Eugénio de Andrade: "O sorriso"




O sorriso

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.



ANDRADE, Eugénio de. O outro nome da Terra. Porto: Limiar, 1989.




Devo a Arthur Nogueira o link para o maravilhoso vídeo em que o próprio Eugénio de Andrade, sorrindo, diz o seu poema. Ei-lo:





29.12.13

Mario Vargas Llosa: "O exemplo uruguaio"




Recomendo o excelente artigo de Mario Vargas Llosa "O exemplo uruguaio", publicado n'O Estado de São Paulo de hoje. Link: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-exemplo-uruguaio-,1113207,0.htm.

28.12.13

T.S. Eliot: "Marina" : trad. de Ivan Junqueira





Marina

Quis hic locus, quae regio, quae mundi plaga?

Que mares que praias que rochas grises que ilhas
Que águas a lamber a proa
Que aroma de pinho e gorjeio de tordo na neblina
Que imagens retornam
Ó minha filha.

Aqueles que os dentes do cão afiam, significando
Morte
Aqueles que na glória do colibri cintilam, significando
Morte
Aqueles que na pocilga da satisfação se assentam, significando
Morte
Aqueles que do êxtase dos animais partilham, significando
Morte

Tornam-se incorpóreos, reduzidos a nada por um golpe de vento
Uma exalação de pinho, e a neblina da canção silvestre
Por esta graça no espaço se dissolve.

Que há neste rosto, menos claro e mais claro
O pulso no braço, menos forte e mais forte
— Dado ou emprestado? Mais distante que as estrelas e mais próximo que os olhos
Sussurros e risinhos entre folhas e pés precipites
Submersos no sono, onde todas as águas se entrelaçam.

O gurupés no gelo se espedaça, a pintura ao calor estala.
Eu o fiz, e esqueci
E recordo.
A cordoalha frouxa e o velame em farrapos
Entre certo junho e outro setembro.
E o fiz desconhecido, semiconsciente, ignoto, meu.
O verdugo da carcaça faz água, as fendas reclamam o calafate.
Esta forma, este rosto, esta vida
Vivendo por viver numa esfera de tempo que me excede. Que eu possa
Renunciar à minha vida por esta vida, à minha fala pelo inexpresso,
O desperto, lábios abertos, a esperança, os novos barcos.
Que mares que praias que graníticas ilhas contra minha quilha
E que tordo chama através da neblina
Minha filha.

 

Marina

Quis hic locus, quae regio, quae mundi plaga?

What seas what shores what grey rocks and what islands
What water lapping the bow
And scent of pine and the woodthrush singing through the fog
What images return
O my daughter.
   
  Those who sharpen the tooth of the dog, meaning
 Death
 Those who glitter with the glory of the hummingbird, meaning
 Death
 Those who sit in the stye of contentment, meaning
 Death
 Those who suffer the ecstasy of the animals, meaning
 Death
   
  Are become insubstantial, reduced by a wind,
 A breath of pine, and the woodsong fog
 By this grace dissolved in place
   
What is this face, less clear and clearer
 The pulse in the arm, less strong and stronger—
 Given or lent? more distant than stars and nearer than the eye
   
  Whispers and small laughter between leaves and hurrying feet
 Under sleep, where all the waters meet.
   
  Bowsprit cracked with ice and paint cracked with heat.
 I made this, I have forgotten
 And remember.
 The rigging weak and the canvas rotten
 Between one June and another September.
 Made this unknowing, half conscious, unknown, my own.
 The garboard strake leaks, the seams need caulking.
This form, this face, this life
Living to live in a world of time beyond me; let me
Resign my life for this life, my speech for that unspoken,
The awakened, lips parted, the hope, the new ships.
   
What seas what shores what granite islands towards my timbers
 And woodthrush calling through the fog
 My daughter.




ELIOT, T.S. The complete poems and plays. 1909-1950. New York: Harcourt, Brance & Wrold, Inc., 1952.


ELIOT, T.S. Poesia. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

26.12.13

Luis Olavo Fontes: "Adolescência"




Adolescência

minha namorada crê no sonho louco
que ela denomina
amar

eu, como não sei o que é isso,
limito-me a beijá-la
com fúria.



