O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 21 de março.
A ética e a religião
EMBORA TALVEZ já se tenha falado até demais sobre o episódio da excomunhão da mãe que autorizou o aborto da filha de 9 anos estuprada pelo padrasto, bem como dos médicos que a fizeram abortar, quero ainda chamar atenção para uma coisa. É que a condenação quase unânime, pela opinião pública, tanto ao arcebispo que anunciou a excomunhão quanto à Igreja Católica foi de natureza moral.
Em outras palavras, considerou-se, de maneira geral, que a Igreja estava moralmente errada ao condenar esse aborto; ao dar mais importância à sobrevivência do feto do que à vida e ao bem-estar da criança de nove anos; ao excomungar a mãe, que pôs a vida e o bem-estar da filha que ama acima da vida do neto ainda nem sequer nascido, e concebido em circunstâncias traumáticas tanto para ela quanto para a filha; e ao excomungar os médicos que agiram segundo a sua ética profissional e de acordo com as leis do país. Ora, é evidente que essa condenação moral à Igreja não é de origem religiosa.
Pois bem, as religiões se consideram a fonte de toda ética. É assim que, sempre que a imprensa destaca seja um crime hediondo, seja o aumento dos índices de criminalidade, seja um episódio de corrupção de políticos, os moralistas religiosos aproveitam para se manifestar na imprensa. Em artigos ou cartas de leitores, eles apontam, como a causa da proliferação de tais acontecimentos lamentáveis, o descaso contemporâneo de grande parte da população pela religião e, consequentemente, pelos valores cristãos.
Ultimamente esse descaso tem sido associado – quando não atribuído – ao relativismo. O exemplo foi dado pelo cardeal Ratzinger que, às vésperas de se tornar o papa Bento 16, advertiu que "estamos a caminho de uma ditadura do relativismo que não reconhece coisa nenhuma como certa".
Supõe-se, assim, que uma pessoa que ache, por exemplo, que não há certo ou errado absolutos, mas que tudo depende da cultura a que cada qual pertence, relativiza, ipso facto, as regras morais e as leis que imperam na sua própria cultura, o que lhe torna mais fácil contemplar a violação dessas regras e leis.
Digamos que isso seja verdade. Dado esse "diagnóstico", o "remédio" prescrito pelos moralistas é, evidentemente, a volta às "certezas absolutas" da religião. Mas isso é impossível, pois as "certezas absolutas" das religiões caíram exatamente porque jamais foram realmente indubitáveis.
Não é possível racionalmente voltar para aquém do relativismo. O relativista cultural, por exemplo, sabe que foi por uma série de circunstâncias aleatórias que ele veio a ser, digamos, cristão; sabe, portanto, que, se tivessem sido outras as circunstâncias, ele teria sido, talvez, muçulmano ou budista. Basta-lhe saber isso para reconhecer o caráter contingente – e por isso relativo – de todas as religiões, inclusive da sua. Como, então, fingir que as "verdades" dela sejam superiores às das outras, ou às do irreligioso? É claro que ele poderia declará-las superiores exatamente por serem as suas: os outros que tenham outras verdades. Mas o que seria isso senão exatamente... relativismo?
Contudo, se não se pode voltar para aquém do relativismo, por que não ir além dele? Não será possível superar o relativismo, justamente ao levá-lo às suas últimas consequências? Não será exatamente o reconhecimento de que é possível que a verdade não esteja comigo, mas sim com o outro, o princípio de uma ética universal? Por esse princípio, obrigo-me (seja quem eu for) a respeitar a liberdade do outro (seja quem ele for) até o ponto em que a sua liberdade não tolha a minha.
Esse princípio se manifesta também na chamada "regra de ouro", que diz "não faças ao outro o que não queres que te façam". Tal regra não pertence a esta ou àquela religião positiva. Exprimindo simplesmente um procedimento racional de reciprocidade na convivência social, ela foi, por meio das mais diferentes formulações, expressa não apenas por cristãos, mas por zoroastristas, confucianistas, judeus, hinduístas, budistas, ateus etc. É desse modo que o relativismo é superado pelo reconhecimento de um princípio absoluto puramente racional e negativo.
