27.2.07
Nietzsche traduzido por Paulo César de Souza
Acabo de receber da Companhia das Letras um volume com as traduções, feitas por Paulo César de Souza, de O anticristo e Ditirambos de Dionísio, de Nietzsche. Ainda não as li, mas Paulo César de Souza é uma garantia de grande qualidade. Não conheço melhor tradutor de filosofia para o português.
Ser e nada em Hegel
Não é surpreendente que o início da Lógica de Hegel, sobre a identidade de SER e NADA, provoque alguma confusão e perplexidade. Tal como se apresenta, ele me parece extremamente brilhante e, à primeira vista, claro: ofuscantemente claro; súbito, obscuro.
Transcrevo a seguir o parágrafo de O mundo desde o fim [Ed. Francisco Alves, 1995, cap.IV, § 16, p.77 ss.] em que critico a passagem, na Lógica de Hegel, do A. SER e do B. NADA para C. DEVIR:
Hegel, para deixar claro que nada ficou de fora do absoluto, principia sua Lógica pela categoria ao mesmo tempo mais universal e mais e mais simples, pela imediaticidade simples do puro ser. "O começo", diz Hegel introdutoriamente,
precisa ser absoluto ou, o que aqui é equivalente, ser começo abstrato; ele não deve pressupor nada, não deve ser mediatizado por nada nem ter um fundamento; deve ao contrário ser ele mesmo fundamento da ciência inteira. Deve portanto ser absolutamente um imediato, ou antes apenas a imediaticidade mesma. Como não pode ter determinação em relação a outra coisa, tampouco pode ter determinação em si, ou conteúdo, pois tal seria diferença e relação de diferentes uns com os outros e, com isso, uma mediação. O começo é, portanto, o ser puro. [HEGEL, G. Wissenschaft der Logik. Hamburg: Felix Meiner, 1932 primeiro livro, p.54]
O começo absoluto é, portanto, o começo abstrato, isto é, o absoluto abstrato. Em que consiste mesmo esse absoluto abstrato ou essa abstração absoluta? O ser puro não possui nenhuma determinidade, nenhuma diferença interna ou externa, nenhuma positividade, particularidade, relatividade. E Hegel adiciona, num parágrafo merecidamente famoso:
Nada há nele a intuir, se é que de intuição pode ser falado aqui; ou ele é apenas essa pura e vazia intuição mesma. Tampouco há algo nele a pensar, ou ele é do mesmo modo apenas esse puro pensamento vazio. O ser, o imediato indeterminado, nada é de fato, e nem mais nem menos que nada. [Ibid., primeira parte, primeiro capítulo, p.66-67]
O ser é o pensamento puro. "O ser puro", diz Hegel na Enzyklopädie,
Constitui o começo porque é tanto puro pensamento quanto o imediato indeterminado, simples, o e o primeiro início não pode ser nada mediado ou mais determinado. [HEGEL, G. "Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse I". In:. Werke. Vol.8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, § 86, p.182-2]
A Lógica se dá inteira no elemento do pensamento livre. Nesse sentido, ela pressupõe a Fenomenologia, que trouxe a consciência ao conceito da ciência, ou ao saber puro. É por isso que o ser puro pode ser concebido como idêntico ao puro intuir ou ao puro pensamento. O puro pensamento é o pensamento que abstraiu de si absolutamente toda determinidade, o pensamento pensante. Este se identifica com o puro nada. O ser é o nada. Da mesma maneira, quando concebo o nada, estou concebendo o pensamento pensante, o ser abstrato-abstrainte. O nada é o ser.
A verdade do ser e do nada é, para Hegel, o devir, pois "o que é a verdade não é nem o ser nem o nada mas que o ser passa -- ou melhor, já passou -- ao nada e o nada ao ser." [HEGEL, G. Wissenschaft... ibid.]
Mas pode objetar-se que não há trânsito efetivo do nada ao ser ou vice-versa. Se o ser é conceitualmente o mesmo que o nada, e o nada, o mesmo que o ser, então só uma ilusão pode levar alguém a falar de transição, pois o mesmo não transita ao mesmo. Prevendo essa possível objeção, Hegel afirma que
tão correta quanto a unidade de ser e nada é porém também que são absolutamente distintos -- que um não é o que o outro é. Apenas, uma vez que a diferença aqui ainda não se determinou, pois justamente ser e nada são ainda o imediato, ela é, como se encontra neles, o indizível, a mera opinião. [HEGEL, G. Enzyklopädie I, § 88, p.188]
Contudo, a verdade é que essa diferença jamais se torna mais precisa. Ela não é capaz de superar o status de doxa, imaginação, ilusão. O tornar-se não pode ser a identidade do ser absoluto e do nada absoluto justamente porque ele é diferente tanto de um quanto de outro, que são idênticos. O ser absoluto é conceitualmente idêntico ao nada absoluto, e isso basta. Por essa razão, resulta ininteligível a explicação de Hegel para a coagulação do tornar-se no estar aí (Dasein) ou no ser determinado:
O tornar-se contém em si o ser e o nada, e de tal maneira que esses dois simplesmente se transformam um no outro e se superam mutuamente. Com isso, o tornar-se se demonstra como inteiramente inquieto, mas incapaz de se manter nessa inquietação abstrata; pois na medida em que ser e nada se esvanecem no devir e só isto é o seu conceito, ele próprio é um esvanecente, feito um fogo que se consome em si mesmo enquanto devora o seu material. Mas o resultado desse processo não é o nada vazio mas o ser idêntico à negação, que chamamos estar aí (Dasein)... [Ibid., § 89, p.195]
Ora, como já foi dito, se o ser é idêntico ao nada, não há tornar-se um o outro. Isso significa que, dado que o devir é o elo entre o momento do ser-nada e o momento do estar aí (Dasein), isto é, do ser determinado, pode declarar-se insatisfatória a passagem crucial do primeiro para o segundo capítulo da Lógica. Isso não significa que não haja uma diferença fundamental entre o ser ou o nada absoluto e o ser determinado. Muito pelo contrário: trata-se da verdadeira diferença ontológica. O que a insuficiência da derivação hegeliana significa é que o conceito de ser absoluto ou o absoluto abstrato não pode ser reduzido a uma representação inadequada do ser determinado. Assim, desde o primeiro passo não se realiza a pretensão hegeliana de que o absoluto abstrato não passe da mais pobre das definições do absoluto, destinada a ser relativamente superada por todos os significados subseqüentes revelados pela Lógica.
Há outras formas de considerar a relação entre o ser absoluto e a determinidade. Chegamos ao ser absoluto ou ao nada absoluto através da abstração absoluta. Trata-se da atividade de negação absoluta. Em primeiro lugar, uma tal atividade se constitui como o não-ser de todas as outras coisas, como o nada dessas coisas, não porque as destrua mas porque as nega de si ou se nega a elas. Ao negá-las de si, isto é, ao negá-las da negação, a negação absoluta se dá como negação negante e as coisas negadas são por ela constituídas como negações negadas. A negação negada é positividade. Logo, a positividade pode ser também considerada como negação relativa. É, portanto, a negação relativa, ou melhor, a negação negada, que normalmente dizemos ser isto ou aquilo. A negação absoluta, porém, nada tem de relativo, nada tem de negado. Ela consiste em pura negação negante.
Transcrevo a seguir o parágrafo de O mundo desde o fim [Ed. Francisco Alves, 1995, cap.IV, § 16, p.77 ss.] em que critico a passagem, na Lógica de Hegel, do A. SER e do B. NADA para C. DEVIR:
Hegel, para deixar claro que nada ficou de fora do absoluto, principia sua Lógica pela categoria ao mesmo tempo mais universal e mais e mais simples, pela imediaticidade simples do puro ser. "O começo", diz Hegel introdutoriamente,
precisa ser absoluto ou, o que aqui é equivalente, ser começo abstrato; ele não deve pressupor nada, não deve ser mediatizado por nada nem ter um fundamento; deve ao contrário ser ele mesmo fundamento da ciência inteira. Deve portanto ser absolutamente um imediato, ou antes apenas a imediaticidade mesma. Como não pode ter determinação em relação a outra coisa, tampouco pode ter determinação em si, ou conteúdo, pois tal seria diferença e relação de diferentes uns com os outros e, com isso, uma mediação. O começo é, portanto, o ser puro. [HEGEL, G. Wissenschaft der Logik. Hamburg: Felix Meiner, 1932 primeiro livro, p.54]
O começo absoluto é, portanto, o começo abstrato, isto é, o absoluto abstrato. Em que consiste mesmo esse absoluto abstrato ou essa abstração absoluta? O ser puro não possui nenhuma determinidade, nenhuma diferença interna ou externa, nenhuma positividade, particularidade, relatividade. E Hegel adiciona, num parágrafo merecidamente famoso:
Nada há nele a intuir, se é que de intuição pode ser falado aqui; ou ele é apenas essa pura e vazia intuição mesma. Tampouco há algo nele a pensar, ou ele é do mesmo modo apenas esse puro pensamento vazio. O ser, o imediato indeterminado, nada é de fato, e nem mais nem menos que nada. [Ibid., primeira parte, primeiro capítulo, p.66-67]
O ser é o pensamento puro. "O ser puro", diz Hegel na Enzyklopädie,
Constitui o começo porque é tanto puro pensamento quanto o imediato indeterminado, simples, o e o primeiro início não pode ser nada mediado ou mais determinado. [HEGEL, G. "Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse I". In:. Werke. Vol.8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, § 86, p.182-2]
A Lógica se dá inteira no elemento do pensamento livre. Nesse sentido, ela pressupõe a Fenomenologia, que trouxe a consciência ao conceito da ciência, ou ao saber puro. É por isso que o ser puro pode ser concebido como idêntico ao puro intuir ou ao puro pensamento. O puro pensamento é o pensamento que abstraiu de si absolutamente toda determinidade, o pensamento pensante. Este se identifica com o puro nada. O ser é o nada. Da mesma maneira, quando concebo o nada, estou concebendo o pensamento pensante, o ser abstrato-abstrainte. O nada é o ser.
A verdade do ser e do nada é, para Hegel, o devir, pois "o que é a verdade não é nem o ser nem o nada mas que o ser passa -- ou melhor, já passou -- ao nada e o nada ao ser." [HEGEL, G. Wissenschaft... ibid.]
Mas pode objetar-se que não há trânsito efetivo do nada ao ser ou vice-versa. Se o ser é conceitualmente o mesmo que o nada, e o nada, o mesmo que o ser, então só uma ilusão pode levar alguém a falar de transição, pois o mesmo não transita ao mesmo. Prevendo essa possível objeção, Hegel afirma que
tão correta quanto a unidade de ser e nada é porém também que são absolutamente distintos -- que um não é o que o outro é. Apenas, uma vez que a diferença aqui ainda não se determinou, pois justamente ser e nada são ainda o imediato, ela é, como se encontra neles, o indizível, a mera opinião. [HEGEL, G. Enzyklopädie I, § 88, p.188]
Contudo, a verdade é que essa diferença jamais se torna mais precisa. Ela não é capaz de superar o status de doxa, imaginação, ilusão. O tornar-se não pode ser a identidade do ser absoluto e do nada absoluto justamente porque ele é diferente tanto de um quanto de outro, que são idênticos. O ser absoluto é conceitualmente idêntico ao nada absoluto, e isso basta. Por essa razão, resulta ininteligível a explicação de Hegel para a coagulação do tornar-se no estar aí (Dasein) ou no ser determinado:
O tornar-se contém em si o ser e o nada, e de tal maneira que esses dois simplesmente se transformam um no outro e se superam mutuamente. Com isso, o tornar-se se demonstra como inteiramente inquieto, mas incapaz de se manter nessa inquietação abstrata; pois na medida em que ser e nada se esvanecem no devir e só isto é o seu conceito, ele próprio é um esvanecente, feito um fogo que se consome em si mesmo enquanto devora o seu material. Mas o resultado desse processo não é o nada vazio mas o ser idêntico à negação, que chamamos estar aí (Dasein)... [Ibid., § 89, p.195]
Ora, como já foi dito, se o ser é idêntico ao nada, não há tornar-se um o outro. Isso significa que, dado que o devir é o elo entre o momento do ser-nada e o momento do estar aí (Dasein), isto é, do ser determinado, pode declarar-se insatisfatória a passagem crucial do primeiro para o segundo capítulo da Lógica. Isso não significa que não haja uma diferença fundamental entre o ser ou o nada absoluto e o ser determinado. Muito pelo contrário: trata-se da verdadeira diferença ontológica. O que a insuficiência da derivação hegeliana significa é que o conceito de ser absoluto ou o absoluto abstrato não pode ser reduzido a uma representação inadequada do ser determinado. Assim, desde o primeiro passo não se realiza a pretensão hegeliana de que o absoluto abstrato não passe da mais pobre das definições do absoluto, destinada a ser relativamente superada por todos os significados subseqüentes revelados pela Lógica.
Há outras formas de considerar a relação entre o ser absoluto e a determinidade. Chegamos ao ser absoluto ou ao nada absoluto através da abstração absoluta. Trata-se da atividade de negação absoluta. Em primeiro lugar, uma tal atividade se constitui como o não-ser de todas as outras coisas, como o nada dessas coisas, não porque as destrua mas porque as nega de si ou se nega a elas. Ao negá-las de si, isto é, ao negá-las da negação, a negação absoluta se dá como negação negante e as coisas negadas são por ela constituídas como negações negadas. A negação negada é positividade. Logo, a positividade pode ser também considerada como negação relativa. É, portanto, a negação relativa, ou melhor, a negação negada, que normalmente dizemos ser isto ou aquilo. A negação absoluta, porém, nada tem de relativo, nada tem de negado. Ela consiste em pura negação negante.