FONTES, Luis Olavo. Tudo pelos ares. Rio de Janeiro: edição do autor, 1979.



24.12.13

Federico García Lorca: "Gacela del amor desesperado" / "Gazel do amor desesperado": trad. William Agel de Melo





Gacela del amor desesperado

La noche no quiere venir
para que tú no vengas
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
aunque un sol de alacranes me coma la sien.

Pero tú vendrás
con la lengua quemada por la lluvia de sal.

El día no quiere venir
para que tú no vengas
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
entregando a los sapos mi mordido clavel.

Pero tú vendrás
por las turbias cloacas de la oscuridad.

Ni la noche ni el día quieren venir
para que por ti muera
y tú mueras por mí.




Gazel do amor desesperado

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei,
inda que um sol de lacraias me coma a fronte.

Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.

Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridão.

Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.



GARCÍA LORCA, Federico. "Divan del Tamarit / Divã do Tamarit". In: Obra poética completa. Trad. de William Agel de Melo. Brasília: Universidade de Brasília; São Paulo: Martins Fontes, 1989.


22.12.13

Alberto Pucheu: "Ponto cego (da força e da fraqueza de nosso tempo)"





Ponto cego (da força e da fraqueza de nosso tempo)

“Quem somos?” –
perguntam aos poemas
em busca de uma resposta
que complete a pergunta,
sobrepondo uma, sem falta
nem excesso, à outra.
Mas os poemas repetidamente
respondem que somos
aquilo em que nos perdemos
ao buscarmos encontrar
o que acreditamos ser.
Se insistirem, portanto,
em perguntar aos poemas
de buscas, encontros, crenças...
se insistirem, portanto, em saber
a voz dos poemas, saibam que,
de diferentes modos, eles só dizem
o que não se busca nem se encontra,
a perdição, o fim das crenças,
oque não se oferece a nenhuma frase,
nem mesmo mais a nenhum verso.
Há um ponto cego nos poemas,
como há um ponto cego na vida,
não visto por mim nem por você
nem por ninguém, desde o qual
eles são o que são, um ponto cego
que somente os poemas – talvez –
nem sei – vejam. Se insistirem,
portanto, no trato com os poemas,
se de fato quiserem permanecer
com eles, sejam, ainda que os últimos
afeitos a tal empenho, fortes,
porque quase todos os outros
– sinal dos tempos – os abandonaram.



PUCHEU, Alberto. “Ponto cego (da força e da fraqueza de nosso tempo)”. In: Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.

20.12.13

Adriano Nunes: "Desse amor embutido"




Desse amor embutido

O meu sorriso é símile ao sorriso
Do meu pai. Descobri
Isso nas ausências intempestivas
Dos abraços e afagos que não tive,
Das conversas sérias e importantíssimas
Que com ele  existir
Não puderam, quando, sozinho, via-me
Imerso em sombras, com medo de mim.
Mas são as frágeis  flores  do jardim
Que refletem a igualdade aludida
No mover facial. É a poesia
Desse amor embutido
Nas lembranças suaves, nos sentidos,
Nos assaltos de vida,
Ante a confirmação mais que precisa
De que muito preciso
Que ao sorriso do meu pai vingue símile
Meu súbito sorriso.



NUNES, Adirano. Disp. no blog Quefaçocomoquenãofaço, no URL http://astripasdoverso.blogspot.com.br/.

18.12.13

Ricardo Silvestrin "palavra não é coisa"






palavra não é coisa
que se diga
quem toma a palavra
pela coisa
diz palavra com palavra
mas não diz coisa com coisa
a palavra pode ser pesada
a coisa, leve
e vice-versa não é coisa alguma
a palavra coisa
não é a coisa palavra
palavra e coisa
jamais serão a mesma coisa



SILVESTRIN, Ricardo. Palavra mágica. São Paulo: IEL/Massao Ohno, 1994.

16.12.13

Jules Laforgue: "Médiocrité" / "Mediocridade": trad. Régis Bonvicino





Mediocridade

No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saudam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o seu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.



Médiocrité

Dans l'Infini criblé d'éternelles splendeurs,
Perdu comme un atome, inconnu, solitaire,
Pour quelques jours comptés, un bloc appelé Terre
Vole avec sa vermine aux vastes profondeurs.