Por um lado, a proclamação do caráter absoluto de regras pertencentes a religiões ou culturas positivas e particulares é evidentemente falsa; por outro lado, também é falsa – além de incorrer no que em lógica se chama de "autocontradição performativa" – a proclamação do caráter relativo de absolutamente todas as regras concebíveis.
A saída desse dilema é exatamente a proposição puramente racional que afirma o caráter relativo das regras positivas e particulares pertencententes a diferentes religiões ou culturas igualmente positivas e particulares. Tal proposição não pertence a nenhuma religião ou cultura positiva ou particular, logo, não é relativa nem incorre em autocontradição performativa. Ela é de natureza puramente negativa, universal e absoluta.
Voltando agora ao episódio mencionado da excomunhão, podemos dizer que é esse princípio puramente racional, negativo, universal e absoluto que, em última análise, permite-nos julgar os preceitos das religiões positivas, particulares e relativas; e que são estas que, ao mesclar regras positivas, particulares e relativas a princípios éticos racionais, universais e absolutos, acabam por promover a ilusão de que também estes últimos são relativos.
E alguns religiosos ainda persistem numa ética violenta expressa pelo absoluto! Estão assim muito distante de qualquer sentido harmônico. Distante também de querer sair pela porta mais respeitosa. Obrigado pelo texto.
ResponderExcluirAbraços.
Jefferson.
Caro Antonio Cícero,
ResponderExcluirSão prementes as questões colocadas no seu artigo.
Este caso, mesmo tendo em conta as regras morais da religião católica e os seus dogmas de fé, quanto a mim, esta atitude do bispo e do papa Bento 16, sofrem de falta de compaixão cristã.
Explico-me: Sendo, como apregoa a religião católica, uma decisão papal, pronunciada ex-catedra, como infalível, como é que este papa resolveu retirar a excomunhão aos conservadores lefebrianos que tinham sido excomungados pelo papa anterior, entre outras coisas, porque afirmavam o negacionismo do holocausto? Qual dos papas deixou de ser infalível?, este ou o seu anterior?
Ora, neste caso, da excomunhão da mãe e dos médicos que praticaram um aborto numa criança de nove anos que tinha sido engravidada, e praticaram-no dentro das boas práticas das ciências médicas e da lei do seu país, será que mais tarde não virá um outro papa a revogar esta excomunhão, atento à compaixão e à caridade cristãs?
Será que a Religião católica e os seus hierarcas, defendem de tal forma a vida, que nunca promoveram uma guerra, santificaram assassinos, lavaram as mãos como Pilatos perante as práticas de tantos ditadores que semearam a morte nos seus países; será que nunca tiveram a Inquisição, os seus terríveis tribunais que condenavam à fogueira gente só por ser heterodoxa? Será que ainda não existem capelães militares?.
E para que servem os militares, em última instância, senão para matar em caso de guerra?
Na minha modesta opinião, penso que este papa, que se bate contra os relativismos, está a dar grandes argumentos aos defensores do relativismo moral.
Quanto à ética, são outros quinhentos que merecem uma abordagem mais desenvolvida, e não a título de comentário.
Obrigado Antonio Cícero por nos pôr a pensar e a questionar.
Domingos da Mota
Domingos,
ResponderExcluirdesculpe, mas o negacionismo do holocausto nunca foi o motivo das excomunhões.Isso não faz parte da doutrina católica, e seria ridículo se fizesse. Os bispos foram excomungados por terem sido sagrados sem mandato pontifício, o que, assim como o aborto, incorre em excomunhão automática. E apenas o Bispo Willianson nega o holocausto e não se sabe de declarações suas nesse sentido antes das excomunhões. Mais informação e menos " achismos" .
Domingos da Mota, gostei muito dos seus argumentos: dizem, bem melhor do que eu faria, os meus pensamentos.