21.2.07
Ser e nada
Em Póvoa de Varzim um grupo de escritores conversava casualmente um dia sobre os grandes inícios de romances. Entre os mais conhecidos mencionaram-se, é claro, o de Dom Quixote, o da Recherche, o de Moby Dick, o de Brás Cubas, o de L’Étranger etc. A conversa me levou a pensar nos grandes inícios também de obras filosóficas, como o da Metafísica de Aristóteles ou o do Discours de la méthode, de Descartes, e me lembrou uma coisa que eu já havia quase esquecido. É que, décadas atrás, ao ler o livro Beginnings, de Edward Saïd, fiquei decepcionado ao constatar que ele sequer mencionava um início que me parecia pelo menos tão notável quanto qualquer outro: o da Ciência da lógica, de Hegel. É claro que Saïd não era filósofo e se preocupava sobretudo com a literatura, mas, a meu ver, o começo da Ciência da lógica não é apreciável apenas enquanto filosofia, de modo que merece figurar em qualquer discussão sobre inícios importantes ou geniais. A bem da verdade, é preciso também reconhecer que não me refiro aqui ao começo absoluto do livro, uma vez que abstraio dos seus prefácios e da sua introdução; entretanto creio que, mesmo sem ser o início literal do livro, o primeiro capítulo da primeira parte do primeiro livro da Ciência da lógica pode e deve ser considerado como o início da LÓGICA propriamente dita de Hegel. Esse começo compreende, segundo o esquema dialético, três partes: A. Ser; B. Nada; e C. Devir. Não sou hegeliano e penso – como aliás explico no meu livro O mundo desde o fim – que a terceira parte, não obstante sua crucialidade para toda a dialética hegeliana, é simplesmente sofística. Entretanto, o que aqui me interessa é chamar atenção para as partes A. e B., que, conjuntamente, considero como um dos mais impressionantes princípios de um livro e um dos exemplos supremos do sublime filosófico. Sei que, longe de ser uma novidade, trata-se de um clássico que os filósofos, os professores e os estudantes de filosofia certamente já terão lido, relido e comentado, mas acredito que jamais o poderiam fazer em demasia; e que as outras pessoas provavelmente lucrarão com a leitura, ao menos uma vez na vida, do breve princípio desse grande e difícil livro. Ei-lo, primeiro em tradução para o português e, a seguir, no original alemão.
C.W.F. Hegel
Ciência da Lógica
Primeiro Livro
Primeira Parte
Primeiro Capítulo
A. Ser
Ser, ser puro, – sem qualquer outra determinação. Em sua imediaticidade indeterminada ele é igual apenas a si mesmo e também não é desigual a outra coisa, destituído de distinção interna ou externa. Através de qualquer determinação ou conteúdo que o diferenciasse internamente ou que o supusesse como diferente de outra coisa, ele perderia sua pureza. Ele é indeterminação e vazio puros. – Não há nada nele a ser contemplado, se é que se pode aqui falar de contemplação; ou então ele é só essa pura e vazia contemplação mesma. Tampouco há algo nele a ser pensado, ou então ele é do mesmo modo só esse puro pensamento. O ser, o imediato indeterminado é na verdade nada, e não mais nem menos que nada.
B. Nada
Nada, nada puro é simples igualdade consigo mesmo, perfeito vazio, ausência de determinação e conteúdo; em si mesmo, indiferenciação. – Porquanto contemplação ou pensamento possam aqui ser mencionados, vale como uma diferença se algo ou se nada é contemplado ou pensado.
Se são diferentes, então nada contemplar ou pensar tem um significado; logo nada é (existe) em nossa contemplação ou pensamento; ou melhor, ele é a contemplação ou o pensamento vazio mesmo, a mesma contemplação ou pensamento vazio que o próprio ser. – Nada é, portanto, a mesma determinação, ou melhor, a mesma indeterminação, que o puro ser e, com isso, simplesmente o mesmo que o puro ser.
Wissenschaft der Logik
Erstes Buch
Erster Abschnitt
Erstes Kapitel
A. Sein
Sein, reines Sein, - ohne alle weitere Bestimmung. In seiner unbestimmten Unmittelbarkeit ist es nur sich selbst gleich und auch nicht ungleich gegen Anderes, hat keine Verschiedenheit innerhalb seiner noch nach außen. Durch irgendeine Bestimmung oder Inhalt, der in ihm unterschieden oder wodurch es als unterschieden von einem Anderen gesetzt würde, würde es nicht in seiner Reinheit festgehalten. Es ist die reine Unbestimmtheit und Leere. - Es ist nichts in ihm anzuschauen, wenn von Anschauen hier gesprochen werden kann; oder es ist nur dies reine, leere Anschauen selbst. Es ist ebensowenig etwas in ihm zu denken, oder es ist ebenso nur dies leere Denken. Das Sein, das unbestimmte Unmittelbare ist in der Tat Nichts und nicht mehr noch weniger als Nichts.
B. Nichts
Nichts, das reine Nichts; es ist einfache Gleichheit mit sich selbst, vollkommene Leerheit, Bestimmungsund Inhaltslosigkeit; Ununterschiedenheit in ihm selbst. - Insofern Anschauen oder Denken hier erwähnt werden kann, so gilt es als ein Unterschied, ob etwas oder nichts angeschaut oder gedacht wird. Nichts Anschauen oder Denken hat also eine Bedeutung; beide werden unterschieden, so ist (existiert) Nichts in unserem Anschauen oder Denken; oder vielmehr ist es das leere Anschauen und Denken selbst und dasselbe leere Anschauen oder Denken als das reine Sein. - Nichts ist somit dieselbe Bestimmung oder vielmehr Bestimmungslosigkeit und damit überhaupt dasselbe, was das reine Sein ist.
C.W.F. Hegel
Ciência da Lógica
Primeiro Livro
Primeira Parte
Primeiro Capítulo
A. Ser
Ser, ser puro, – sem qualquer outra determinação. Em sua imediaticidade indeterminada ele é igual apenas a si mesmo e também não é desigual a outra coisa, destituído de distinção interna ou externa. Através de qualquer determinação ou conteúdo que o diferenciasse internamente ou que o supusesse como diferente de outra coisa, ele perderia sua pureza. Ele é indeterminação e vazio puros. – Não há nada nele a ser contemplado, se é que se pode aqui falar de contemplação; ou então ele é só essa pura e vazia contemplação mesma. Tampouco há algo nele a ser pensado, ou então ele é do mesmo modo só esse puro pensamento. O ser, o imediato indeterminado é na verdade nada, e não mais nem menos que nada.
B. Nada
Nada, nada puro é simples igualdade consigo mesmo, perfeito vazio, ausência de determinação e conteúdo; em si mesmo, indiferenciação. – Porquanto contemplação ou pensamento possam aqui ser mencionados, vale como uma diferença se algo ou se nada é contemplado ou pensado.
Se são diferentes, então nada contemplar ou pensar tem um significado; logo nada é (existe) em nossa contemplação ou pensamento; ou melhor, ele é a contemplação ou o pensamento vazio mesmo, a mesma contemplação ou pensamento vazio que o próprio ser. – Nada é, portanto, a mesma determinação, ou melhor, a mesma indeterminação, que o puro ser e, com isso, simplesmente o mesmo que o puro ser.
Wissenschaft der Logik
Erstes Buch
Erster Abschnitt
Erstes Kapitel
A. Sein
Sein, reines Sein, - ohne alle weitere Bestimmung. In seiner unbestimmten Unmittelbarkeit ist es nur sich selbst gleich und auch nicht ungleich gegen Anderes, hat keine Verschiedenheit innerhalb seiner noch nach außen. Durch irgendeine Bestimmung oder Inhalt, der in ihm unterschieden oder wodurch es als unterschieden von einem Anderen gesetzt würde, würde es nicht in seiner Reinheit festgehalten. Es ist die reine Unbestimmtheit und Leere. - Es ist nichts in ihm anzuschauen, wenn von Anschauen hier gesprochen werden kann; oder es ist nur dies reine, leere Anschauen selbst. Es ist ebensowenig etwas in ihm zu denken, oder es ist ebenso nur dies leere Denken. Das Sein, das unbestimmte Unmittelbare ist in der Tat Nichts und nicht mehr noch weniger als Nichts.
B. Nichts
Nichts, das reine Nichts; es ist einfache Gleichheit mit sich selbst, vollkommene Leerheit, Bestimmungsund Inhaltslosigkeit; Ununterschiedenheit in ihm selbst. - Insofern Anschauen oder Denken hier erwähnt werden kann, so gilt es als ein Unterschied, ob etwas oder nichts angeschaut oder gedacht wird. Nichts Anschauen oder Denken hat also eine Bedeutung; beide werden unterschieden, so ist (existiert) Nichts in unserem Anschauen oder Denken; oder vielmehr ist es das leere Anschauen und Denken selbst und dasselbe leere Anschauen oder Denken als das reine Sein. - Nichts ist somit dieselbe Bestimmung oder vielmehr Bestimmungslosigkeit und damit überhaupt dasselbe, was das reine Sein ist.
17.2.07
Portugal
No Pap'Açorda, em Lisboa, o romancista Leandro Müller, o poeta Gastão Cruz, eu e o poeta Eucanaã Ferraz
Do dia 6 a 16 de fevereiro estive em Portugal. É o que explica o fato de que este blog tenha estado, nesse período, relativamente inativo.
Em Póvoa do Varzim, cidade próxima ao Porto, participei, pela segunda vez, do encontro anual de escritores de expressão ibérica Correntes D'Escritas, magistralmente coordenados por Manuela Costa Ribeiro e Francisco Guedes. Mais uma vez, esse encontro me deu a oportunidade extraordinária de conviver com escritores que admiro, conhecer novos e reencontrar velhos amigos, e trocar idéias não só sobre a literatura, mas sobre todas as coisas e mais algumas. Correndo o risco de esquecer pessoas entretanto inesquecíveis, destaco as presenças de Ana Paula Tavares, de Angola, de Carlos Quiroga, da Galiza, de Enrique Vila-Matas e Perfecto Cuadrado, da Espanha, e de Fernando Pinto do Amaral, Helder Macedo, Inês Pedrosa, Lídia Jorge, Onésimo Teotónio de Almeida e Ana Luíza Amaral, de Portugal. Ana Luíza recebeu o principal prêmio literário das Correntes D'Escritas pelo seu belo livro A gênese do amor. Foi premiado também o jovem escritor Nuno Atalaia Rodrigues, de quem provavelmente ainda ouviremos muito. Os brasileiros em Póvoa fomos eu, o poeta Eucanaã Ferraz e a escritora Nélida Piñon, que pronunciou a conferência de abertura, "A memória secreta da mulher".
Depois das Correntes D'Escritas, Eucanaã Ferraz e eu fomos para Lisboa, onde, no dia 12, na Fundação Luso-Brasileira de Cultura, em seguida a uma mesa sobre poesia com os poetas portugueses Pedro Tamen e Gastão Cruz, foram pronunciadas, pela ensaísta e professora na Universidade do Porto, Rosa Maria Martelo, belas e perspicazes apresentações do meu livro de ensaios Finalidades sem fim e do livro de poemas de Eucanaã, Rua do mundo, cujas edições portuguesas, da Editora Quasi, acabam de ser lançadas.
No dia seguinte, assistimos ao extraordinário desempenho de Pedro Cardoso no seu O autofalante, no teatro A Barraca. Em seguida ao espetáculo, no bar do teatro, após sermos apresentados ao público pelo maravilhoso ator e recitador de poesia Changuito, fizemos uma leitura de poemas. Eucanaã leu coisas suas, li coisas minhas e Pedro Cardoso leu trechos de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima.
Hoje, no jornal Expresso, de Lisboa, o crítico literário Francisco Belard, escrevendo sobre as Correntes D'Escrita, intitula seu artigo "Póvoa, rua do mundo". Cito a seguir o trecho em que ele se refere a mim e a Eucanaã:
"O título a que recorro acima é porém tomado a Eucanaã Ferraz, poeta brasileiro que uma vez mais nos visitou, para apresentar Rua do Mundo (Quasi, 2007). Mas também ele o tomou de empréstimo à lisboeta Rua do Mundo (ou de «O Mundo», jornal extinto), hoje Rua da Misericórdia, como ressalta do poema com o mesmo título. Nessa rua viveu Luiza Neto Jorge, como Eucanaã sabe e lembrou. É o quarto livro do autor (a edição brasileira é de 2004) e o segundo a sair entre nós, depois de Desassombro (2001). Uma leitura penetrante da sua obra em relação com outras poéticas é feita no posfácio por Rosa Maria Martelo.
"Eucanaã é um dos autores a quem outro brasileiro presente na Póvoa, Antonio Cicero, agradece «sugestões e estímulo» na introdução à recolha de ensaios Finalidades sem Fim (Quasi, 2007, dedicando-lhe um deles, «Poesia e filosofia»), um dos mais importantes livros que por ali passaram sem dar muito nas vistas, o que não causa espanto, pois os romances e os romancistas costumam provocar maior alarido e atraem mais pedidos de autógrafos e de entrevistas. Já ali encontráramos Cicero, com os poemas de A Cidade e os Livros (2006) e um CD brasileiro de poesia dita por ele. Se andássemos à procura de coincidências, podíamos notar que a frase de Blanchot segundo a qual a literatura se encaminha «para a sua essência, que é o desaparecimento» (1959), surge num dos estudos de Cicero e no texto ficcional de Vila-Matas Doutor Pasavento (Teorema, 2007). Nenhum deles mostra aderir à frase, que em Vila-Matas podia mesmo desviar-se do uso metafórico para ser o recurso literal de um tema, o desaparecimento físico, que assombra parodicamente ficções do escritor barcelonês. Mas esses dois autores, cujas obras não podiam ser mais diferentes, manifestam aguda consciência da literariedade, do espaço literário ou da experiência dos limites e ainda da reflexão crítica e respectiva subversão."
10.2.07
PROVA
PROVA
Para José Miguel Wisnik
Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.
A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.
Para José Miguel Wisnik
Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.
A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.
8.2.07
A MORTE DE ARQUIMEDES DE SIRACUSA
A MORTE DE ARQUIMEDES DE SIRACUSA
Os equilíbrios dos planos, as quadraturas
das parábolas, os cálculos da areia,
das esferas, dos cilindros e das estrelas:
nada do que realizei se encontra à altura
do que há por fazer. A matemática é longa,
a vida breve; e logo agora Siracusa,
sitiada, quer alavancas, catapultas,
dispositivos catóptricos, cuja obra
suga meu sangue, que é meu tempo. Por milagre,
hoje deixaram-me em paz. Na garganta trago
intuições por formular: áspero e amargo
pássaro engasgado. Nas paredes não cabe
mais diagrama algum. Traço-os no chão do períbolo,
na terra. Quem vem lá? Não pises nos meus círculos!
Os equilíbrios dos planos, as quadraturas
das parábolas, os cálculos da areia,
das esferas, dos cilindros e das estrelas:
nada do que realizei se encontra à altura
do que há por fazer. A matemática é longa,
a vida breve; e logo agora Siracusa,
sitiada, quer alavancas, catapultas,
dispositivos catóptricos, cuja obra
suga meu sangue, que é meu tempo. Por milagre,
hoje deixaram-me em paz. Na garganta trago
intuições por formular: áspero e amargo
pássaro engasgado. Nas paredes não cabe
mais diagrama algum. Traço-os no chão do períbolo,
na terra. Quem vem lá? Não pises nos meus círculos!