Ses fils, blêmes, fiévreux, sous le fouet des labeurs,
Marchent, insoucieux de l'immense mystère,
Et quand ils voient passer un des leurs qu'on enterre,
Saluent, et ne sont pas hérissés de stupeurs.

La plupart vit et meurt sans soupçonner l'histoire
Du globe, sa misère en l'éternelle gloire,
Sa future agonie au soleil moribond.

Vertiges d'univers, cieux à jamais en fête!
Rien, ils n'auront rien su. Combien même s'en vont
Sans avoir seulement visité leur planète.



LAFORGUE, Jules. Litanias da lua. Organização e tradução de Régis Bonvicino. São Paulo: Iluminuras, 1989.

13.12.13

António Ramos Rosa: "O momento de"





O momento de

Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti
neste espaço deserto.

Ele perscruta entre as pedras e as sombras.
Nada vê. Ignora. 0lha.
Que traços são estes,
qual a origem destas palavras nulas?

Ele escreve. O seu desejo é o desejo
de tornar habitável o deserto.


ROSA, António Ramos. A nuvem sobre a página. Lisboa: Dom Quixote, 1978.


10.12.13

Domício Proença Filho: "Narcisismo"





Narcisismo

-- Quando cansares
(se puderes)
de olhar o espelho
que te vivifica
e acaricia,
volta os olhos
em torno:
ali
o amor
antigo
espera solitário
a fratura das águas
e o encontro.



PROENÇA FILHO, Domício. O risco do jogo. São Paulo: Prumo, 2013.

9.12.13

Lançamento de livro de entrevistas de Antonio Cicero: livro organizado por Arthur Nogueira

Dia 12 (quinta-feira), na Argumento


Clique na imagem, para ampliá-la:

















Na mesma ocasião será lançado o livro mais cotidiano que o cotidiano,
do poeta Alberto Pucheu.

Clique na imagem para ampliá-la:

8.12.13

Waly Salomão: "Minha alegria"





Minha alegria

Minha alegria permanece eternidades soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.



SALOMÃO, Waly. Algaravias. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

6.12.13

Jorge Luis Borges: "Un ciego" / "Um cego": trad. de Augusto de Campos





Un ciego

No sé cuál es la cara que me mira
Cuando miro la cara del espejo;
No sé qué anciano acecha en su reflejo
Con silenciosa y ya cansada ira.

Lento en mi sombra, con la mano exploro
Mis invisibles rasgos. Un destello
Me alcanza. He vislumbrado tu cabello
Que es de ceniza o es aún de oro.

Repito que he perdido solamente
La vana superficie de las cosas.
El consuelo es de Milton y es valiente,

Pero pienso en las letras y en las rosas.
Pienso que si pudiera ver mi cara
Sabría quién soy en esta tarde rara.



Um cego

Não sei qual é a cara que me mira
Quando olho minha cara em um espelho;
Em seu reflexo não sei quem é o velho
Que me olha com cansada e muda ira.

Lento na sombra, com a mão exploro
As invisíveis rugas. Eis que assoma
Um lampejo. Vislumbro a tua coma
Que hoje é cinza ou ainda é de ouro.

Repito que perdi unicamente
A aparência superficial das cousas.
O consolo é de Milton e é potente,

Mas penso nas palavras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver-me a cara
Saberia quem sou na tarde rara.



BORGES, Jorge Luis. Quase Borges. 20 poemas e uma entrevista. Traduções de Augusto de Campos. São Paulo: Terracota, 2013.




3.12.13

Helio Jaguaribe: "Breve referência aos deuses gregos"




A importância que o Professor Helio Jaguaribe teve na minha formação intelectual é imensa. Ele era um dos grandes amigos do meu pai, Ewaldo Correia Lima. Quando fiz quinze anos, meu pai foi trabalhar no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), situado em Washington DC, para onde toda nossa família se mudou. O Professor Helio, nessa época, lecionava na Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachussets. Corria a fama de que era tal o brilhantismo de suas aulas que lhes acontecia serem, de vez em quando, interrompidas pelos aplausos dos estudantes entusiasmados: aplausos que ele acabou por proibir, por julgar que prejudicavam o clima de distanciamento intelectual mais propício às atividades acadêmicas.

