, da Cristandade etc.: ele está, a partir da razão, a relativizar a cultura ocidental, que é a cultura em que foi criado.
E esse tipo de coisa não ocorreu apenas no “Ocidente”. O economista indiano, detentor do Prêmio Nobel, Amartya Sen, mostra que, por exemplo, no século VII, o imperador Mugal da Índia, Akbar, prestando atenção à diversidade religiosa – cultural – dos indianos (hindus, muçulmanos, cristãos, jains, sikhs, parsees, judeus etc.) estabeleceu os fundamentos da neutralidade religiosa e do secularismo do Estado, decretando que “ninguém pode ser importunado por causa de religião e qualquer um tem o direito de mudar para a religião que quiser”. Segundo Akbar, “o progresso da razão”, e não a “confiança na tradição” era o caminho para enfrentar os problemas sociais. Para Akbar, não se pode subordinar o raciocínio à ordem religiosa, ou confiar na “terra pantanosa da tradição”. A razão, dizia ele, tinha que ser suprema porque, mesmo ao discutir a validade da razão, temos que dar razões.
2) Como não concordo com a pergunta (1), a pergunta (2) não se aplica. Não tomamos a razão “tal como ela se configurou no Ocidente”, mas como ela se manifesta CONTRA as culturas particulares, ocidentais ou não. A crítica efetuada pela razão às mais diferentes culturas, não pertencendo ao “Ocidente”, não pode ser considerada etnocêntrica.
Se quiser ler mais sobre isso, você encontrará, neste blog, alguns artigos, como
“Entrevista à revista Azougue”, em
http://antoniocicero.blogspot.com/2008/09/entrevista-revista-azougue.html;
“Comentário de Lucas e resposta”, em
http://antoniocicero.blogspot.com/2007/04/comentrio-de-lucas-e-resposta-ele.html;
e
“Sobre o roubo da história”, em
http://antoniocicero.blogspot.com/2008/11/sobre-o-roubo-da-histria.html:
Abraço
De fato, eu entendo razão de um modo diferente. Antes era Deus; agora é a razão. Logo, logo teremos auspiciosas religiões racionais. Só falta determinar quem é, com efeito, o deus da Razão.Eu sugeriria o Deus Logos. Em nome da razão já foram engendradas inúmeras guerras; agora novas batalhas epistemológicas, nas quais a arma menos usada é essa tal da razão. Em nome da razão, usamos discursos evasivos, falaciosos e irracionais. Ó que bela contradição!
ResponderExcluirCaro Cícero,
ResponderExcluirna minha postagem anterior, a qual ainda aguarda moderação, expus parcialmente o entendimento que tenho do apóstolo Paulo. Porém, falta nela algo mais palpável que atenda a nossa razão tradicional de prova de coerência.
Afirmei que a espiritualidade autêntica classifica como estágio dual ou de presença de dualidade no estágio primário de consciência que deve ser superada, e que na carta paulina correspondia ao "mundo condenado e sua sabedoria".
Pois bem, como a Bíblia emprega uma linguagem de formalidade mítica (aí reside o desastre maior!), de conteúdo simbólico, Paulo, ao se referir à superação da dualidade, o faz também mediante simbolismo, como em Efésios, 2:13-16 (versão de João Ferreira de Almeida, revista e corrigida, 1995). (Entre colchetes apontamentos meus):
"13 Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, {já} pelo sangue [verdade] de Cristo chegastes perto.
14 ¶ Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos [dualidade] {os povos} fez um; e, derribando a parede de separação que estava no meio,
15 na sua carne, desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, {que consistia} em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois [dualidade] um novo homem, fazendo a paz,
16 e, pela cruz, reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades. "
Entre o mestre Paulo e seus discípulos sabia-se decodificar o mito da crucificação de Cristo como transcendência de consciência, tudo dizendo respeito ao âmbito psíquico. E o mito da crucificação não se representava somente por figura humana, mas também por cordeiro naqueles tempos, como prova a denominada Epístola de Barnabé, apócrifa.
