29.2.08

Sá de Miranda: O sol é grande...

No seu comentário sobre o soneto de Petrarca, Marcelo Diniz mencionou o seguinte soneto de Sá de Miranda:




O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
Também mudando-m’eu fiz doutras cores:
E tudo o mais renova, isto é sem cura!




De: SÁ de MIRANDA, Francisco. Sonetos. In: Obras completas. Lisboa: Sá da Costa Ed., 1976, p.300.

28.2.08

Catulo: LXXXV

O poema de Petrarca, como o de Camões, é composto de oximoros, isto é, combinações de noções contraditórias cuja tensão dramática revela a confusão do sujeito do poema lírico. Catulo tem um poema curtíssimo que usa esse recurso.


LXXXV

Odeio e amo. Por que o faço, quiçá perguntes?
Não sei, mas sinto, e é tortura.


LXXXV
Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris?
Nescio, sed fieri sentio et excrucior.


CATULLUS, C. Valerius. Selected poems. Org. p. SIMPSON, Francis. London: Macmillan, 1948, p.61.

26.2.08

Petrarca: Pace non trovo e non ho da far guerra

A obra-prima de Camões aqui postada no dia 22 de fevereiro foi a ele inspirada por outra obra-prima: um soneto de Petrarca. Fiz uma tradução aproximada desse soneto. Ei-la, com o original italiano embaixo.



CXXXIV

Paz não encontro e nem me quer a guerra;
E temo e espero e ardo e sou gelado
E vôo sobre o céu e jazo à terra;
E nada aperto, e o mundo todo abraço.

Quem me prende não larga nem encerra,
Nem por seu me retém nem abre o laço;
E nem me mata Amor nem me liberta,
Nem me quer vivo nem quer meu trespasso.

Vejo sem olhos, sem ter língua grito;
E anseio por morrer, e peço ajuda;
E me odeio a mim mesmo e amo a sós.

De dor me alimento, chorando rio;
Igualmente desprezo a morte e a luta:
E neste estado estou, mulher, por vós.



CXXXIV

Pace non trovo e non ho da far guerra
e temo, e spero; e ardo e sono un ghiaccio;
e volo sopra 'l cielo, e giaccio in terra;
e nulla stringo, e tutto il mondo abbraccio.

Tal m'ha in pregion, che non m'apre né sera,
né per suo mi ritèn né scioglie il laccio;
e non m'ancide Amore, e non mi sferra,
né mi vuol vivo, né mi trae d'impaccio.

Veggio senz'occhi, e non ho lingua, e grido;
e bramo di perir, e chieggio aita;
e ho in odio me stesso, e amo altrui.

Pascomi di dolor, piangendo rido;
egualmente mi spiace morte e vita:
in questo stato son, donna, per voi.


De: PETRARCA, Francesco. Dal Canzoniere/Le chansonnier. Paris: Aubier-Flammarion, 1969, p.158.

24.2.08

Capitalismo e ideologia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 23 de fevereiro de 2008.

Capitalismo e ideologia

NO MEU último artigo, chamei atenção para uma curiosa analogia entre o feudalismo e o "socialismo real", tal como este existiu, por exemplo, na União Soviética. No modo de produção feudal, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o catolicismo, fosse compartilhada por praticamente toda a sociedade.

Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa religião era, como se sabe, a Igreja.

Ora, também no modo de produção socialista, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o marxismo-leninismo, também acabasse por ser adotada por praticamente toda a sociedade.

Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa verdadeira religião laica era, como se sabe, o Partido Comunista, por meio do Estado, que monopolizava todas as instituições de ensino e de propaganda.

Observei também que o modo de produção capitalista, ao contrário, é capaz de funcionar sem necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior parte da sociedade. Sendo assim, ele é perfeitamente compatível com a liberdade de expressão, inclusive a liberdade de imprensa.

Pois bem, essas simples constatações -sobretudo a última- provocaram vários leitores a enviarem mensagens indignadas, principalmente ao meu e-mail e ao meu blog. Entretanto, todas me acusam de ter dito coisas que eu não disse. A indignação é, sem dúvida, pelo que eu realmente escrevi e, sem dúvida, exatamente pelo fato de ser incontestável; mas, já que não conseguiam contestá-lo, os ataques dos insatisfeitos se concentraram no que não escrevi nem penso. É o que se chama má-fé.

Acusaram-me, por exemplo, de ter dito que não há ideologia capitalista ou burguesa. Ora, penso, ao contrário, que há inúmeras ideologias burguesas. O que afirmei foi que nenhuma ideologia particular tem que ser compartilhada pela maior parte da sociedade para que a economia capitalista funcione.

Trata-se de algo evidente, que é suscetível de ser empiricamente verificado em inúmeros países capitalistas, inclusive no Brasil. Quem poderia negar que o Brasil (ou os Estados Unidos, ou a França...) é um país capitalista? Quem poderia negar que há, no Brasil (ou nesses outros países), liberdade de expressão?