6.2.07
Entrevista a Francisco Bosco, para a Cult
Aproveito para postar neste blog alguns artigos e entrevistas que, embora já publicados em periódicos, ou bem eu gostaria que tivessem um pouco mais de circulação, ou bem não puderam aparecer integralmente, por questão de espaço. Assim, a seguir, publico a entrevista que dei à revista CULT nº 106, de outubro de 2006. Alguns de seus temas, como o das eleições, já passaram, mas a maior parte continua atual. Orgulho-me do fato de que o poeta e ensaísta Francisco Bosco, que muito admiro, me tenha introduzido aos leitores com palavras tão generosas.
Antonio Cicero é autor de alguns dos mais belos poemas da poesia brasileira contemporânea, os quais só se tornaram públicos, em livro, tardiamente, quando do lançamento de Guardar (Record: 1997), que venceria naquele ano o Prêmio Nestlé de Literatura. A este volume seguiu-se, em intervalo felizmente curto para os leitores, sua nova reunião de poemas, A Cidade e os Livros (Record: 2000). Cicero também vem contribuindo, desde o final da década de 1970, inicialmente com a irmã, a cantora Marina Lima, e depois também junto a diversos outros compositores, com algumas das mais belas canções da música brasileira. Mas esse poeta de dicção sóbria e elegante, de versos a um tempo clássicos e contemporâneos, profundos e superficiais, nítidos e delicados é também um filósofo contundente e cortante, para quem a filosofia não pode perder de vista que sua tarefa fundamental é intervir politicamente, pelo exercício crítico da razão, no mundo. A partir da publicação dos ensaios de O Mundo Desde o Fim (Francisco Alves:1995), Antonio Cicero mostrou-se um intérprete experimentado e original do Brasil e seus impasses, da modernidade e seus paradoxos. No ano passado, Cicero lançou uma nova reunião de ensaios, Finalidades Sem Fim (Companhia das Letras: 2005), em que traz a público sobretudo uma perspectiva da relação entre vanguardas e modernidade que não é menos que incontornável para o debate contemporâneo sobre esses problemas. É o pensamento desse personagem brilhante da cultura brasileira que a CULT ora oferece a seus leitores, em entrevista em que Cicero fala de política e democracia, comenta o saldo do governo Lula, dispara contra os ataques que a racionalidade e a modernidade (no fundo, para ele, uma coisa só) vêm sofrendo no mundo inteiro, discorre sobre as vanguardas, esclarece algumas questões polêmicas da arte contemporânea e fala sobre seu novo livro de poemas. O leitor poderá comprovar que, subjacente a tudo, o que rege esse pensamento é um imperativo da liberdade, contra os que abertamente a atacam e contra aqueles que, pensando estarem defendendo-a, estão no fundo agindo como seus inimigos. Francisco Bosco
CULT - Vamos começar falando de seu livro mais recente, Finalidades Sem Fim (Companhia das Letras, 2005). Nele, você defende que “o fim da vanguarda não é o fim da modernidade, mas, ao contrário, a sua plena realização”. Gostaria de que você explicasse, primeiramente, por que não pode haver, hoje, uma arte de vanguarda; e, em seguida, por que essa própria impossibilidade, ao invés de decretar o fim da modernidade, como muitos pensam, atesta a sua “plena realização”.
ANTONIO CICERO - Não pode mais haver arte de vanguarda porque a vanguarda já cumpriu sua função e nem precisa nem pode fazê-lo mais de uma vez. Como se sabe, “vanguarda”, de “avant-garde”, significava originalmente o destacamento adiantado, precursor, que indicava o caminho pelo qual se daria o progresso do grosso do exército. A idéia de vanguarda pressupõe, portanto, a de progresso. De que progresso se trata, no caso da arte? Não existe progresso propriamente artístico ou estético. Quem é melhor, por exemplo, do que Homero, que conhecemos como o primeiro poeta, do ponto de vista cronológico, do Ocidente?
Por outro lado – para ficarmos no exemplo da poesia – é possível haver progresso cognitivo, permitido principalmente graças ao emprego da escrita. Esse progresso pode ser considerado como uma espécie de desprovincianização ou cosmopolitização da poesia. Trata-se do reconhecimento de que as formas tradicionais de se fazer poesia não são as únicas possíveis; de que podemos empregar formas inventadas em culturas diferentes da nossa (como, por exemplo, o haicai); de que podemos recuperar formas antigas (como a sextina), de que podemos inventar novas formas (como o faz a poesia concreta): trata-se, portanto, do reconhecimento de que não podemos a priori excluir nenhuma forma, nenhuma experimentação. Isso significa também reconhecer que a poesia não se encontra em técnica nenhuma: que ela não consiste em técnica nenhuma. Ora, foi a vanguarda que acelerou o processo que nos obrigou a esse reconhecimento. Ao chegarmos a esse ponto, porém, ela já cumpriu a sua função e só lhe resta deixar de existir.
Ainda há, é claro, poesia experimental. Em certo sentido, uma vez que a poesia não é uma técnica, toda poesia de verdade é experimental: mas mesmo a poesia que se considera mais propriamente experimental, por pesquisar novas linguagens, novas técnicas etc., já deixou de ser de vanguarda, pois se encontra apenas ao lado, mas não à frente, nem sequer do ponto de vista cognitivo, das outras formas, todas igualmente legítimas, de poesia.
Pois bem, uma das características da modernidade é exatamente a desprovincianização, comopolitização e universalização do mundo: as vanguardas (às vezes involuntariamente) levaram a cabo esse processo na esfera das artes. Assim, tendo cumprido sua missão, elas deixaram de existir.
CULT - Em Teoria da vanguarda, Peter Bürger afirma que as vanguardas são um movimento de contestação da “instituição arte”, o que difere essencialmente de apenas uma ruptura com princípios estéticos de um momento histórico imediatamente anterior. Trata-se de uma tentativa de reconectar a arte com a praxis vital, desligamento que teria ocorrido, progressivamente, segundo Bürger, com o advento da burguesia e a perda da função social da arte. O que você pensa sobre isso?
AC - Em primeiro lugar, penso que Bürger comete um erro ao identificar a vanguarda, basicamente, com o dadaísmo e o surrealismo e, em particular, com o momento anti-arte desses movimentos, desprezando os vários modernismos: ou pior, anacronicamente relegando-os a um momento histórico anterior. Onde ficam, por exemplo, o simbolismo, o expressionismo, o suprematismo, o construtivismo? Mesmo o cubismo, que ele cita, no fundo não cabe no esquema dele, pois não contesta a instituição arte. A vanguarda que Adorno defende, por exemplo – Kafka, Schönberg, Beckett –, nada tem a ver com a dele. E que dizer dos “nossos” Mallarmé, Pound, Joyce?
A verdade é que as vanguardas foram várias e apenas uma parte pequena, embora ruidosa, dela foi anti-arte. De todo modo, independentemente das intenções que tiveram, parece-me que, ao contrário do que supõe Bürger, um dos resultados cognitivos da atuação contraditória das vanguardas acabou sendo exatamente a realização plenamente autoconsciente da autonomia da arte, que, embora descoberta pelo pensamento filosófico desde Kant, não havia sido incorporada pelo pensamento propriamente artístico antes dessa atuação.
De todo modo, penso que a autonomia da arte foi uma descoberta (não uma invenção) da filosofia moderna. É verdade que, entre as condições para que ela pudesse ser percebida, estavam o colapso da hegemonia do pensamento cristão, por um lado, e o impulso do pensamento crítico, por outro; e que isso, por sua vez, torna-se possível a partir do ressurgimento do individualismo e da vida urbana, do crescimento da burguesia, da decadência do feudalismo, da reforma, do humanismo etc. Essas são, aliás, também as condições para o surgimento da ciência moderna. Pois bem, assim como não se pode dizer que, em conseqüência da pressuposição dessas condições, a ciência moderna seja ideológica, tampouco se pode dizer que a autonomia da arte o seja.
A autonomia da arte significa que ela não pode ser confundida com a vida, nem ser posta a serviço dela ou de qualquer outra coisa. É necessário que haja uma esfera da atividade humana que valha por si, isto é, que seja capaz de instrumentalizar todas as demais, sem ser, ela mesma, enquanto tal, instrumentalizável. Essa é a esfera da arte. São aqueles que não gostam de arte, aqueles que querem explorar a arte, os parasitas – religiosos, políticos, mercantis – da arte, que lhe querem atribuir uma função social. A esse propósito, costumo lembrar o extraordinário título de um livro de Carlos Drummond de Andrade: A vida passada a limpo. Dizer que a poesia é a vida passada a limpo é dizer que a vida é o rascunho da poesia. Isso significa que o fim da vida é virar poesia. Por essa razão, longe de ser um meio (por exemplo, um meio de “expressão” ou de “comunicação”) para o poeta enquanto poeta, a poesia é o seu fim. Ora, dado que o fim subordina os meios, e não vice-versa, não é o poeta que instrumentaliza a poesia, mas a poesia que instrumentaliza todo o intelecto, toda a sensibilidade, toda a intuição, toda a razão, toda a experiência, todo o vocabulário, todo o conhecimento, todo o senso de humor, toda a cultura do poeta.
Assim, numa época em que “tempo é dinheiro” (ou poder), a poesia se compraz em esbanjar o tempo do poeta. Mas o poema em que a poesia esbanjou o tempo do poeta é aquele que também dissipará o tempo do leitor ideal, que se permite flanar pelas linhas dos poemas que merecem uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não-linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. E esse jogo livre das faculdades vale por si e não em virtude de qualquer outra coisa: o seu valor é imanente.
CULT - Pergunto-me se essa sua defesa intransigente da autonomia da arte não implica a afirmação da “pureza” da arte e da estética e, em conseqüência, se ela não recai num extremo formalismo.
AC - Não, porque não há uma faculdade especificamente estética. Na arte, o conteúdo é forma e a forma é conteúdo. Assim como o artista usa todas as suas faculdades para produzir a obra, assim também aquele que a aprecia esteticamente usa, para tanto, todas as faculdades de que dispõe. Como eu disse, a razão, o intelecto, a sensibilidade, a intuição, o humor etc.: tudo entra em jogo, quando se julga uma obra de arte. Quando leio um poema, por exemplo, não ponho entre parênteses a política, tal como se manifesta naquela obra; entretanto, a política se converte em apenas um dos elementos através dos quais julgo aquela obra: e ela é mediatizada por todos os demais, que, por sua vez, são por ela mediatizados.
CULT - No ensaio “Poesia e paisagens urbanas” você afirma, em determinado ponto, que “o poeta moderno – e ‘moderno’ aqui quer dizer: que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu – é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas...” Isso significa que agora vale tudo?
AC - Não. O que isso significa é simplesmente o reconhecimento do fato de que não se pode, a priori, determinar o que é que vai valer e o que é que não vai valer como poema; ou o que é que vai valer e o que é que não vai valer num poema. E é evidente que não se pode determinar a priori (mas jamais se pôde, de fato) o que é que vai valer como um poema bom e o que é que não vai valer como tal. A verdade é que não há critérios abstratos e universais para determinar se um poema é bom ou não é. É preciso examinar caso por caso. Temos que inventar os critérios do juízo de cada poema. É de fato assim e é assim que deve ser.
CULT - Mas há quem diga, por exemplo, que uma forma tão gasta quanto a do soneto não pode mais ser usada, a não ser ironicamente. O que você pensa disso?
AC - Não posso aceitar nem mesmo essa regra. Há algumas décadas, afirmava-se peremptoriamente que o soneto estava morto. Afinal, trata-se de uma forma desenvolvida na Idade Média, sete ou oito séculos atrás, e prodigamente usada e abusada, em todas as línguas européias modernas. Como poderia resistir ao novo mundo do telégrafo, do telefone, da televisão? Mas hoje é impossível negar a qualidade e a atualidade dos sonetos de Paulo Henriques Britto, por exemplo. Para explicar essa incongruência, apela-se então, ad hoc, à ironia: os sonetos de Paulo Henriques Britto seriam exceções, graças à ironia. Pois bem, os sonetos de PHB foram escritos uns sete séculos depois dos de Petrarca. Em 1985, uns quinze anos antes dos sonetos de PHG, mas ainda uns sete séculos depois de Petrarca, Jorge Luiz Borges publicou inúmeros sonetos, que são verdadeiras obras-primas, no seu livro Los conjurados. Serão irônicos? Não mais do que toda a obra de Borges. Em todo caso, não são nada irônicos em relação ao soneto enquanto forma. Alguns anos antes, mas ainda uns sete séculos depois de Petrarca, Drummond publicara, sem ironia, outros tantos sonetos que também são obras-primas. Um pouco antes, mas também séculos depois de Petrarca, Rilke, Yeats, Mallarmé... e assim por diante. Como se pode decretar que não surgirão sonetos extraordinários nos próximos anos? Ou decretar como devem ser para serem aceitos? É claro que há sonetos e sonetos, e que quase todos os sonetos são ruins. Mas a verdade é que quase todos os poemas são ruins. Por que essa mania de cagar regras? A única regra necessária é: julgue-se caso por caso, e sempre a posteriori.
CULT - Outra questão importante de seu livro é aquela sobre a relação entre poesia e filosofia. A contrapelo de uma forte tendência do século XX, que é a da mistura dos gêneros, você defende uma nítida delimitação entre a filosofia e a poesia. Por quê?
AC - O questionamento dos gêneros artísticos é inevitável, pois faz parte do processo moderno de crítica e questionamento de tudo o que não se justifique racionalmente. Do mesmo modo, é exatamente porque não se justifica racionalmente exigir que determinado preceito seja seguido, na feitura de um poema, que não podemos excluir nenhuma forma a priori. Tudo o que não se justifica racionalmente, tudo o que se baseia meramente em convenção ou tradição é para nós, modernos, preconceito. Assim ocorre com os gêneros artísticos. Entretanto, nem tudo é arte. Existem também a vida prática, a ciência, a filosofia, a tecnologia, a moral, a política, a religião... E a tentativa de reduzir tudo à mesma coisa (como confundir religião e política, ciência e religião, política e ciência, moral e religião etc.) não apenas não é racional, mas é nociva. Ela só se justificaria se essas distinções fossem meros produtos da convenção ou da tradição. Mas não é assim. Essas distinções são também racionais. Enquanto, por exemplo, num poema, um enunciado funciona como um objeto estético, de modo que, enquanto poema, ele não cumpre nenhuma função prática (que importa, para quem lê “No meio do caminho” se algum dia houve realmente uma pedra no caminho de Drummond?), fora da poesia os enunciados normalmente funcionam como atos que cumprem funções práticas, tais como interrogar, ordenar, agradecer, informar, orientar, afirmar etc. Assim, dizer que filosofia e poesia são a mesma coisa é ou bem atribuir funções práticas à poesia (o que atenta contra a autonomia da arte que aqui defendo, de modo que, a meu ver, prejudica a poesia) ou bem retirar as funções práticas – cognitivas e racionais – da filosofia (o que conduz ao irracionalismo e incorre em autocontradição performativa, pois a afirmação de que a filosofia não é capaz de conhecer coisa alguma, sendo de natureza filosófica, nega a sua própria pretensão cognitiva).