O tema da dualidade e sua superação é explicitamente simbolizado em diversas partes da Bíblia, sendo que os órgãos pares humanos se prestam muito a isso, como em Mateus 5:29:
"Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti, pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que todo o teu corpo seja lançado no inferno."
Cícero, a Bíblia lida em sua forma crua é terrivelmente devastadora para a humanidade, pois está vertida em linguagem formalmente mítica. E a maioria da humanidade permanece ainda no estágio mítico de consciência, base maior de manifestação de religiosidade organizada, e que escandaliza os ateus tradicionais. Por isso, para a base mítica, sua leitura é de associação direta, literal. Não tem desperto a faculdade de intermediação para auscultar mensagem de plano mais elevado de consciência que está encartada sob o simbolismo. Assim, a Bíblia é tanto maldita como igualmente surpreendente.
Atenciosamente, Flávio.
pegando um gancho no que o wilson disse, já existem religiões que se dizem "racionais" e "científicas". ao contrário do catolicismo e do protestantismo (só para delimitar as predominantes no brasil), que afirmam a importância da fé, e portanto, da crença em dogmas, o espiritísmo delas se destaca, pois afirma estar do lado da razão. os epíritas crêem que sua doutrina é científica.
ResponderExcluiresse debate sobre irracionalidade é sempre benvindo, até porque, em ano de comemoração de chico xavier, essas "crenças científicas" retornam com uma força impressionante.
vejo pessoas que considero inteligentes defendendo, por exemplo, o uso de material psicografado como prova em processo penal (como já ocorreu no brasil no século passado).
quando argumento que o Estado deve repelir crenças religiosas, os espíritas argumentam que nesse caso, não se trata de religião, mas de fenômenos cientificamente comprovados... aí não dá, né?
mudando de assunto, vc acha cícero que a psicanálise é a razão que opera o irracional, ou ela já parte de premissas irracionais?
A VERDADE AD HOC E A VERDADE FUNCIONAL
ResponderExcluirEu compreendo verdade ad hoc, como uma verdade tout court para isso. Apropriar-se de uma verdade ad hoc não me parece muitas vezes justificável à luz da razão. É verdade que 2 x 5 = 10, mas não é verdade que toda a matemática é necessária. É verdade que A = A -- mas não é verdade que se aplicarmos o zero ao A, que será também verdade.
Nietzsche é mais poeta que filósofo... E lá vamos nós. Todas as tolices, infantilidades e bobagens de Nietzsche vão passar por essa estreita porta! Pelo menos agora não se culpa a irmã. Nietzsche foi filólogo e é considerado um dos maiores prosadores da língua alemã. Quer dizer, ele sabia exatamente o que estava escrevendo. Provavelmente tinha um controle muito maior sobre o seu texto do que eu ou você temos sobre as nossas garatujas. Então porque foi misógino, elitista, desalmado, fanfarrão insuportável, antidemocrata, etc., como foi? Porque assim quis. Ele certamente morreria de rir dos contorcionismos hermenêuticos que fazem em seu nome. Tudo isso é muito complicado! Os pecados de Marx (e também de Freud) são creditados a sua pouca ou nenhuma cientificidade. Já as odiosas tolices de Nietzsche são perdoadas por ser um poeta e não um filósofo. Bom, assim é o mundo. Resignemo-nos!
ResponderExcluirSr(a) anônimo:
ResponderExcluirAh, quero ver pelas "estreitas portas do poeta", fenda, porta estreita, rasgo para o novo, que mete muito medo, e o nome que se dá a isso, pouco importa, ah, as delícias que há, pela porta que dependendo do ponto de vista, é porta aberta, é descoberta!
Amado Cicero,
ResponderExcluirsempre esclarecedor, farol!
Abraço imenso,
Adriano Nunes.