Essa característica do capitalismo pode ser explicada pelo fato de que as motivações que orientam as ações dos seus agentes econômicos -em particular, dos capitalistas (por exemplo, o lucro e a ampliação do capital) e dos operários (por exemplo, o salário)- são basicamente materiais e reguladas principalmente pelo mercado impessoal, de modo que pouco importa para o funcionamento da economia que cada indivíduo tenha ideologias, filosofias, religiões, superstições, gostos, hábitos, vícios etc. diferentes de cada um dos outros indivíduos.

Segundo a famosa fórmula da "Fábula das Abelhas", de Mandeville (século 18), vícios privados (por exemplo, a cobiça) são capazes de produzir virtudes públicas (por exemplo, a prosperidade nacional).

É evidente que tal modo de pensar jamais poderia funcionar numa economia socialista planejada, em que, tendo em vista a "construção do socialismo (ou do comunismo)", torna-se necessário exaltar a virtude do altruísmo e a submissão do interesse individual ao coletivo.

Que admira, se, em tal situação, quem pensar por conta própria já esteja incorrendo no desvio do "individualismo pequeno-burguês"? Para evitá-lo, torna-se necessária a "reeducação" de todos segundo um único modelo: para isso, apela-se, por exemplo, às chamadas "revoluções culturais".

Lin Piao, um dos líderes da Revolução Cultural Chinesa, explicava que ela tinha como meta "eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista". É o totalitarismo em estado puro.

Estou longe de achar o capitalismo perfeito. Mas não se pode tentar superar os seus problemas sem, ao mesmo tempo, preservar, ampliar, universalizar e consolidar a sociedade aberta, o direito à livre expressão de pensamento, a maximização da liberdade individual, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. Vimos que o marxismo-leninismo é, em princípio e de fato, incompatível com essa exigência. Resta-nos ser radicalmente reformistas.

22.2.08

Camões: Tanto de meu estado me acho incerto

Publico a seguir um clássico soneto de Camões. “Um clássico é um clássico”, diz Ezra Pound, “não porque se conforme a certas regras estruturais, ou porque se adéqüe a certas definições (das quais o seu autor, bem provavelmente, jamais ouviu falar). É clássico por causa de certo frescor eterno e irreprimível”. Esqueça-se o leitor de que se encontra ante um clássico, e mesmo ante um soneto, e o leia como se fosse pela primeira vez, e como se tivesse sido escrito ontem. Pronuncie-o em voz baixa e lenta. Deixe entrar cada verso, cada palavra, cada sílaba, cada letra com todo o seu peso ou a sua leveza em seu ouvido, pausando de acordo com as sugestões do verso. Passe por cima do que não entender imediatamente. Leia-o todo. Depois o releia várias vezes, para compreender e apreciar cada vez mais: para fazê-lo seu.


Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

De: CAMÕES, Luís de. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1981, p.117.

17.2.08

Aldous Huxley: sobre o Fr. 168b, de Safo

Nem mesmo o melhor dos chineses poderia ter dito mais em compasso tão estreito. A noite, o desejo, a angústia de esperar e, com ela, a dor mais persistente, mais profunda, mais desesperançosamente incurável de saber que toda luz há que se pôr, que a vida e o amor declinam, declinam inexoravelmente rumo ao ocaso e à escuridão: todas essas coisas são implicadas – quão completamente! – nas linhas de Safo. As palavras continuam como que a ecoar e re-ecoar ao longo de corredores cada vez mais remotos da memória, com um som que jamais pode completamente morrer (tal é o estranho poder da voz do poeta) até a morte da própria memória.


De: HUXLEY, Aldous. Texts and pretexts: an anthology with commentaries. London: Flamingo, 1994.

16.2.08

Safo: Fr. 168b


Clique na imagem para ampliá-la:


13.2.08

Antero de Quental: Divina comédia

DIVINA COMÉDIA

Erguendo os braços para o Céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?!»



QUENTAL, Antero de. Sonetos. Lisboa: Sá da Costa, 1962, p.176.

10.2.08

Marx e o capitalismo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 2008:


Marx e o capitalismo

MARX CONTA, em nota de pé de página de "O Capital", que, certa vez, uma gazeta teuto-americana criticou o materialismo da sua famosa tese, segundo a qual a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, à qual correspondem determinadas formas de consciência social. Para os editores da gazeta, tudo isso certamente estava correto para o mundo contemporâneo, onde dominava o interesse material, mas não para a Idade Média, em que dominava o catolicismo, nem para Atenas ou Roma, onde dominava a política. A resposta de Marx foi que "a Idade Média não podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo, da política. Ao contrário, a forma e o modo pelos quais ganhavam a vida é que explica por que ali a política e aqui o catolicismo desempenhavam o papel principal".