CULT - Diferentemente do que se passa com a literatura, em que, apesar da insularidade do português, o Brasil possui obras de indisputável valor e reconhecimento internacional (como as de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector), parece não haver uma produção filosófica original no Brasil. Muniz Sodré argumenta que uma tal originalidade estaria numa certa “historiosofia” brasileira, que incluiria as obras de Gilberto Freyre, Sergio Buarque, etc. O que você pensa a respeito?
AC - Penso que toda filosofia é pensamento, mas nem todo pensamento – nem mesmo todo pensamento profundo – é filosofia. Temos grandes pensadores nas áreas das artes, da literatura, da história etc., mas não devemos escamotear as nossas fraquezas: o fato é que não ainda não temos uma tradição filosófica e devemos nos esforçar para construí-la.
CULT - Você pratica a filosofia, o poema e a letra de música; como é a convivência desses três registros díspares na sua produção? Em algum momento é uma relação conturbada? Há alguma dessas práticas que lhe dá maior prazer? Você se sente mais filósofo, mais poeta, mais letrista - ou não existe essa espécie de centro?
AC - A relação é muitas vezes conturbada, porque cada uma dessas coisas exige o meu tempo, e este é cada vez mais escasso. A prática que me dá maior prazer é a de fazer um poema. E é a que exige mais de mim. A de filosofia, porém, é mais urgente, porque representa uma intervenção, em última análise, política, no mundo. É como se eu tivesse obrigação moral de dizer o que penso ter compreendido através do pensamento filosófico. A prática de fazer letra de música é diferente porque, no meu caso, ela só pode ser feita com um parceiro. Considero-me privilegiado por ter parceiros que são meus amigos e que admiro imensamente, como Marina Lima, Adriana Calcanhotto, João Bosco, Lulu Santos, Orlando Moraes. Mas é claro que não tenho tanta liberdade quanto quando escrevo um poema, já que a letra é feita para fazer parte de uma canção. Por um lado, é um trabalho mais fácil, porque a melodia e as idéias do próprio parceiro sobre a canção a ser feita podem ajudar a desencadear o processo de composição; por outro lado, é mais difícil, justamente por envolver outra pessoa. Quanto a me considerar mais isto ou aquilo, considero-me poeta, em primeiro lugar.
CULT - Assim como há, para você, uma diferença fundamental entre poesia e filosofia, há também quanto ao poema e a letra de música? Quando você escreve um poema ou uma letra, são técnicas distintas que estão em jogo?
AC - A principal diferença é, naturalmente, que a letra é heterotélica (tem seu fim fora de si, na canção), enquanto o poema é autotélico (tem seu fim em si próprio). As técnicas são diferentes porque, normalmente, faço uma letra para uma melodia já existente. Por um lado, levo em conta o clima geral da melodia, que me sugere logo algumas idéias; por outro lado, essa melodia funciona como uma forma fixa, que me obriga a determinada métrica, determinado ritmo etc. O que importa, quando faço uma letra, é que ela contribua para a produção de uma grande canção, e não que seja um grande poema.
CULT - Sua poesia é clara, nítida, você trabalha muitas vezes com formas fixas, é um admirador declarado do poeta latino Horácio, lê grego antigo e até homérico; pode-se dizer que, sem prejuízo de sua contemporaneidade, Antonio Cicero é um poeta clássico?
AC - Na verdade, sou a última pessoa a querer qualificar a minha produção poética, pois entendo as qualificações como restritivas. No caso de “clássico”, um outro problema me inibiria: é que entendo a palavra no sentido definido por Naphta, personagem de A montanha mágica, de Thomas Mann. Segundo ele, clássico é o ponto em que uma idéia chega à sua culminância. Nesse sentido, seria até cabotino que eu me chamasse de clássico. Por outro lado, mesmo não me qualificando de clássico, é verdade que amo a literatura e as línguas clássicas, que não considero estrangeiras, mas nossas. Acho que latim e grego deviam voltar a fazer parte do currículo primário.
CULT - Você estudou lógica em sua formação filosófica, tem em Kant talvez sua principal referência filosófica e define-se como um racionalista liberal. A política mundial, entretanto, está polarizada por fundamentalismos religiosos e ameaçada por populistas obtusos com ideologias retrógradas. Você acha que o mundo está se tornando cada vez mais irracional?
AC - Em certo sentido, sim. Mas penso que o irracionalismo contemporâneo é principalmente uma reação às possibilidades de liberdade que o mundo contemporâneo oferece. Por medo da sociedade aberta, busca-se refúgio em comunidades fechadas, como as religiosas. E uma sociedade é tanto mais fechada quanto mais irracional, pois a racionalidade é, em princípio, aberta e universal. É um equívoco pensar que exista um conflito entre o Ocidente, ou os valores do Ocidente e os valores islâmicos, por exemplo. O conflito que há é entre a modernidade (que não é ocidental ou oriental, mas universal) e a pré- ou anti-modernidade, que pode ser muçulmana, cristã (como no sul dos Estados Unidos) etc. Dentro dos Estados Unidos mesmos, esse conflito é muito grave. Com o governo Bush, uma parcela relativamente pequena, porém totalmente inescrupulosa da burguesia norte-americana, sob a liderança das corporações petrolíferas e armamentistas, e aliada às maiores cadeias de televisão, rádio e da imprensa do país, procura destruir os fundamentos da sociedade aberta e os direitos individuais, e promover o obscurantismo religioso, como caminho para a instauração de um governo plutocrático descarado e cínico. Tentam, por exemplo, arruinar o sistema de checks and balances que mantinha separados os poderes executivo, legislativo e judiciário. Este último está sendo objeto de uma campanha de desmoralização tremenda, posta em prática pelo governo Bush e pela imprensa de direita. Para cumprir sua agenda anti-moderna, o governo Bush tem como aliados objetivos os terroristas muçulmanos. Não acredito em inevitabilidade histórica. Até pouco tempo, era senso comum na esquerda que os democratas e republicanos eram farinha do mesmo saco. Hoje, é claro que a diferença entre o governo Clinton e o governo Bush não poderia ser maior. Penso que a racionalidade – como a ciência – tende a se impor porque ela é o chão onde se quebram as ilusões que acabam por cair, pois, ao contrário destas, ela não é nada de particular ou contingente, mas algo de universal e necessário; entretanto, não é impossível que os irracionalistas consigam destruir o mundo.
CULT - Você afirma que “o paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente”. Você acha que, quanto a este paradoxo, o Brasil mudou nesses últimos anos de economia mais estável e consolidação da democracia?
AC - Acho que tem melhorado, mas muito lentamente.
CULT - Como você avalia o governo Lula? Você votou nele nas últimas eleições? Pretende votar na de agora?
AC - O PT tinha tornado o governo Fernando Henrique quase inoperante, fazendo incessantemente denúncias incomprovadas porém paralisantes, e bloqueando todas as reformas que se faziam necessárias e que, ao chegar ao poder, o próprio Lula tentaria realizar. Era a política do “quanto pior, melhor”. Indignado com essa política, que prejudicava o Brasil como um todo, votei no Serra, no primeiro turno. Depois, comecei a achar que, se o Serra ganhasse o segundo turno, haveria uma radicalização imensa no PT, pois ganhariam força os militantes que, acusando a democracia de ser puramente formal, e alegando que “as elites brasileiras” jamais deixariam um operário chegar a ser presidente, queriam, no fundo, promover uma guerra civil. Além disso, seria ainda mais difícil para o Serra governar do que havia sido para o FH.
Pareceu-me então, primeiro, que a experiência de ter um presidente de origem operária seria realmente importante para consolidar a democracia brasileira; segundo, que a sua vitória enfraqueceria essas correntes anti-legalistas no interior do PT; terceiro, que ele teria maior capacidade de governar do que o Serra. Votei, então, no Lula.
Quanto ao governo dele, tenho sentimentos contraditórios. Não posso senão aplaudir o fato de que ele tenha conseguido, segundo todas as pesquisas, reduzir significativamente – embora ainda pouco – a pobreza e a desigualdade social no Brasil. Aplaudo também o fato de que ele tenha conseguido fazer isso sem abrir mão de continuar a controlar a inflação. Para mim, isso é muito importante, pois sou de uma geração que conheceu o horror da inflação descontrolada.
Por outro lado, é claro que fiquei indignado com o mensalão. Quero crer, porém, que ele foi concebido principalmente por membros daquela corrente do PT que despreza a democracia formal e que me parece ter saído enfraquecida com esse episódio.
Quanto às próximas eleições, eu talvez votasse no Serra, se ele fosse candidato; mas não voto no Alkmin, cujas ligações com a Igreja Católica não são claras, para mim. Convencido de que os pontos positivos do governo Lula são maiores do que os negativos, vou provavelmente votar nele. A única coisa que me deixa receoso é essa idéia golpista de convocar uma constituinte. Acho que ele devia publicamente voltar atrás, nessa questão. Tenho horror à idéia de uma democracia plebiscitária, isto é, de uma ditadura da maioria. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras de Mussolini, de Hitler, de Stalin e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, “democráticas”. A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só. Por isso, o que é realmente imprescindível numa democracia não são as eleições nem o governo da maioria, mas o império da lei, a abertura da sociedade, os direitos civis, a liberdade e a pluralidade da imprensa.
CULT - O que você acha do Estatuto de Igualdade Racial?
AC - Sou inteiramente contra. Não há raças humanas. Os norte-americanos brancos racionalizaram e oficializaram o seu racismo com base na crença nas ficções que são as raças biológicas. Os próprios movimentos anti-racistas americanos acreditaram nessas ficções e nelas se basearam. Por isso, pensam que o racismo é um fenômeno universal, e que negar que ele exista seja uma forma mais insidiosa de praticá-lo. Aqui, nunca se acreditou propriamente em raça. Reconhecemos apenas diferenças epidérmicas entre as pessoas. Por isso, as raças nunca foram oficializadas, o que é bom; e isso facilitou a miscigenação, o que tornou ainda mais inaplicável o conceito de raça. Como eu digo no meu ensaio “Brasil feito brasa”, no Brasil, ao contrário do que se dá nos Estados Unidos, a exceção é o negro, o branco ou o índio que se considere "puro". Pode dizer-se que, aqui, cada ser humano parece resultar de uma combinação singular de características de cada uma dessas e de outras raças. Longe de significar homogeneização racial, isso sugere que, no limite, cada brasileiro tende a ser a expressão de uma raça individual. Esse oximoro exprime o fato de que, através não da redução, mas da multiplicação das diferenças, entrevê-se no Brasil, a longo prazo, a pulverização -- ou melhor, a dissolução -- racial. Devemos fazer campanhas anti-racistas, não com base na ficção da existência de raças, mas, ao contrário, na demonstração de que crer em tais ficções não é coisa digna de uma pessoa inteligente. Mas, principalmente, devemos promover a eliminação de qualquer pretensão racista, através do aprofundamento das políticas que contribuam para reduzir as desigualdades sociais – que, estas sim, são inteiramente reais – e através de investimentos maciços que, efetivamente, universalizem o acesso a uma educação elementar e média de qualidade.
15. Fale sobre o seu novo livro de poemas.
Diferentemente dos outros, comecei esse livro com um título, que no entanto, talvez seja modificado: Prova. É que esse foi o título do primeiro poema que escrevi para ele. Também diferentemente dos outros, fiz um projeto para esse livro, de modo a poder solicitar a Bolsa Vitae, para escrevê-lo. De fato, felizmente, fui contemplado com essa bolsa, sem a qual não creio que tivesse podido terminá-lo tão cedo. O livro me parece ter ficado muito diferente dos outros, mas não sei dizer bem em que sentido. Não planejei essa diferença. Não sou de planejar. Gosto de deixar o poema se descobrir para mim e de tratar o acaso como se fosse o destino. Mas o fato é que eles foram ficando diferentes. Alguns, por exemplo, são mais longos do que o que era normal para mim. Alguns são mais narrativos. Não dá para falar muito, porque, sinceramente, não sei bem falar sobre os meus próprios poemas.
Antonio Cicero é autor de alguns dos mais belos poemas da poesia brasileira contemporânea, os quais só se tornaram públicos, em livro, tardiamente, quando do lançamento de Guardar (Record: 1997), que venceria naquele ano o Prêmio Nestlé de Literatura. A este volume seguiu-se, em intervalo felizmente curto para os leitores, sua nova reunião de poemas, A Cidade e os Livros (Record: 2000). Cicero também vem contribuindo, desde o final da década de 1970, inicialmente com a irmã, a cantora Marina Lima, e depois também junto a diversos outros compositores, com algumas das mais belas canções da música brasileira. Mas esse poeta de dicção sóbria e elegante, de versos a um tempo clássicos e contemporâneos, profundos e superficiais, nítidos e delicados é também um filósofo contundente e cortante, para quem a filosofia não pode perder de vista que sua tarefa fundamental é intervir politicamente, pelo exercício crítico da razão, no mundo. A partir da publicação dos ensaios de O Mundo Desde o Fim (Francisco Alves:1995), Antonio Cicero mostrou-se um intérprete experimentado e original do Brasil e seus impasses, da modernidade e seus paradoxos. No ano passado, Cicero lançou uma nova reunião de ensaios, Finalidades Sem Fim (Companhia das Letras: 2005), em que traz a público sobretudo uma perspectiva da relação entre vanguardas e modernidade que não é menos que incontornável para o debate contemporâneo sobre esses problemas. É o pensamento desse personagem brilhante da cultura brasileira que a CULT ora oferece a seus leitores, em entrevista em que Cicero fala de política e democracia, comenta o saldo do governo Lula, dispara contra os ataques que a racionalidade e a modernidade (no fundo, para ele, uma coisa só) vêm sofrendo no mundo inteiro, discorre sobre as vanguardas, esclarece algumas questões polêmicas da arte contemporânea e fala sobre seu novo livro de poemas. O leitor poderá comprovar que, subjacente a tudo, o que rege esse pensamento é um imperativo da liberdade, contra os que abertamente a atacam e contra aqueles que, pensando estarem defendendo-a, estão no fundo agindo como seus inimigos. Francisco Bosco
CULT - Vamos começar falando de seu livro mais recente, Finalidades Sem Fim (Companhia das Letras, 2005). Nele, você defende que “o fim da vanguarda não é o fim da modernidade, mas, ao contrário, a sua plena realização”. Gostaria de que você explicasse, primeiramente, por que não pode haver, hoje, uma arte de vanguarda; e, em seguida, por que essa própria impossibilidade, ao invés de decretar o fim da modernidade, como muitos pensam, atesta a sua “plena realização”.
