A obra-prima de Camões aqui postada no dia 22 de fevereiro foi a ele inspirada por outra obra-prima: um soneto de Petrarca. Fiz uma tradução aproximada desse soneto. Ei-la, com o original italiano embaixo.
CXXXIV
Paz não encontro e nem me quer a guerra;
E temo e espero e ardo e sou gelado
E vôo sobre o céu e jazo à terra;
E nada aperto, e o mundo todo abraço.
Quem me prende não larga nem encerra,
Nem por seu me retém nem abre o laço;
E nem me mata Amor nem me liberta,
Nem me quer vivo nem quer meu trespasso.
Vejo sem olhos, sem ter língua grito;
E anseio por morrer, e peço ajuda;
E me odeio a mim mesmo e amo a sós.
De dor me alimento, chorando rio;
Igualmente desprezo a morte e a luta:
E neste estado estou, mulher, por vós.
CXXXIV
Pace non trovo e non ho da far guerra
e temo, e spero; e ardo e sono un ghiaccio;
e volo sopra 'l cielo, e giaccio in terra;
e nulla stringo, e tutto il mondo abbraccio.
Tal m'ha in pregion, che non m'apre né sera,
né per suo mi ritèn né scioglie il laccio;
e non m'ancide Amore, e non mi sferra,
né mi vuol vivo, né mi trae d'impaccio.
Veggio senz'occhi, e non ho lingua, e grido;
e bramo di perir, e chieggio aita;
e ho in odio me stesso, e amo altrui.
Pascomi di dolor, piangendo rido;
egualmente mi spiace morte e vita:
in questo stato son, donna, per voi.
De: PETRARCA, Francesco. Dal Canzoniere/Le chansonnier. Paris: Aubier-Flammarion, 1969, p.158.
Interessante, a influência é nítida. Agora, posso até dizer que não me surpreenderia se encontrássemos um poema parecido de algum provençal.
ResponderExcluirAbraço,
Carlos Eduardo
Prezado Antonio Cícero,
ResponderExcluirRealmente, o fio condutor é o mesmo nos dois sonetos.
E o quarto verso de ambos é praticamente idêntico.
Mas eu diria que o de Camões acrescenta uma dose de sensualidade e humor que não encontro no de Petrarca.
Um braço,
João Renato.
Caros Carlos Eduardo e João Renato,
ResponderExcluirAcho que vocês dois têm razão. Trata-se de um tropo oximórico que deve, na verdade, remontar aos gregos. Vou postar hoje um poema curtíssimo -- e belíssimo -- de Catulo que já o utiliza.
E, embora os dois sonetos sejam parecidos, são diferentes, de modo que não poderíamos hoje dispensar nenhum deles para ficar só com o outro. Acho o de Camões mais perfeito, mas sei que isso é muito discutível. A literatura universal seria mais pobre hoje se Camões tivesse os preconceitos do nosso tempo contra a imitação e, com receio de ser acusado de plágio, não se tivesse permitido escrever o seu soneto.
Abraços,
Antonio Cicero
Tem razão. Gosto mais da versão de Camões, mas ambos são encantadores.
ResponderExcluirGosto dos dois poemas. Mas acho que prefiro o do Petrarca.
ResponderExcluirAs chiantes dele são inebriantes.
Adorei o "ghiaccio"/"cielo"/"giaccio"/abbraccio". E tb outras similaridades fônicas encantadoras: "scioglie il laccio"; "Veggio senz'occhi"/"chieggio aita".
Abbracci,
Paulo de Toledo
Embora se pareçam muito entre si, os dois sonetos são profundamente diferentes. A meu ver, o de Petrarca enquadra-se mais nos padrões da Antigüidade clássica do que nos dos tempos modernos, sendo, para assim dizer, mais monumental, e o de Camões revela-se mais humano em suas contradições torturantes: a leitura deste faz imaginar um homem como todos nós, que se vê afastado por algum motivo (pela desigualdade social ou, simplesmente, pelo fato de a mulher dos sonhos ser casada) do ser amado, enquanto naquele se adivinha, bem que remotamente, a voz de um romano da época augustiana. Petrarca é mais racional e Camões, mais emocional, o que o aproxima do cotidiano, inclusive, do nosso século.
ResponderExcluirParece-me muito difícil compará-los no que diz respeito à superioridade de um sobre o outro. Parece-me inevitável que o de Camões nos soe mais redondo que o de Petrarca, afinal, nossos afetos são filhos da língua que Camões inventou imitando Petrarca. A sintaxe de Camões parece-me mais ajustada a forma do que a de Petrarca, uma sutileza muito difícil às vezes de nomear ou mesmo perceber. Mas, algo no de Petrarca me assombra, como se lesse um soneto de Sá de Miranda: a impressão que me dá é a de que a língua está se inventando através da forma; é como se o de Camões já encontrasse a sintaxe amaciada; o de Petrarca parece-me mais "rústico" (e haja aspas para o adjetivo). Sá de Miranda parece-me atingir o mesmo frescor com "O sol é grande...". Imagine começar um soneto com uma frase tão clara como essa... e terminar com "e isto é sem cura".
ResponderExcluirAbraços, Cicero querido.
Marcelo Diniz
Marcelo,
ResponderExcluiraproveitando sua lembrança, vou postar o soneto do Sá de Miranda.
Abraço,
ACicero
Caro Cicero,
ResponderExcluirSabe do que me lembrei agora? De uma conferência do Jorge Luis Borges a respeito da métafora.
Em resumo, ele diz que não há mais novas metáforas. Que todas as metáforas encontradas nos poemas podem ser reduzidas a meia dúzia de temas ou modelos. Se é assim, por que continuar lendo tantos poemas? Borges se pergunta. Porque uma mesma metáfora pode ser dita sempre de uma forma diferente e provocar um encanto renovado, ele responde.
Aquele abraço,
Héber Sales