Flavius,
ResponderExcluirdesculpe: só hoje caiu a ficha de que ainda não tinha postado seu primeiro comentário. Pensei que já o tivesse feito há muito. Ele agora está lá.
Abraço
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirnietzsche tem coisas belíssimas. melhor: bélissimas, com a tônica deslocada, pois sua beleza não raro nos agride e nos chama ao "combat spirituel aussi brutal que la bataille d´homme" (rimbaud).
ResponderExcluireu o li quando era muito novo, e ele me perturbou profundamente: não necessariamente para além do bem e do mal; mas para o bem e para o mal...
gosto muito de sua poética encantadiça, de sua inteligência crítica demolidora e de sua potência argumentativa. gosto principalmente de sua ideia (que o gullar hj repete e repete com razão) de que a vida, cara, a vida é invenção! de que quase nada do homem é inato e nada é investidura/condenação divina, mas invenção.
gosto da ideia do homem artístico em substituição ao homem teológico ou iluminista. a ideia de que - nas palavras de um comentarista de sua obra cujo nome agora me falta -, na possibilidade de vivermos o eterno retorno (voltarmos sempre a viver a mesma existência), devemos transformar nossas vidas numa obra de arte; pespegar-lhes o "selo da eternidade".
mas ele realmente escreveu coisas odiosas.
quando ele arrisca alguma filosofia política, quase sempre é uma piada de mau gosto.
e creio que ele jamais conseguiu matar deus. lembro-me de um livro do graham greene em que o personagem principal diz algo como: "deus tem estranhas maneiras de provar que existe. ele sempre consegue mais uma vez reafirmar sua existência, ali mesmo, no ódio dos céticos". ou algo assim...
creio que um outro homem, sem nenhum ódio especial, esse sim, matou deus: darwin e seu "a origem das espécies". deus não é citado uma única vez!
nietzsche, que tantas vezes foi tido como um pensador revolucionário(e de fato foi brilhante e originalíssimo), era um incrível passadista, alguém que queria restaurar o homem trágico e glorioso que acreditava ter existido na grécia antiga até o aparecimento de sócrates...
mas o que mais me incomoda em nietzsche é a constante pose de desprezo diante da generosidade. não estou falando da caridade cristã mais vulgar (da piedade moralista, assustadiça e interessada); penso na verdadeira generosidade, na generosidade que muitas vezes nos redime, na generosidade que, contraditoriamente, é possível entrever em vários dos belíssimos momentos de sua obra...
Descartes
ResponderExcluir"Não há
no mundo nada
mais bem
distribuído do que a
razão: até quem não tem tem
um pouquinho"
Cacaso
Oi Cicero, você não vai responder ao Tuffani?
ResponderExcluirhttp://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2605201008.htm
Abraço,
edg
Edson,
ResponderExcluirsim. Deve sair sábado a resposta.
Abraço
Olá Antônio,
ResponderExcluirEu acho enriquecedor o debate filosófico empreendido por vc em sua coluna e logo a seguir, a resposta crítica ao seu artigo pelo Tuffani. O que não pode, ao meu ver, é cair em pormenores filosóficos sobre a racionalidade contemporânea na qual todos sabemos, perpassa por terrenos movediços e instáveis nos dias de hoje.
Mas espero que vc responda a contento aos questionamentos do Tuffani no sábado.
Abraço
GOSTARIA DE CONHECER O BLOG DO FLAVIUS. OBLOG DE CÍCERO ESTÁ NOS MEUS FAVORITOS.
ResponderExcluirQUANTO MAIS O LEIO,
SEI QUE NADA SEI.
RECONEÇO O MEU DESCONHECIMENTO.
EXCELENTE PASSAR POR AQUI. PELOS TEXTOS E COMPLEMENTOS INTELIGENTES: OS COMENTÁRIOS.
OBRIGADA POR SOCIALAR O SEU CONHECIMENTO.
MARINA