ANTONIO CICERO - Não pode mais haver arte de vanguarda porque a vanguarda já cumpriu sua função e nem precisa nem pode fazê-lo mais de uma vez. Como se sabe, “vanguarda”, de “avant-garde”, significava originalmente o destacamento adiantado, precursor, que indicava o caminho pelo qual se daria o progresso do grosso do exército. A idéia de vanguarda pressupõe, portanto, a de progresso. De que progresso se trata, no caso da arte? Não existe progresso propriamente artístico ou estético. Quem é melhor, por exemplo, do que Homero, que conhecemos como o primeiro poeta, do ponto de vista cronológico, do Ocidente?
Por outro lado – para ficarmos no exemplo da poesia – é possível haver progresso cognitivo, permitido principalmente graças ao emprego da escrita. Esse progresso pode ser considerado como uma espécie de desprovincianização ou cosmopolitização da poesia. Trata-se do reconhecimento de que as formas tradicionais de se fazer poesia não são as únicas possíveis; de que podemos empregar formas inventadas em culturas diferentes da nossa (como, por exemplo, o haicai); de que podemos recuperar formas antigas (como a sextina), de que podemos inventar novas formas (como o faz a poesia concreta): trata-se, portanto, do reconhecimento de que não podemos a priori excluir nenhuma forma, nenhuma experimentação. Isso significa também reconhecer que a poesia não se encontra em técnica nenhuma: que ela não consiste em técnica nenhuma. Ora, foi a vanguarda que acelerou o processo que nos obrigou a esse reconhecimento. Ao chegarmos a esse ponto, porém, ela já cumpriu a sua função e só lhe resta deixar de existir.
Ainda há, é claro, poesia experimental. Em certo sentido, uma vez que a poesia não é uma técnica, toda poesia de verdade é experimental: mas mesmo a poesia que se considera mais propriamente experimental, por pesquisar novas linguagens, novas técnicas etc., já deixou de ser de vanguarda, pois se encontra apenas ao lado, mas não à frente, nem sequer do ponto de vista cognitivo, das outras formas, todas igualmente legítimas, de poesia.
Pois bem, uma das características da modernidade é exatamente a desprovincianização, comopolitização e universalização do mundo: as vanguardas (às vezes involuntariamente) levaram a cabo esse processo na esfera das artes. Assim, tendo cumprido sua missão, elas deixaram de existir.
CULT - Em Teoria da vanguarda, Peter Bürger afirma que as vanguardas são um movimento de contestação da “instituição arte”, o que difere essencialmente de apenas uma ruptura com princípios estéticos de um momento histórico imediatamente anterior. Trata-se de uma tentativa de reconectar a arte com a praxis vital, desligamento que teria ocorrido, progressivamente, segundo Bürger, com o advento da burguesia e a perda da função social da arte. O que você pensa sobre isso?
AC - Em primeiro lugar, penso que Bürger comete um erro ao identificar a vanguarda, basicamente, com o dadaísmo e o surrealismo e, em particular, com o momento anti-arte desses movimentos, desprezando os vários modernismos: ou pior, anacronicamente relegando-os a um momento histórico anterior. Onde ficam, por exemplo, o simbolismo, o expressionismo, o suprematismo, o construtivismo? Mesmo o cubismo, que ele cita, no fundo não cabe no esquema dele, pois não contesta a instituição arte. A vanguarda que Adorno defende, por exemplo – Kafka, Schönberg, Beckett –, nada tem a ver com a dele. E que dizer dos “nossos” Mallarmé, Pound, Joyce?
A verdade é que as vanguardas foram várias e apenas uma parte pequena, embora ruidosa, dela foi anti-arte. De todo modo, independentemente das intenções que tiveram, parece-me que, ao contrário do que supõe Bürger, um dos resultados cognitivos da atuação contraditória das vanguardas acabou sendo exatamente a realização plenamente autoconsciente da autonomia da arte, que, embora descoberta pelo pensamento filosófico desde Kant, não havia sido incorporada pelo pensamento propriamente artístico antes dessa atuação.
De todo modo, penso que a autonomia da arte foi uma descoberta (não uma invenção) da filosofia moderna. É verdade que, entre as condições para que ela pudesse ser percebida, estavam o colapso da hegemonia do pensamento cristão, por um lado, e o impulso do pensamento crítico, por outro; e que isso, por sua vez, torna-se possível a partir do ressurgimento do individualismo e da vida urbana, do crescimento da burguesia, da decadência do feudalismo, da reforma, do humanismo etc. Essas são, aliás, também as condições para o surgimento da ciência moderna. Pois bem, assim como não se pode dizer que, em conseqüência da pressuposição dessas condições, a ciência moderna seja ideológica, tampouco se pode dizer que a autonomia da arte o seja.
A autonomia da arte significa que ela não pode ser confundida com a vida, nem ser posta a serviço dela ou de qualquer outra coisa. É necessário que haja uma esfera da atividade humana que valha por si, isto é, que seja capaz de instrumentalizar todas as demais, sem ser, ela mesma, enquanto tal, instrumentalizável. Essa é a esfera da arte. São aqueles que não gostam de arte, aqueles que querem explorar a arte, os parasitas – religiosos, políticos, mercantis – da arte, que lhe querem atribuir uma função social. A esse propósito, costumo lembrar o extraordinário título de um livro de Carlos Drummond de Andrade: A vida passada a limpo. Dizer que a poesia é a vida passada a limpo é dizer que a vida é o rascunho da poesia. Isso significa que o fim da vida é virar poesia. Por essa razão, longe de ser um meio (por exemplo, um meio de “expressão” ou de “comunicação”) para o poeta enquanto poeta, a poesia é o seu fim. Ora, dado que o fim subordina os meios, e não vice-versa, não é o poeta que instrumentaliza a poesia, mas a poesia que instrumentaliza todo o intelecto, toda a sensibilidade, toda a intuição, toda a razão, toda a experiência, todo o vocabulário, todo o conhecimento, todo o senso de humor, toda a cultura do poeta.
Assim, numa época em que “tempo é dinheiro” (ou poder), a poesia se compraz em esbanjar o tempo do poeta. Mas o poema em que a poesia esbanjou o tempo do poeta é aquele que também dissipará o tempo do leitor ideal, que se permite flanar pelas linhas dos poemas que merecem uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não-linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. E esse jogo livre das faculdades vale por si e não em virtude de qualquer outra coisa: o seu valor é imanente.
CULT - Pergunto-me se essa sua defesa intransigente da autonomia da arte não implica a afirmação da “pureza” da arte e da estética e, em conseqüência, se ela não recai num extremo formalismo.
AC - Não, porque não há uma faculdade especificamente estética. Na arte, o conteúdo é forma e a forma é conteúdo. Assim como o artista usa todas as suas faculdades para produzir a obra, assim também aquele que a aprecia esteticamente usa, para tanto, todas as faculdades de que dispõe. Como eu disse, a razão, o intelecto, a sensibilidade, a intuição, o humor etc.: tudo entra em jogo, quando se julga uma obra de arte. Quando leio um poema, por exemplo, não ponho entre parênteses a política, tal como se manifesta naquela obra; entretanto, a política se converte em apenas um dos elementos através dos quais julgo aquela obra: e ela é mediatizada por todos os demais, que, por sua vez, são por ela mediatizados.
CULT - No ensaio “Poesia e paisagens urbanas” você afirma, em determinado ponto, que “o poeta moderno – e ‘moderno’ aqui quer dizer: que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu – é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas...” Isso significa que agora vale tudo?
AC - Não. O que isso significa é simplesmente o reconhecimento do fato de que não se pode, a priori, determinar o que é que vai valer e o que é que não vai valer como poema; ou o que é que vai valer e o que é que não vai valer num poema. E é evidente que não se pode determinar a priori (mas jamais se pôde, de fato) o que é que vai valer como um poema bom e o que é que não vai valer como tal. A verdade é que não há critérios abstratos e universais para determinar se um poema é bom ou não é. É preciso examinar caso por caso. Temos que inventar os critérios do juízo de cada poema. É de fato assim e é assim que deve ser.
CULT - Mas há quem diga, por exemplo, que uma forma tão gasta quanto a do soneto não pode mais ser usada, a não ser ironicamente. O que você pensa disso?
AC - Não posso aceitar nem mesmo essa regra. Há algumas décadas, afirmava-se peremptoriamente que o soneto estava morto. Afinal, trata-se de uma forma desenvolvida na Idade Média, sete ou oito séculos atrás, e prodigamente usada e abusada, em todas as línguas européias modernas. Como poderia resistir ao novo mundo do telégrafo, do telefone, da televisão? Mas hoje é impossível negar a qualidade e a atualidade dos sonetos de Paulo Henriques Britto, por exemplo. Para explicar essa incongruência, apela-se então, ad hoc, à ironia: os sonetos de Paulo Henriques Britto seriam exceções, graças à ironia. Pois bem, os sonetos de PHB foram escritos uns sete séculos depois dos de Petrarca. Em 1985, uns quinze anos antes dos sonetos de PHG, mas ainda uns sete séculos depois de Petrarca, Jorge Luiz Borges publicou inúmeros sonetos, que são verdadeiras obras-primas, no seu livro Los conjurados. Serão irônicos? Não mais do que toda a obra de Borges. Em todo caso, não são nada irônicos em relação ao soneto enquanto forma. Alguns anos antes, mas ainda uns sete séculos depois de Petrarca, Drummond publicara, sem ironia, outros tantos sonetos que também são obras-primas. Um pouco antes, mas também séculos depois de Petrarca, Rilke, Yeats, Mallarmé... e assim por diante. Como se pode decretar que não surgirão sonetos extraordinários nos próximos anos? Ou decretar como devem ser para serem aceitos? É claro que há sonetos e sonetos, e que quase todos os sonetos são ruins. Mas a verdade é que quase todos os poemas são ruins. Por que essa mania de cagar regras? A única regra necessária é: julgue-se caso por caso, e sempre a posteriori.
CULT - Outra questão importante de seu livro é aquela sobre a relação entre poesia e filosofia. A contrapelo de uma forte tendência do século XX, que é a da mistura dos gêneros, você defende uma nítida delimitação entre a filosofia e a poesia. Por quê?
AC - O questionamento dos gêneros artísticos é inevitável, pois faz parte do processo moderno de crítica e questionamento de tudo o que não se justifique racionalmente. Do mesmo modo, é exatamente porque não se justifica racionalmente exigir que determinado preceito seja seguido, na feitura de um poema, que não podemos excluir nenhuma forma a priori. Tudo o que não se justifica racionalmente, tudo o que se baseia meramente em convenção ou tradição é para nós, modernos, preconceito. Assim ocorre com os gêneros artísticos. Entretanto, nem tudo é arte. Existem também a vida prática, a ciência, a filosofia, a tecnologia, a moral, a política, a religião... E a tentativa de reduzir tudo à mesma coisa (como confundir religião e política, ciência e religião, política e ciência, moral e religião etc.) não apenas não é racional, mas é nociva. Ela só se justificaria se essas distinções fossem meros produtos da convenção ou da tradição. Mas não é assim. Essas distinções são também racionais. Enquanto, por exemplo, num poema, um enunciado funciona como um objeto estético, de modo que, enquanto poema, ele não cumpre nenhuma função prática (que importa, para quem lê “No meio do caminho” se algum dia houve realmente uma pedra no caminho de Drummond?), fora da poesia os enunciados normalmente funcionam como atos que cumprem funções práticas, tais como interrogar, ordenar, agradecer, informar, orientar, afirmar etc. Assim, dizer que filosofia e poesia são a mesma coisa é ou bem atribuir funções práticas à poesia (o que atenta contra a autonomia da arte que aqui defendo, de modo que, a meu ver, prejudica a poesia) ou bem retirar as funções práticas – cognitivas e racionais – da filosofia (o que conduz ao irracionalismo e incorre em autocontradição performativa, pois a afirmação de que a filosofia não é capaz de conhecer coisa alguma, sendo de natureza filosófica, nega a sua própria pretensão cognitiva).
CULT - Diferentemente do que se passa com a literatura, em que, apesar da insularidade do português, o Brasil possui obras de indisputável valor e reconhecimento internacional (como as de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector), parece não haver uma produção filosófica original no Brasil. Muniz Sodré argumenta que uma tal originalidade estaria numa certa “historiosofia” brasileira, que incluiria as obras de Gilberto Freyre, Sergio Buarque, etc. O que você pensa a respeito?
AC - Penso que toda filosofia é pensamento, mas nem todo pensamento – nem mesmo todo pensamento profundo – é filosofia. Temos grandes pensadores nas áreas das artes, da literatura, da história etc., mas não devemos escamotear as nossas fraquezas: o fato é que não ainda não temos uma tradição filosófica e devemos nos esforçar para construí-la.
CULT - Você pratica a filosofia, o poema e a letra de música; como é a convivência desses três registros díspares na sua produção? Em algum momento é uma relação conturbada? Há alguma dessas práticas que lhe dá maior prazer? Você se sente mais filósofo, mais poeta, mais letrista - ou não existe essa espécie de centro?
AC - A relação é muitas vezes conturbada, porque cada uma dessas coisas exige o meu tempo, e este é cada vez mais escasso. A prática que me dá maior prazer é a de fazer um poema. E é a que exige mais de mim. A de filosofia, porém, é mais urgente, porque representa uma intervenção, em última análise, política, no mundo. É como se eu tivesse obrigação moral de dizer o que penso ter compreendido através do pensamento filosófico. A prática de fazer letra de música é diferente porque, no meu caso, ela só pode ser feita com um parceiro. Considero-me privilegiado por ter parceiros que são meus amigos e que admiro imensamente, como Marina Lima, Adriana Calcanhotto, João Bosco, Lulu Santos, Orlando Moraes. Mas é claro que não tenho tanta liberdade quanto quando escrevo um poema, já que a letra é feita para fazer parte de uma canção. Por um lado, é um trabalho mais fácil, porque a melodia e as idéias do próprio parceiro sobre a canção a ser feita podem ajudar a desencadear o processo de composição; por outro lado, é mais difícil, justamente por envolver outra pessoa. Quanto a me considerar mais isto ou aquilo, considero-me poeta, em primeiro lugar.