Ninguém ignora a importância do catolicismo para o feudalismo, que era o modo de produção dominante na Idade Média. Como diz o historiador Jacques Le Goff, em "O Deus da Idade Média" (ed. Civilização Brasileira), publicado no Brasil no ano passado, "no mundo feudal, nada de importante se passa sem que seja relacionado a Deus. Deus é ao mesmo tempo o ponto mais alto e o fiador desse sistema. É o senhor dos senhores. [...] O regime feudal e a Igreja eram de tal forma ligados que não era possível destruir um sem pelo menos abalar o outro".

Como se sabe, o regime feudal era o modo de produção dominante na Europa, antes do capitalismo. Curiosamente, se pensarmos agora no modo de produção que pretendia superar o capitalismo, que era o socialismo (que, segundo os marxistas-leninistas, era a primeira etapa, de transição, para o comunismo), veremos que, onde ele tentou existir realmente, como na União Soviética, nos países do Leste Europeu etc., o papel da ideologia marxista-leninista não era menor do que o da religião católica havia sido durante a era do feudalismo.

É verdade que, no socialismo, a política também teve um papel importantíssimo, não menor do que o que tivera no mundo antigo; mas, de qualquer modo, a história mostrou que aquilo que Le Goff diz da articulação entre o feudalismo e a Igreja - que eram de tal forma ligados que não seria possível destruir um sem pelo menos abalar o outro - pode ser dito da articulação entre o socialismo real e o partido marxista-leninista. Assim, por exemplo, dado que, no socialismo, as atividades econômicas não seriam mais realizadas tendo em vista a subsistência ou o lucro, era necessário que o partido - como diz uma enciclopédia publicada pelo Instituto Bibliográfico da extinta República Democrática Alemã - orientasse a criação da "unidade moral e política do povo", de modo que o trabalho se transformasse, "de mero meio de subsistência a um assunto de honra". Assim também, um dos líderes da Revolução Cultural chinesa, Lin Piao, explica que ela tinha como meta “eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista”. Todas essas coisas eram no fundo uma só.

Em semelhante regime, a intolerância em relação a heresias - ideologias alternativas, "desvios", "revisionismos" etc. - não é meramente acidental. A repressão a elas não se reduz - como se poderia supor - a um mero estratagema político, usado por determinado partido ou comitê central, ou líder (como não pensar em Stalin?) para racionalizar a prática de perseguir e eliminar os dissidentes. Ela provém da necessidade estrutural de manter a unidade ideológica indispensável para o funcionamento da própria base econômica.

Já o capitalismo funciona independentemente das idéias, concepções, religiões, atitudes, isto é, das ideologias, dos operários, capitalistas, técnicos, administradores ou consumidores que o fazem funcionar. Ainda que cada indivíduo pense e aja de uma maneira diferente de todos os outros, o capitalismo é capaz de prosperar, desde que seja observado de modo geral um mínimo de leis e regras formais de convivência. É exatamente por isso que ele é compatível com a maximização da liberdade individual, a sociedade aberta e o reformismo.

Os editores da gazeta teuto-americana perceberam de modo invertido a situação real. É o feudalismo (e, como vimos, também o socialismo) que necessita, para o seu funcionamento, de uma ideologia particular, correspondente à sua base econômica, e que, por isso, não é capaz de tolerar ideologias alternativas. O capitalismo, porém, exatamente porque a sua base econômica opera a partir do puro interesse material, independentemente de qualquer ideologia particular, não necessita de nenhuma ideologia específica, de modo que é capaz de tolerar todas, inclusive as que lhe foram ou são hostis, como o catolicismo ou o marxismo-leninismo.

4.2.08

James Joyce: de A portrait of the artist as a young man

Vê-se a forma épica mais simples emergir da literatura lírica quando o artista se prolonga e se debruça sobre si mesmo como o centro de um acontecimento épico e essa forma progride até que o centro da gravidade emocional esteja eqüidistante do próprio artista e dos outros. A narrativa deixa de ser puramente pessoal. A personalidade do artista passa à narração mesma, fluindo e refluindo em torno das pessoas e da ação como um mar vital. É fácil ver esse progresso naquela velha balada inglesa Turpin Hero, que começa na primeira pessoa e termina na terceira. Alcança-se a forma dramática quando a vitalidade que fluiu e revolveu em torno de cada pessoa preenche toda pessoa com tamanha força vital que ela assume uma vida estética própria e intangível. A personalidade do artista, inicialmente um grito ou uma cadência ou um tom e depois uma narrativa fluida e tremeluzente, acaba por se refinar a ponto de deixar de existir, impessoalizando-se, por assim dizer. A imagem estética na forma dramática é a vida purificada na imaginação humana e dela reprojetada. Cumpre-se o mistério da estética, como o da criação material. O artista, como o Deus da criação, continua dentro ou atrás ou além e acima da sua manufatura, invisível, refinado a ponto de deixar de existir, indiferente, aparando as unhas.