ResponderExcluirEL PURO NO
ResponderExcluirEl No
el no inóvulo
el no nonato
el noo
el no poslodocosmos de impuros ceros noes que noan noan noan
y nooan
y plurimono noan el morbo amorfo noo
no démono
no deo
sin son sin sexo ni órbita
el yerto inóseo noo en unisolo amódulo
sin poros ya sin nódulo
ni yo ni fosa ni hoyo
el macro no ni polvo
el no más nada todo
el puro no
sin no
Oliverio Girondo
Jayme,
ResponderExcluirMesmo que o negacionismo do holocausto não tenha sido a causa (primeira)da excomunhão desses bispos e padres, foi, como muito bem diz, essa, atrevo-me a dizer quase "seita" não obedecer aos ditames do Vaticano e às suas regras, em nome de uma visão retrógrada da história e a favor do concílio tridentino,a minha questão prende-se mais, neste caso, com o dogma da infalibilidade do papa, dado que pôs em causa a infalibilidade do anterior; e prende-se em termos de doutrina da fé com o facto de se excomungar uma criança, e quem em nome das ciências médicas, lhe deu a mão.
Um dogmatismo cruel, que não cai bem com outras atitudes do Vaticano, nomeadamente a pretensão (li isto na imprensa) de santificar alguns assassinos de um dos lados da guerra civil de Espanha, e não ter a mesma atitude até para com padres que foram assassinados pelas tropas franquistas. No fundo o que pretendo dizer é que nesta questão de doutrina, ela (e a diplomacia milinar do Vaticano, estão cada vez mais conservadoras, reaccionárias, não tendo em conta os sinais dos tempos). E depois l lá vem um papa a pedir perdão a estes e aqueles pelos actos menos próprios da acção ou da omissão da igreja.
Domingos da Mota
o que as pessoas ganham/perdem ao serem "banidas" da igreja católica?
ResponderExcluirQuero registrar que no cristianismo, ao contrário de outras religiões, a Regra de Ouro é positiva:"Faça com os outros o que gostarías que fizessem por você" (Mateus 7,12),(Lucas 6,31).
ResponderExcluirTodavia Antônio Cícero, essa construção pró-ativa do cristianismo torna a posição do Bispo ainda mais frágil.
Sou de Recife e é um absurdo o que o Dom Dede vem fazendo com a Igreja daqui, com um comportamento conservador pré-Vaticano II. Há muito sabíamos que ele é um caso patológico, que Roma não queria ver. Agora pegou mal no mundo todo. Obrigado pelos pensamentos dos sábados - iluminam a estrada!
Domingos,
ResponderExcluir"Excomungar uma criança" ?!?
De onde você tirou isso?
A criança nào foi excomungada, e talvez nem a mãe.
Para maiores detalhes, aqueles que a mídia não publica,
http://padreedson.blogspot.com/2009/03/caso-da-menina-de-alagoinha-o-lado-que.html
ATENÇÃO!
ResponderExcluirnão nos desviemos do cerne da questão colocada pelo cícero.
O que o texto coloca é, grosso modo, que só por meio do pensamento racional e negativo pode-se superar as "certezas absolutas" ilusórias das religiões em geral.
Acho que não há duvidas a respeito das aporias do pensamento religioso.
Mas, ao mesmo tempo, tenho certa dificuldade em aceitar qualquer "princípio absoluto" ou algo "puramente racional".
Não haverá outro(s) caminhos menos puros e absolutistas?
forte abraço!
Jayme,
ResponderExcluirO que li na imprensa é que a mãe (e não a criança), bem como os que praticaram o aborto nessa mãe-criança de nove anos é que foram excomungados.
Mas agradeço a sua referência que irei consultar.
Domingos da Mota
meu lindo, meu porto de luz,
ResponderExcluiro que dizer diante de tamanha lucidez, tamanha sagacidade, tamanha sabedoria?
eu sei lá (rs)... dizer que concordo com absolutamente tudo? pode ser. mas ainda não dá conta da minha admiração pelo texto.
tudo perfeito, cicero, tudo no lugar.
você é um desbunde, um arraso!
por isso sou louco por você, sabia?
beijo, meu poetósofo de primeiríssima grandeza!
Obrigado, Paulinho. Já valeu a pena ter escrito o artigo só pelo seu entusiasmo.
ResponderExcluirApenas uma pequena observação:
ResponderExcluirNão pode haver retrocesso!
Uma vez descoberto um caminho,
não podemos mais ignorá-lo.
E a igreja, na maior parte das vezes,
tem falado com as paredes!
Há, cada vez mais, uma proliferação
de religiões pelo mundo.