CULT - Assim como há, para você, uma diferença fundamental entre poesia e filosofia, há também quanto ao poema e a letra de música? Quando você escreve um poema ou uma letra, são técnicas distintas que estão em jogo?
AC - A principal diferença é, naturalmente, que a letra é heterotélica (tem seu fim fora de si, na canção), enquanto o poema é autotélico (tem seu fim em si próprio). As técnicas são diferentes porque, normalmente, faço uma letra para uma melodia já existente. Por um lado, levo em conta o clima geral da melodia, que me sugere logo algumas idéias; por outro lado, essa melodia funciona como uma forma fixa, que me obriga a determinada métrica, determinado ritmo etc. O que importa, quando faço uma letra, é que ela contribua para a produção de uma grande canção, e não que seja um grande poema.
CULT - Sua poesia é clara, nítida, você trabalha muitas vezes com formas fixas, é um admirador declarado do poeta latino Horácio, lê grego antigo e até homérico; pode-se dizer que, sem prejuízo de sua contemporaneidade, Antonio Cicero é um poeta clássico?
AC - Na verdade, sou a última pessoa a querer qualificar a minha produção poética, pois entendo as qualificações como restritivas. No caso de “clássico”, um outro problema me inibiria: é que entendo a palavra no sentido definido por Naphta, personagem de A montanha mágica, de Thomas Mann. Segundo ele, clássico é o ponto em que uma idéia chega à sua culminância. Nesse sentido, seria até cabotino que eu me chamasse de clássico. Por outro lado, mesmo não me qualificando de clássico, é verdade que amo a literatura e as línguas clássicas, que não considero estrangeiras, mas nossas. Acho que latim e grego deviam voltar a fazer parte do currículo primário.
CULT - Você estudou lógica em sua formação filosófica, tem em Kant talvez sua principal referência filosófica e define-se como um racionalista liberal. A política mundial, entretanto, está polarizada por fundamentalismos religiosos e ameaçada por populistas obtusos com ideologias retrógradas. Você acha que o mundo está se tornando cada vez mais irracional?
AC - Em certo sentido, sim. Mas penso que o irracionalismo contemporâneo é principalmente uma reação às possibilidades de liberdade que o mundo contemporâneo oferece. Por medo da sociedade aberta, busca-se refúgio em comunidades fechadas, como as religiosas. E uma sociedade é tanto mais fechada quanto mais irracional, pois a racionalidade é, em princípio, aberta e universal. É um equívoco pensar que exista um conflito entre o Ocidente, ou os valores do Ocidente e os valores islâmicos, por exemplo. O conflito que há é entre a modernidade (que não é ocidental ou oriental, mas universal) e a pré- ou anti-modernidade, que pode ser muçulmana, cristã (como no sul dos Estados Unidos) etc. Dentro dos Estados Unidos mesmos, esse conflito é muito grave. Com o governo Bush, uma parcela relativamente pequena, porém totalmente inescrupulosa da burguesia norte-americana, sob a liderança das corporações petrolíferas e armamentistas, e aliada às maiores cadeias de televisão, rádio e da imprensa do país, procura destruir os fundamentos da sociedade aberta e os direitos individuais, e promover o obscurantismo religioso, como caminho para a instauração de um governo plutocrático descarado e cínico. Tentam, por exemplo, arruinar o sistema de checks and balances que mantinha separados os poderes executivo, legislativo e judiciário. Este último está sendo objeto de uma campanha de desmoralização tremenda, posta em prática pelo governo Bush e pela imprensa de direita. Para cumprir sua agenda anti-moderna, o governo Bush tem como aliados objetivos os terroristas muçulmanos. Não acredito em inevitabilidade histórica. Até pouco tempo, era senso comum na esquerda que os democratas e republicanos eram farinha do mesmo saco. Hoje, é claro que a diferença entre o governo Clinton e o governo Bush não poderia ser maior. Penso que a racionalidade – como a ciência – tende a se impor porque ela é o chão onde se quebram as ilusões que acabam por cair, pois, ao contrário destas, ela não é nada de particular ou contingente, mas algo de universal e necessário; entretanto, não é impossível que os irracionalistas consigam destruir o mundo.
CULT - Você afirma que “o paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente”. Você acha que, quanto a este paradoxo, o Brasil mudou nesses últimos anos de economia mais estável e consolidação da democracia?
AC - Acho que tem melhorado, mas muito lentamente.
CULT - Como você avalia o governo Lula? Você votou nele nas últimas eleições? Pretende votar na de agora?
AC - O PT tinha tornado o governo Fernando Henrique quase inoperante, fazendo incessantemente denúncias incomprovadas porém paralisantes, e bloqueando todas as reformas que se faziam necessárias e que, ao chegar ao poder, o próprio Lula tentaria realizar. Era a política do “quanto pior, melhor”. Indignado com essa política, que prejudicava o Brasil como um todo, votei no Serra, no primeiro turno. Depois, comecei a achar que, se o Serra ganhasse o segundo turno, haveria uma radicalização imensa no PT, pois ganhariam força os militantes que, acusando a democracia de ser puramente formal, e alegando que “as elites brasileiras” jamais deixariam um operário chegar a ser presidente, queriam, no fundo, promover uma guerra civil. Além disso, seria ainda mais difícil para o Serra governar do que havia sido para o FH.
Pareceu-me então, primeiro, que a experiência de ter um presidente de origem operária seria realmente importante para consolidar a democracia brasileira; segundo, que a sua vitória enfraqueceria essas correntes anti-legalistas no interior do PT; terceiro, que ele teria maior capacidade de governar do que o Serra. Votei, então, no Lula.
Quanto ao governo dele, tenho sentimentos contraditórios. Não posso senão aplaudir o fato de que ele tenha conseguido, segundo todas as pesquisas, reduzir significativamente – embora ainda pouco – a pobreza e a desigualdade social no Brasil. Aplaudo também o fato de que ele tenha conseguido fazer isso sem abrir mão de continuar a controlar a inflação. Para mim, isso é muito importante, pois sou de uma geração que conheceu o horror da inflação descontrolada.
Por outro lado, é claro que fiquei indignado com o mensalão. Quero crer, porém, que ele foi concebido principalmente por membros daquela corrente do PT que despreza a democracia formal e que me parece ter saído enfraquecida com esse episódio.
Quanto às próximas eleições, eu talvez votasse no Serra, se ele fosse candidato; mas não voto no Alkmin, cujas ligações com a Igreja Católica não são claras, para mim. Convencido de que os pontos positivos do governo Lula são maiores do que os negativos, vou provavelmente votar nele. A única coisa que me deixa receoso é essa idéia golpista de convocar uma constituinte. Acho que ele devia publicamente voltar atrás, nessa questão. Tenho horror à idéia de uma democracia plebiscitária, isto é, de uma ditadura da maioria. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras de Mussolini, de Hitler, de Stalin e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, “democráticas”. A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só. Por isso, o que é realmente imprescindível numa democracia não são as eleições nem o governo da maioria, mas o império da lei, a abertura da sociedade, os direitos civis, a liberdade e a pluralidade da imprensa.
CULT - O que você acha do Estatuto de Igualdade Racial?
AC - Sou inteiramente contra. Não há raças humanas. Os norte-americanos brancos racionalizaram e oficializaram o seu racismo com base na crença nas ficções que são as raças biológicas. Os próprios movimentos anti-racistas americanos acreditaram nessas ficções e nelas se basearam. Por isso, pensam que o racismo é um fenômeno universal, e que negar que ele exista seja uma forma mais insidiosa de praticá-lo. Aqui, nunca se acreditou propriamente em raça. Reconhecemos apenas diferenças epidérmicas entre as pessoas. Por isso, as raças nunca foram oficializadas, o que é bom; e isso facilitou a miscigenação, o que tornou ainda mais inaplicável o conceito de raça. Como eu digo no meu ensaio “Brasil feito brasa”, no Brasil, ao contrário do que se dá nos Estados Unidos, a exceção é o negro, o branco ou o índio que se considere "puro". Pode dizer-se que, aqui, cada ser humano parece resultar de uma combinação singular de características de cada uma dessas e de outras raças. Longe de significar homogeneização racial, isso sugere que, no limite, cada brasileiro tende a ser a expressão de uma raça individual. Esse oximoro exprime o fato de que, através não da redução, mas da multiplicação das diferenças, entrevê-se no Brasil, a longo prazo, a pulverização -- ou melhor, a dissolução -- racial. Devemos fazer campanhas anti-racistas, não com base na ficção da existência de raças, mas, ao contrário, na demonstração de que crer em tais ficções não é coisa digna de uma pessoa inteligente. Mas, principalmente, devemos promover a eliminação de qualquer pretensão racista, através do aprofundamento das políticas que contribuam para reduzir as desigualdades sociais – que, estas sim, são inteiramente reais – e através de investimentos maciços que, efetivamente, universalizem o acesso a uma educação elementar e média de qualidade.
15. Fale sobre o seu novo livro de poemas.
Diferentemente dos outros, comecei esse livro com um título, que no entanto, talvez seja modificado: Prova. É que esse foi o título do primeiro poema que escrevi para ele. Também diferentemente dos outros, fiz um projeto para esse livro, de modo a poder solicitar a Bolsa Vitae, para escrevê-lo. De fato, felizmente, fui contemplado com essa bolsa, sem a qual não creio que tivesse podido terminá-lo tão cedo. O livro me parece ter ficado muito diferente dos outros, mas não sei dizer bem em que sentido. Não planejei essa diferença. Não sou de planejar. Gosto de deixar o poema se descobrir para mim e de tratar o acaso como se fosse o destino. Mas o fato é que eles foram ficando diferentes. Alguns, por exemplo, são mais longos do que o que era normal para mim. Alguns são mais narrativos. Não dá para falar muito, porque, sinceramente, não sei bem falar sobre os meus próprios poemas.
5.2.07
Robert Frost
Por ocasião da publicação dos cadernos de Robert Frost (FAGGEN, R. (Org.) The notebooks of Robert Frost. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2007), saíu ontem no New York Times um artigo muito interessante de David Orr sobre Frost. Vale a pena traduzir e citar um trecho dele:
"Frost disse uma vez que queria ser considerado como 'a exceção que creio ser em tudo'.
"O problema de ser uma exceção a toda categoria é que você acaba frustrando os categorizadores.
"Consequentemente, Frost agora ocupa uma posição tão singular quanto instável. Ele é decididamente um Grande Poeta Americano e, no entanto, nunca foi adotado pela academia americana tão ardentemente quanto, digamos, Ezra Pound.
"Na verdade, Frost talvez seja o único poeta que é universalmente reconhecido como um mestre, mas que parece periodicamente precisar que ensaios de poetas como Randall Jarrell e Seamus Heaney lustrem a sua reputação.
"Técnico de agilidade prodigiosa...
[permito-me interromper porque não posso deixar de lembrar aqui uma citação de Pound feita por Augusto de Campos em sua recente e excelente entrevista a Carlos Adriano, na revista virtual Trópico (http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2822,1.shl): "A técnica é o teste da sinceridade".]
..., ele no entanto geralmente se confinou aos iâmbicos, e favoreceu rimas fáceis como 'reason' e 'season' ou 'star' e 'far'.
"E há o problema da sua reputação. Ao contrário de quase todo poeta de habilidade comparável, Frost possui uma audiência de leitores leigos, principalmente daqueles que querem poemas que 'tenham sentido' – no entanto sua estética é evasiva, talvez manipulativa, e tem no âmago uma indiferença gelada que tornaria o churrasco da vizinhança terrivelmente desconfortável.
"Ainda assim, como o crítico Richard Poirier sustenta, 'não faz sentido tentar desconsiderar a sua popularidade, como se fosse um equívoco ocasionado pela pose'. É fácil entender como um poeta tão contraditório possa sofrer com os modos pouco sutis com que costumamos falar de coisas como o experimental e o convencional. Em tais argumentos, Frost será sempre, na melhor das hipóteses, simplificado e, na pior, ignorado."
Aqui pulo alguns parágrafos e volto ao texto de Orr:
"Esse é o problema (se for um problema). Se os diários de Frost contivessem um estudo de Walter Benjamin ou uma série de observações favoráveis e incisivas sobre 'Tender Buttons', de Gertrude Stein, provavelmente poderia ser encaixado a linhagem experimental americana. Se contivessem um comentário palpitantemente sensível sobre a flora da Nova Inglaterra, talvez pudesse ser considerado como confiavelmente convencional. Mas, mais de quatro décadas após a sua morte, esse mais americano dos poetas americanos ainda não cabe confortavelmente nas categorias estéticas favoritas do nosso país.
"Há indicações, contudo, de que isso está mudando. Poetas experimentais como Susan Wheeler começam a apreciar a ênfase de Frost em escrever-como-performance, e a tratá-lo como uma fonte valiosa e não como um antagonista ('Source Codes', de Wheeler, contém uma imitação muito engraçada do 'Provide, Provide', de Frost). Mais importante, Frost conseguiu obter o melhor conjunto de admiradores que um poeta americano pode ter: poetas não-americanos, principalmente poetas não-americanos que trabalham nas universidades americanas. Uma breve lista deles incluiria Joseph Brodsky, Derek Walcott, Glyn Maxwell, James Lasdun e praticmaent todo poeta da Irlanda do Norte nascido após 1935. Frost gostaria de saber que o Prêmio Pulitzer (que ele ganhou quatro vezes, um récorde) foi atribuído ao poeta irlandês Paul Muldoon, que declarou Frost 'o maior poeta americano do século 20'. Se esse é o modo tortuoso pelo qual a influência da poesia de Frost se fará sentir no seu solo nativo, bem, como Frost dizia, 'a linha terá mais charme por não ser mecanicamente reta'. E para um poeta que sempre foi uma figura de curvas e arcos, digressões e voltas, talvez não haja maior recompensa."
Fiz o curso secundário nos Estado Unidos e me lembro de que, embora gostasse muito de poesia, eu, de fato, não tinha interesse por Frost. Creio que era justamente a sua popularidade que me repugnava. Esquecendo-me de que Shakespeare havia sido popular no seu tempo, parecia-me que um poeta tão popular quanto Frost não poderia ser sutil ou profundo. Com o tempo, felizmente aprendi a me livrar desse tipo de preconceito. Mas foi só recentemente que, lendo algum poema de Frost citado, não me lembro mais por quem, fiquei impressionado com a sua qualidade e encomendei um livro (LATHEM, E.C. (Org.). The poetry of Robert Frost. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1969) que reúne os seus poemas completos. Só então vi como tinha sido presunçoso e tolo: estava diante da obra de um dos maiores poetas do mundo.
