PROVA
Para José Miguel Wisnik
Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.
A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.
Para José Miguel Wisnik
Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.
A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.
A prova, com a nota em sangue que reprova, vira gaivota. Mas poderia igualmente virar garça, a garça dentro da graça, que, talvez epifania, pintaria o poema com a cor branca.
ResponderExcluirAcontece, Paulinho, que gaivota é o nome dos aviões, ou melhor, dos planadores de papel, que os estudantes gostam de fazer e atirar nos colegas. O papel da prova é ideal para fazer um planador desse tipo. Ou seja, a gaivota em questão não é apenas metafórica, como a garça seria, mas também literal. No site "Menino Maluquinho Extra", no endereço http://meninomaluquinho.educacional.com.br/PaginaExtra/default.asp?id=2227, você pode ver como se faz a gaivota de papel a que me refiro.
ResponderExcluirFiz muito desses aviões de papel na minha infância, lá nos fundos mais fundos de Minas, antes mesmo de ver-observar os aviões-aviões de verdade. E aqueles nossos aviões de papel eram gaivotas que eram pintassilgos que eram curiós que eram garças e que eram até almas-de-gato, passarão dos entardeceres-anoiteceres. E este seu belo-belíssimo poema suscitou em mim esse furo-queda nos abismos da memória e, igualmente, literal e metaforicamente, provocou em mim associações selvagens e sem governo.
ResponderExcluirFico feliz, Paulinho, com as suas palavras, tanto mais valiosas quanto vêm de um poeta como você. Obrigado.
ResponderExcluirDedico-lhe, pois, lá no meu território, uma pequena peça em homenagem aos aviões.
ResponderExcluirMuito obrigado, Paulinho. Gostei muito. Fiz um link para o seu blog.
ResponderExcluirSegue de Belo Horizonte o fraterno abraço.
ResponderExcluirEmbora belo o primeiro parágrafo/estrofe, o poema é a segunda parte. Ou talvez sejam dois poemas. Nesse caso, quase gosto menos do primeiro.
ResponderExcluirOu será que quase gosto mais da segunda parte? O jeito é reconhecer que é belo poema inteiro.
ResponderExcluirA garvota do paulinho cícero.
ResponderExcluirA prova, com a nota em sangue que reprova, se virasse garça, se tingiria de branco. Esse seria um belo efeito plástico, mas o mergulho, que é próprio das gaivotas, seria suprimido, e talvez o poema perdesse apelo dramático e, pelo avesso, sua cota de humor.
Por outro lado, partindo do ponto onde o poema se cala para ouvir a imaginação do leitor, penso que o poema perderia mesmo é um fio invisível que se dobra e o liga a qualquer outro ponto. Pois todo vôo é também salto, e todo mergulho, depois de um certo limite, é primo daquele em outras águas, sempre em outras águas, da grande rã-bashô.
À mente clara e dialética do filósofo, pode parecer que há muito este leitor tenha abandonado o poema para entrar no reino de sua própria fantasia. Mas para o leitor (que no momento em que lê um poema é um poeta selvagem, ou seja, não se obriga a carregar o fardo da precisão formal) é ainda mais natural ser anfíbio, e a página virar garça, o suicida virtual ser gaivota e a gaivota, rã.