Todas em busca de verdades que
não existem. A verdade é absoluta e,
portanto, não existe. Há a minha,
a sua e a dos outros...muitas são
as verdades!
Obrigada por seu texto e obrigada
pela oportunidade de manifestar
minha opinião.
Grande abraço e minha admiração
por seus interesses, sempre tão
pungentes!
Oi, Antônio,
ResponderExcluirGrande discussão, e muito importante, creio. Dizer que sua imensa sensibilidade e inteligência suscita esse tipo de diálogo, absolutamente urgente, sobre a ética (ou anti-ética) contemporânea, é desnecessário.
Venho pensando há um tempo, antes mesmo de iniciar minha graduação em Filosofia, que estamos passando por uma mudança radical do paradigma "cartesiano-mecanicista-cristão", onde a regulação das relações humanas, em geral, são fundamentadas basicamente na separação absurda entre leis divinas ou pseudo-divinas, interpretadas "por aqueles que sabem" sobre a Palavra de Deus - para um novo paradigma (ainda em formação), onde me parece urgente - e isso não é nenhuma novidade - uma concepção mais holística, racional, mas também afetiva da realidade.
Por isso, após ter encontrado a grande obra de Espinosa, Ética, venho como que alimentando a vontade de vê-la ensinada nas escolas e faculdades como que para combater tanto o cartesianismo, quando a concepção dualista (tradicional) e desesperadora da Igreja Católica, que nos oprime, obrigando a conceber duas realidades antagônicas mas que eticamente, são impossíveis de serem dissociadas, em que ao corpo (entendendo o sensível) é considerado como desimportante frente o império de uma "razão" explicitamente manipuladora.
Quero saber o que pensa a respeito disso, meu belo, pois, repito sempre, tu me inspiras muito em sua forma de conceber o mundo e as coisas... Espinosa faz muito sentido se tivermos em vista uma mudança radical do paradigma contemporâneo, que achas?
beijos,
ev.
Evandro,
ResponderExcluiracho que, se você está interessado em Spinoza, deve ir fundo. Já com o que você diz sobre Descartes não concordo. Ele deve ser lido sem os preconceitos posmodernistas de filósofos menores como Deleuze, por exemplo. Descartes foi um dos maiores revolucionários que o mundo já conheceu. Ele inaugurou a filosofia moderna e, como diz Heidegger, "toda a metafísica moderna, inclusive Nietzsche, mantém-se na interpretação do ser e da verdade instaurada por Descartes". O pensamento de Spinoza também se mantém, é claro, nessa interpretação do ser. "Há três séculos somos todos", como diz Alexandre Koyré, "direta ou indiretamente, nutridos pelo pensamento cartesiano, já que, há justamente três séculos, todo o pensamento europeu, todo o pensamento filosófico ao menos, orienta-se e se determina em relação a Descartes. Assim, é extremamente difícil compreender a importância e a novidade da obra de Descartes: uma das mais profundas revoluções intelectuais e mesmo espirituais que a humanidade conheceu, conquista decisiva do espírito por si próprio, vitória decisiva na rota dura e árdua que leva o homem à liberação espiritual, à liberdade da razão e da verdade. Ainda mais difícil, senão inteiramente impossível é imaginar a impressão produzida pelo Discours nos que o liam -- há três séculos -- pela primeira vez.
Abraço
Caro Cicero,
ResponderExcluirperdoe-me mais uma vez por ressuscitar uma postagem tão antiga, mas esta aqui é exatamente a peça que faltava para concluir um imenso quebra-cabeça.
Há muito tal autocontradição performativa me atormentava, mas não sabia de onde extrair o absoluto. A resposta, claro, só poderia provir da Razão Niilista, convergindo para o indeterminado, o ápeiron.
PS. O endereço de email pelo qual você me enviou o "Proteu" recebe resposta? É que enviei para ele uma questão sobre o ápeiron relativa à poesia de Drummond, e, caso não tenha chegado, gostaria de saber como enviá-la. Quanto ao ensaio "A Razão Niilista", aguardo-o ansiosamente!
Por tudo isso, muito obrigado!
Grande Abraço
Caro Erick,
ResponderExcluirsim, aquele endereço é o meu principal endereço de e-mail. Mas o texto com a sua questão ainda não chegou.
Abraço