Eu não saberia traduzir o poeta que disse que "a poesia é o que perde na tradução". Mas publico três curtas obras primas de Robert Frost, no original.
The Secret Sits
We dance round in a ring and suppose,
But the Secret sits in the middle and knows.
Nothing Gold Can Stay
Nature's first green is gold,
Her hardest hue to hold.
Her early leaf's a flower;
But only so an hour.
Then leaf subsides to leaf.
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day.
Nothing gold can stay.
Fire and Ice
Some say the world will end in fire,
Some say in ice.
From what I've tasted of desire
I hold with those who favor fire.
But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To say that for destruction ice
Is also great
And would suffice.
"Frost disse uma vez que queria ser considerado como 'a exceção que creio ser em tudo'.
"O problema de ser uma exceção a toda categoria é que você acaba frustrando os categorizadores.
"Consequentemente, Frost agora ocupa uma posição tão singular quanto instável. Ele é decididamente um Grande Poeta Americano e, no entanto, nunca foi adotado pela academia americana tão ardentemente quanto, digamos, Ezra Pound.
"Na verdade, Frost talvez seja o único poeta que é universalmente reconhecido como um mestre, mas que parece periodicamente precisar que ensaios de poetas como Randall Jarrell e Seamus Heaney lustrem a sua reputação.
"Técnico de agilidade prodigiosa...
[permito-me interromper porque não posso deixar de lembrar aqui uma citação de Pound feita por Augusto de Campos em sua recente e excelente entrevista a Carlos Adriano, na revista virtual Trópico (http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2822,1.shl): "A técnica é o teste da sinceridade".]
..., ele no entanto geralmente se confinou aos iâmbicos, e favoreceu rimas fáceis como 'reason' e 'season' ou 'star' e 'far'.
"E há o problema da sua reputação. Ao contrário de quase todo poeta de habilidade comparável, Frost possui uma audiência de leitores leigos, principalmente daqueles que querem poemas que 'tenham sentido' – no entanto sua estética é evasiva, talvez manipulativa, e tem no âmago uma indiferença gelada que tornaria o churrasco da vizinhança terrivelmente desconfortável.
"Ainda assim, como o crítico Richard Poirier sustenta, 'não faz sentido tentar desconsiderar a sua popularidade, como se fosse um equívoco ocasionado pela pose'. É fácil entender como um poeta tão contraditório possa sofrer com os modos pouco sutis com que costumamos falar de coisas como o experimental e o convencional. Em tais argumentos, Frost será sempre, na melhor das hipóteses, simplificado e, na pior, ignorado."
Aqui pulo alguns parágrafos e volto ao texto de Orr:
"Esse é o problema (se for um problema). Se os diários de Frost contivessem um estudo de Walter Benjamin ou uma série de observações favoráveis e incisivas sobre 'Tender Buttons', de Gertrude Stein, provavelmente poderia ser encaixado a linhagem experimental americana. Se contivessem um comentário palpitantemente sensível sobre a flora da Nova Inglaterra, talvez pudesse ser considerado como confiavelmente convencional. Mas, mais de quatro décadas após a sua morte, esse mais americano dos poetas americanos ainda não cabe confortavelmente nas categorias estéticas favoritas do nosso país.
"Há indicações, contudo, de que isso está mudando. Poetas experimentais como Susan Wheeler começam a apreciar a ênfase de Frost em escrever-como-performance, e a tratá-lo como uma fonte valiosa e não como um antagonista ('Source Codes', de Wheeler, contém uma imitação muito engraçada do 'Provide, Provide', de Frost). Mais importante, Frost conseguiu obter o melhor conjunto de admiradores que um poeta americano pode ter: poetas não-americanos, principalmente poetas não-americanos que trabalham nas universidades americanas. Uma breve lista deles incluiria Joseph Brodsky, Derek Walcott, Glyn Maxwell, James Lasdun e praticmaent todo poeta da Irlanda do Norte nascido após 1935. Frost gostaria de saber que o Prêmio Pulitzer (que ele ganhou quatro vezes, um récorde) foi atribuído ao poeta irlandês Paul Muldoon, que declarou Frost 'o maior poeta americano do século 20'. Se esse é o modo tortuoso pelo qual a influência da poesia de Frost se fará sentir no seu solo nativo, bem, como Frost dizia, 'a linha terá mais charme por não ser mecanicamente reta'. E para um poeta que sempre foi uma figura de curvas e arcos, digressões e voltas, talvez não haja maior recompensa."
Fiz o curso secundário nos Estado Unidos e me lembro de que, embora gostasse muito de poesia, eu, de fato, não tinha interesse por Frost. Creio que era justamente a sua popularidade que me repugnava. Esquecendo-me de que Shakespeare havia sido popular no seu tempo, parecia-me que um poeta tão popular quanto Frost não poderia ser sutil ou profundo. Com o tempo, felizmente aprendi a me livrar desse tipo de preconceito. Mas foi só recentemente que, lendo algum poema de Frost citado, não me lembro mais por quem, fiquei impressionado com a sua qualidade e encomendei um livro (LATHEM, E.C. (Org.). The poetry of Robert Frost. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1969) que reúne os seus poemas completos. Só então vi como tinha sido presunçoso e tolo: estava diante da obra de um dos maiores poetas do mundo.
Eu não saberia traduzir o poeta que disse que "a poesia é o que perde na tradução". Mas publico três curtas obras primas de Robert Frost, no original.
The Secret Sits
We dance round in a ring and suppose,
But the Secret sits in the middle and knows.
Nothing Gold Can Stay
Nature's first green is gold,
Her hardest hue to hold.
Her early leaf's a flower;
But only so an hour.
Then leaf subsides to leaf.
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day.
Nothing gold can stay.
Fire and Ice
Some say the world will end in fire,
Some say in ice.
From what I've tasted of desire
I hold with those who favor fire.
But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To say that for destruction ice
Is also great
And would suffice.
4.2.07
TÁVIVALETRA e CARTO+GRAFIAs
Amanhã participarei do evento poético TÁVIVALETRA, do poeta Ricardo Corona. Seguir-se-á a abertura da exposição CARTO+GRAFIAS [subjetivas], de Eliana Borges. Reproduzo abaixo o convite oficial para esse evento:
A Caixa Econômica Federal convida para assistir à apresentação de poesia falada e sonorizada TÁVIVAALETRA, com Ricardo Corona*, no dia 05 de fevereiro de 2007, às 19h00, no Teatro de Arena, e para o coquetel de abertura da exposição CARTO+GRAFIAs [subjetivas], de Eliana Borges, e a sessão de autógrafos do livro CORPO SUTIL, de Ricardo Corona, às 20h00, na Galeria 1.
* participações especiais de Antonio Cicero, Luiz Felipe Leprevost e Vitor Ramil.
Entrada franca
Visitação da exposição CARTO+GRAFIAs [subjetivas]
06 de fevereiro a 04 de março de 2007
Terça a domingo, das 10 às 22 horas
CAIXA CULTURAL RIO DE JANEIRO
Avenida Almirante Barroso, 25 - Centro - Rio de Janeiro - RJ
CEP 20.031-003 - Tel (21) 2262 5483
remairj@caixa.gov.br www.caixa.gov.br
A Caixa Econômica Federal convida para assistir à apresentação de poesia falada e sonorizada TÁVIVAALETRA, com Ricardo Corona*, no dia 05 de fevereiro de 2007, às 19h00, no Teatro de Arena, e para o coquetel de abertura da exposição CARTO+GRAFIAs [subjetivas], de Eliana Borges, e a sessão de autógrafos do livro CORPO SUTIL, de Ricardo Corona, às 20h00, na Galeria 1.
* participações especiais de Antonio Cicero, Luiz Felipe Leprevost e Vitor Ramil.
Entrada franca
Visitação da exposição CARTO+GRAFIAs [subjetivas]
06 de fevereiro a 04 de março de 2007
Terça a domingo, das 10 às 22 horas
CAIXA CULTURAL RIO DE JANEIRO
Avenida Almirante Barroso, 25 - Centro - Rio de Janeiro - RJ
CEP 20.031-003 - Tel (21) 2262 5483
remairj@caixa.gov.br www.caixa.gov.br
3.2.07
O POETA CEGO
O POETA CEGO
Eis o poeta cego.
Abandonou-o seu ego.
Abandonou-o seu ser.
Por nada ser ele verseja.
Bem antes do amanhecer
em seus versos talvez se veja
diverso de tudo o que seja
tudo que almeja ser.
Eis o poeta cego.
Abandonou-o seu ego.
Abandonou-o seu ser.
Por nada ser ele verseja.
Bem antes do amanhecer
em seus versos talvez se veja
diverso de tudo o que seja
tudo que almeja ser.
2.2.07
Entrevista a Rodrigo Levino
Hoje publico uma entrevista que, concedida a Rodrigo Levino, jornalista da CBN Natal e d'O Jornal de Hoje, por ocasião do delicioso 1º Encontro Natalense de Escritores, realizado em Natal/RN, em novembro de 2006, teve pouca circulação alhures.
1 - Você foi um dos primeiros autores brasileiros a utilizar recursos como a oralização de poemas, já em 1996, mais tarde conhecidos como audiolivros. Por outro lado, os livros de poesia dificilmente figuram entre os grandes sucessos de venda. Resgatando e fazendo um up grade no seu pioneirismo, o que é necessário para a viabilidade da poesia no mercado literário? Ou a poesia necessita sempre de um pouco de "sombra"?
Gosto de ler poesia lírica em voz alta, ou melhor, em voz baixa; ou, melhor ainda, em voz interna ou aural, como diz o poeta francês Jacques Roubaud. Sabendo disso, Paulinho Lima, que fundou a coleção de CDs Poesia Falada, me convidou para gravar um disco. Gostei do resultado, mas, em termos de vendagem, está longe de ser um fenômeno pop. Para mim, é assim mesmo que deve ser. A poesia feita para ser lida não é nem deve tentar ser um fenômeno pop. Isso não quer dizer que ela não seja viável no mercado, pois a verdade é que sempre se publicaram livros de poemas, ainda que com tiragens pequenas. Não é tanto que a poesia precise de sombra quanto que ela exige um bom leitor; e são poucos os bons leitores. A estes, entretanto, ela recompensa regiamente.
2 - O que é um bom leitor? Você fala de formação cultural?
O conhecimento da tradição literária faz parte do bom leitor, mas talvez não seja o mais importante. O bom leitor de poesia é aquele que faz suas as palavras do poema, no sentido de que pensa com elas e em torno delas. É aquele que se empenha nessa leitura de tal modo que a sua subjetividade se confunde com a objetividade do poema: do objeto de arte que é o poema. Usando todos os recursos de que dispõe – sensibilidade, emoção, inteligência, humor, cultura etc. – ele apreende esse objeto em suas múltiplas dimensões semânticas, atento a toda a sugestividade da sonoridade das palavras, à qualidade predominantemente vocal ou consonantal, dura ou líquida, áspera ou suave dos fonemas articulados, às relações paronomásicas e ao seu ritmo, à cadência dos versos etc. O poema e cada um dos seus componentes são por ele tomados tanto isoladamente quanto em relação com todos os outros poemas que de que se lembra, enquanto reiteração, evocação, desvio, distorção ou rejeição das normas ou dos padrões estabelecidos, ou ainda das práticas contemporâneas; etc. etc. Claro que cada um lê um poema na medida da sua capacidade e que as capacidades variam imensamente. Pouco importa: o que importa é justamente que quem quer ler um poema empregue todos os seus recursos para fazê-lo. É na medida em que o faça que o poema o recompensará.
3 - Qual a sua intenção quando une poesia e música, como acontece há um bom tempo nas parcerias, seja com Marina Lima ou Adriana Calcanhotto etc?
Minha intenção, nesses casos, é simplesmente produzir a mais bela canção que consiga.
4 - A velha e polêmica questão: música é, ou pode ser, poesia?
Que a letra de uma canção é capaz de ser um bom poema quando separada da melodia é algo que já foi provado amplamente. Vou citar duas dessas provas. Os poemas líricos gregos eram originalmente letras de música. Embora as melodias correspondentes a cada um deles tenham sido esquecidas, eles permanecem como alguns dos maiores poemas que se conhecem. Outra prova, bem mais próxima de nós, é o livro Letra Só, que reúne as letras de Caetano Veloso. Basta lê-lo para verificar que se trata de um grande livro de poemas.
5 - Rilke disse que o que leva alguém a escrever é a necessidade. Calcanhotto cita Joaquim Pedro de Andrade, dizendo que fazia cinema para chatear os imbecis. E você, por que faz poesia?
Respondo a essa pergunta no poema Guardar. Segundo ele, faz-se um poema
Para guardá-lo;
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
6 - Então, o que você guarda nos seus poemas?
A resposta está no mesmo poema:
“Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo do passaro
Do que pássaros sem vôos.”
O que guardo/olho são os vôos: e, não raro, o maior vôo é o próprio olhar: no poema, quero que o olhar e o olhado, o guardar e o guardado se confundam. O poema guarda, em primeiro lugar, o seu próprio vôo.
7 - Você acompanha a produção literária fora dos grandes centros e editoras? Conhece alguma coisa de poetas norte-riograndenses?
Acabo de ler “A duna intacta”, um belo livro da poeta natalense Maria Dolores Wanderley. Uma das coisas que espero da minha ida a Natal é justamente conhecer melhor a poesia que aí se faz.
8 - Quando você se descobriu poeta? Não foi uma descoberta, ao menos para o público, um pouco tardia, para quem começou as atividades em 76 e só lançou "Guardar" vinte anos depois?
Na verdade, escrevo poesia desde menino. Mas de fato demorei muito a publicar meus poemas em livros. Uma das razões é que, na juventude, vivi um conflito entre a minha sensibilidade e o meu intelecto. Desde adolescente – e mesmo desde antes da adolescência – gosto, por um lado, de poesia e, por outro lado, de pensamento abstrato, que me levou a me apaixonar pela filosofia. Ora, dada essa paixão, sempre lamentei a relativa timidez do pensamento filosófico e, de maneira geral, teórico, praticado no Brasil. Por isso, ao conhecer as teses dos poetas concretistas, fiquei entusiasmado. Finalmente, surgira pensamento original no Brasil, pelo menos em matéria de estética. Foi, entretanto, um entusiasmo intelectual. No que diz respeito à poesia, continuei gostando de ler e de escrever versos, coisa que os concretistas consideravam superada. Esse conflito entre a sensibilidade e o intelecto tornou-me difícil decidir publicar um livro de poemas antes de elaborar conceitualmente a própria poética, a minha própria distância, a minha própria crítica (que está longe de ser simples rejeição) do pensamento vanguardista. Já fazer letras de música não era problema, pois os próprios concretistas e, em particular, Augusto de Campos – que continuo admirando muito, como poeta e como pensador -- sempre tiveram um grande interesse pela música popular.
9 - Seus poemas algumas vezes são tão visuais, palpáveis, traçam uma linha de fatos cotidianos, como por exemplo "Inverno", musicado por Adriana Calcanhotto. Há um prosista escondido nalgum lugar dos seus versos?
Não sei dizer. Não me é fácil falar dos meus próprios poemas.
10 - Em que medida a lógica e a filosofia, que são suas formações acadêmicas, são determinantes no processo criativo?
A poesia é capaz de usar a filosofia e até a lógica, como é capaz de usar o lugar comum, a experiência, a memória, a cultura etc.; mas ela não é determinada por nenhuma dessas coisas: a poesia é soberana.
11- Em 1976, quando a Maria Bethânia gravou "Alma Caiada", uma letra sua que diz "Aprendi desde criança / Que é melhor me calar / E dançar conforme a dança / Do que jamais ousar", a canção acabou censurada pela ditadura. 30 anos depois, no que a política te interessa?
Tanto quanto a qualquer outro cidadão. Para mim, o que há de mais importante na democracia é a preservação e ampliação da liberdade efetiva e dos direitos civis.
12 - Ainda há lugar para o experimentalismo na poesia, ou a era da informação instantânea e para todos desnudou as inventividades?
Penso que a boa poesia é sempre experimental, mesmo quando não é experimentalista. Já a inventividade é e sempre será fundamental.
13 - Ao que se propõe a sua poesia, se como diz em "Água Perrier", não quer mostrar novos mundos e acha graça até mesmo de clichês? Era só charme? (Risos)
A poesia não vale por aquilo a que se propõe mas pelo que é. E, embora o importante não seja ter charme, ao contrário do que dizia um slogan publicitário que se tornou um clichê (ou um clichê que se tornou um slogan publicitário), a verdade é que o charme também é importante.
1 - Você foi um dos primeiros autores brasileiros a utilizar recursos como a oralização de poemas, já em 1996, mais tarde conhecidos como audiolivros. Por outro lado, os livros de poesia dificilmente figuram entre os grandes sucessos de venda. Resgatando e fazendo um up grade no seu pioneirismo, o que é necessário para a viabilidade da poesia no mercado literário? Ou a poesia necessita sempre de um pouco de "sombra"?
Gosto de ler poesia lírica em voz alta, ou melhor, em voz baixa; ou, melhor ainda, em voz interna ou aural, como diz o poeta francês Jacques Roubaud. Sabendo disso, Paulinho Lima, que fundou a coleção de CDs Poesia Falada, me convidou para gravar um disco. Gostei do resultado, mas, em termos de vendagem, está longe de ser um fenômeno pop. Para mim, é assim mesmo que deve ser. A poesia feita para ser lida não é nem deve tentar ser um fenômeno pop. Isso não quer dizer que ela não seja viável no mercado, pois a verdade é que sempre se publicaram livros de poemas, ainda que com tiragens pequenas. Não é tanto que a poesia precise de sombra quanto que ela exige um bom leitor; e são poucos os bons leitores. A estes, entretanto, ela recompensa regiamente.
2 - O que é um bom leitor? Você fala de formação cultural?
O conhecimento da tradição literária faz parte do bom leitor, mas talvez não seja o mais importante. O bom leitor de poesia é aquele que faz suas as palavras do poema, no sentido de que pensa com elas e em torno delas. É aquele que se empenha nessa leitura de tal modo que a sua subjetividade se confunde com a objetividade do poema: do objeto de arte que é o poema. Usando todos os recursos de que dispõe – sensibilidade, emoção, inteligência, humor, cultura etc. – ele apreende esse objeto em suas múltiplas dimensões semânticas, atento a toda a sugestividade da sonoridade das palavras, à qualidade predominantemente vocal ou consonantal, dura ou líquida, áspera ou suave dos fonemas articulados, às relações paronomásicas e ao seu ritmo, à cadência dos versos etc. O poema e cada um dos seus componentes são por ele tomados tanto isoladamente quanto em relação com todos os outros poemas que de que se lembra, enquanto reiteração, evocação, desvio, distorção ou rejeição das normas ou dos padrões estabelecidos, ou ainda das práticas contemporâneas; etc. etc. Claro que cada um lê um poema na medida da sua capacidade e que as capacidades variam imensamente. Pouco importa: o que importa é justamente que quem quer ler um poema empregue todos os seus recursos para fazê-lo. É na medida em que o faça que o poema o recompensará.
3 - Qual a sua intenção quando une poesia e música, como acontece há um bom tempo nas parcerias, seja com Marina Lima ou Adriana Calcanhotto etc?
Minha intenção, nesses casos, é simplesmente produzir a mais bela canção que consiga.
4 - A velha e polêmica questão: música é, ou pode ser, poesia?
Que a letra de uma canção é capaz de ser um bom poema quando separada da melodia é algo que já foi provado amplamente. Vou citar duas dessas provas. Os poemas líricos gregos eram originalmente letras de música. Embora as melodias correspondentes a cada um deles tenham sido esquecidas, eles permanecem como alguns dos maiores poemas que se conhecem. Outra prova, bem mais próxima de nós, é o livro Letra Só, que reúne as letras de Caetano Veloso. Basta lê-lo para verificar que se trata de um grande livro de poemas.
5 - Rilke disse que o que leva alguém a escrever é a necessidade. Calcanhotto cita Joaquim Pedro de Andrade, dizendo que fazia cinema para chatear os imbecis. E você, por que faz poesia?
Respondo a essa pergunta no poema Guardar. Segundo ele, faz-se um poema
Para guardá-lo;
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
6 - Então, o que você guarda nos seus poemas?
A resposta está no mesmo poema:
“Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo do passaro
Do que pássaros sem vôos.”
O que guardo/olho são os vôos: e, não raro, o maior vôo é o próprio olhar: no poema, quero que o olhar e o olhado, o guardar e o guardado se confundam. O poema guarda, em primeiro lugar, o seu próprio vôo.
7 - Você acompanha a produção literária fora dos grandes centros e editoras? Conhece alguma coisa de poetas norte-riograndenses?
Acabo de ler “A duna intacta”, um belo livro da poeta natalense Maria Dolores Wanderley. Uma das coisas que espero da minha ida a Natal é justamente conhecer melhor a poesia que aí se faz.
8 - Quando você se descobriu poeta? Não foi uma descoberta, ao menos para o público, um pouco tardia, para quem começou as atividades em 76 e só lançou "Guardar" vinte anos depois?
Na verdade, escrevo poesia desde menino. Mas de fato demorei muito a publicar meus poemas em livros. Uma das razões é que, na juventude, vivi um conflito entre a minha sensibilidade e o meu intelecto. Desde adolescente – e mesmo desde antes da adolescência – gosto, por um lado, de poesia e, por outro lado, de pensamento abstrato, que me levou a me apaixonar pela filosofia. Ora, dada essa paixão, sempre lamentei a relativa timidez do pensamento filosófico e, de maneira geral, teórico, praticado no Brasil. Por isso, ao conhecer as teses dos poetas concretistas, fiquei entusiasmado. Finalmente, surgira pensamento original no Brasil, pelo menos em matéria de estética. Foi, entretanto, um entusiasmo intelectual. No que diz respeito à poesia, continuei gostando de ler e de escrever versos, coisa que os concretistas consideravam superada. Esse conflito entre a sensibilidade e o intelecto tornou-me difícil decidir publicar um livro de poemas antes de elaborar conceitualmente a própria poética, a minha própria distância, a minha própria crítica (que está longe de ser simples rejeição) do pensamento vanguardista. Já fazer letras de música não era problema, pois os próprios concretistas e, em particular, Augusto de Campos – que continuo admirando muito, como poeta e como pensador -- sempre tiveram um grande interesse pela música popular.
9 - Seus poemas algumas vezes são tão visuais, palpáveis, traçam uma linha de fatos cotidianos, como por exemplo "Inverno", musicado por Adriana Calcanhotto. Há um prosista escondido nalgum lugar dos seus versos?
Não sei dizer. Não me é fácil falar dos meus próprios poemas.
10 - Em que medida a lógica e a filosofia, que são suas formações acadêmicas, são determinantes no processo criativo?
A poesia é capaz de usar a filosofia e até a lógica, como é capaz de usar o lugar comum, a experiência, a memória, a cultura etc.; mas ela não é determinada por nenhuma dessas coisas: a poesia é soberana.
11- Em 1976, quando a Maria Bethânia gravou "Alma Caiada", uma letra sua que diz "Aprendi desde criança / Que é melhor me calar / E dançar conforme a dança / Do que jamais ousar", a canção acabou censurada pela ditadura. 30 anos depois, no que a política te interessa?
Tanto quanto a qualquer outro cidadão. Para mim, o que há de mais importante na democracia é a preservação e ampliação da liberdade efetiva e dos direitos civis.
12 - Ainda há lugar para o experimentalismo na poesia, ou a era da informação instantânea e para todos desnudou as inventividades?
Penso que a boa poesia é sempre experimental, mesmo quando não é experimentalista. Já a inventividade é e sempre será fundamental.
13 - Ao que se propõe a sua poesia, se como diz em "Água Perrier", não quer mostrar novos mundos e acha graça até mesmo de clichês? Era só charme? (Risos)
A poesia não vale por aquilo a que se propõe mas pelo que é. E, embora o importante não seja ter charme, ao contrário do que dizia um slogan publicitário que se tornou um clichê (ou um clichê que se tornou um slogan publicitário), a verdade é que o charme também é importante.
1.2.07
Os modernos e os antigos
Alguns amigos disseram ter achado obscura uma carta que enviei à Folha de São Paulo, publicada ontem (31/01). Receio que estejam certos. Preocupado em ser muito sucinto, eu talvez tenha sido pouco claro. Uma das vantagens do blog é ser um espaço em que se pode expender livremente as idéias.
.
Trata-se do seguinte. Em entrevista concedida em 27/01 à Folha (Ilustrada, pag. E1), o professor Luiz Felipe Pondé, da PUC de São Paulo, afirmando que a pretensão dos modernos a saber mais do que os antigos causa "risadas numa mente conservadora", compara a modernidade a uma arrogante adolescente de 14 anos que entra numa empresa, joga fora o que foi feito até hoje e começa a inventar todos os procedimentos. Desse modo, ele está usando um desgastado topos, segundo o qual a Modernidade seria uma jovem pretensiosa que despreza a sabedoria e a experiência da Antigüidade e da Idade Média, mais velhas. O que eu quis fazer foi mostrar que essa metáfora já havia sido desmontada pelo menos desde o século 16, de modo que "causa risadas numa mente moderna". Por isso citei Giordano Bruno e Francis Bacon. Com a preocupação de ser compacto – pois tratava-se de uma carta de leitor, que deve ser breve – não comentei as citações, de modo talvez tenha deixado pouco claro um argumento que normalmente poderia ser entendido até por uma criança.
.
O que Bacon afirma (no Novum Organum, livro I, aforismo 84) é que "a velhice do mundo, que deve ser tida como a verdadeira antiguidade, é atributo dos nossos tempos, não da idade mais jovem do mundo, em que os antigos viviam". Quanto a Bruno, quando um dos personagens do seu diálogo "Cena de le ceneri" (dialogo primo) diz preferir não discordar do parecer dos antigos "porque na antiguidade está a sapiência", o outro responde, com razão: "Se você entendesse bem o que diz, veria que do seu fundamento se infere o contrário do que pensa. Quero dizer que somos mais velhos e temos mais idade do que os nossos predecessores".
.
Uma simples analogia pode ilustrar o raciocínio desses pensadores. Um retrato de quando eu tinha dois anos de idade é velho, é antigo, para mim; no entanto, sou mais velho – logo sou mais antigo – e tenho mais experiência hoje do que naquela época. Analogamente, a humanidade da época de Péricles é antiga para nós, de modo que dizemos fazer parte da Antiguidade; no entanto, a humanidade da nossa época, isto é, da época moderna, é mais velha – logo mais antiga – e tem mais experiência do que a da época de Péricles.
.
Pondé devia prestar atenção ao que dizem os antigos.
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Trata-se do seguinte. Em entrevista concedida em 27/01 à Folha (Ilustrada, pag. E1), o professor Luiz Felipe Pondé, da PUC de São Paulo, afirmando que a pretensão dos modernos a saber mais do que os antigos causa "risadas numa mente conservadora", compara a modernidade a uma arrogante adolescente de 14 anos que entra numa empresa, joga fora o que foi feito até hoje e começa a inventar todos os procedimentos. Desse modo, ele está usando um desgastado topos, segundo o qual a Modernidade seria uma jovem pretensiosa que despreza a sabedoria e a experiência da Antigüidade e da Idade Média, mais velhas. O que eu quis fazer foi mostrar que essa metáfora já havia sido desmontada pelo menos desde o século 16, de modo que "causa risadas numa mente moderna". Por isso citei Giordano Bruno e Francis Bacon. Com a preocupação de ser compacto – pois tratava-se de uma carta de leitor, que deve ser breve – não comentei as citações, de modo talvez tenha deixado pouco claro um argumento que normalmente poderia ser entendido até por uma criança.
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O que Bacon afirma (no Novum Organum, livro I, aforismo 84) é que "a velhice do mundo, que deve ser tida como a verdadeira antiguidade, é atributo dos nossos tempos, não da idade mais jovem do mundo, em que os antigos viviam". Quanto a Bruno, quando um dos personagens do seu diálogo "Cena de le ceneri" (dialogo primo) diz preferir não discordar do parecer dos antigos "porque na antiguidade está a sapiência", o outro responde, com razão: "Se você entendesse bem o que diz, veria que do seu fundamento se infere o contrário do que pensa. Quero dizer que somos mais velhos e temos mais idade do que os nossos predecessores".
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Uma simples analogia pode ilustrar o raciocínio desses pensadores. Um retrato de quando eu tinha dois anos de idade é velho, é antigo, para mim; no entanto, sou mais velho – logo sou mais antigo – e tenho mais experiência hoje do que naquela época. Analogamente, a humanidade da época de Péricles é antiga para nós, de modo que dizemos fazer parte da Antiguidade; no entanto, a humanidade da nossa época, isto é, da época moderna, é mais velha – logo mais antiga – e tem mais experiência do que a da época de Péricles.
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Pondé devia prestar atenção ao que dizem os antigos.