Pois bem, nessa época, de vez em quando o Professor Helio nos visitava em Washington, e eu era um ouvinte deslumbrado das conversas dele com meu pai. Já tive em minha vida vários excelentes professores, tanto no Brasil quanto no exterior, mas jamais conheci alguém cujo discurso fosse tão fecundamente luminoso quanto o do Professor Helio Jaguaribe. Faço agora questão de lhe agradecer publicamente, pois foi a partir de suas palavras que descobri um dos maiores prazeres da minha vida, que é o de estudar filosofia.


Agradeço-lhe também por uma razão pontual. É que, a meu pedido, o Professor Helio Jaguaribe concedeu-me autorização para aqui postar o seguinte, belíssimo texto de sua autoria:




BREVE REFERÊNCIA AOS DEUSES GREGOS

 Como o poeta Hölderlin (1770-1843), quase acredito na existência dos deuses gregos.  Por quê?  Qual a causa desse profundo fascínio?  Por que um brasileiro, escrevendo estas linhas em Petrópolis, nos albores do séculos XXI, experimenta essa profunda atração por Pallas Athenea e seus irmãos olímpicos, pelos Titans, pelas Musas, pelas Erinyas e pelas Moiras?
Questões desse tipo envolvem muitas dimensões.  Uma primeira e principal é obviamente, a paixão pela Grécia.  Amar o mundo clássico significa, no fundamental, nele encontrar, em múltiplos sentidos, as expressões máximas do humano.  Ora o mundo clássico significa, por um lado, essa extraordinária gesta que vai dos descendentes de Deucalion a Alexandre, de Homero a Eurípides, de Thales a Aristóteles e, por outro lado, essa fabulosa mitologia que vai de Gaia e Uranus aos Olímpicos e aos deuses chtonianos.
No âmbito do amor à Grécia, destaca-se o fascínio por seus deuses.  Esse fascínio, mais uma vez, tem múltiplas causas.  Mencionaria duas como particularmente relevantes.  A causa mais imediata é o fato de os deuses gregos serem, no fundamental, expressões antropomórficas das grandes qualidades e das grandes expectativas do homem.  Assim Zeus, onipotente, representa o poder ordenador do mundo e dos homens.  Apolo é a perfeição masculina, a luminosidade e a poesia.  Atenas é a sabedoria.  Afrodite, o amor, Dionísio, o êxatase e o vinho, Heracles, a força e o heroísmo.
A segunda razão tem a ver com o que eu denominaria de ateísmo transcendente.  Para os que chegaram, filosoficamente, à convicção de que Deus não existe mas, ao mesmo tempo, acreditam em valores transcendentais – o Bem, a Justiça, a Verdade, o Belo – os deuses gregos personificam esses valores e constituem, miticamente, seus promotores e defensores.  Tenho em meu escritório um lindo busto de Atenas, a quem rendo, diariamente, o equivalente a um culto.  Não se trata, ainda que miticamente, de implorar sua proteção, porque não estão em jogo, por razões de elementar realismo, relações de causa e efeito.  Trata-se de uma invocação inspiradora, como a dos poetas que apelam para a Musa.
Para um intelectual com minhas características pessoais, freqüentar, imaginativamente, os deuses gregos, é uma forma de imprimir a minhas elucubrações uma motivação transcendental.
Trata-se de um delicioso faz-de-conta, que me leva a pretender receber o apoio dos deuses para minhas iniciativas, conferindo-lhes uma validade superior a que tenham.  É algo, por outro lado, que estreita minhas relações de identificação com a cultura clássica e com as figuras do panteon
helênico-romano, com os pré-socráticos, notadamente Heráclito e Demócrito, com a tríade Sócrates, Platão, Aristóteles, como o mundo helenístico de Epicuro e Zeno e com o mundo romano, de Cícero e César a Sêneca e Marco Aurélio.
O que é extraordinário, nos deuses clássicos é a fusão que neles se realiza entre o humano e o super-humano.  Dispõem das qualidades super-humanas requeridas para os eternos habitantes do Olimpo.  Mas se conservam profundamente humanos em suas motivações, com muitos dos defeitos do homem.  Dispondo de um corpo super-humano, não padecem de limitações como o sofrimento físico, a doença, o envelhecimento e a morte.  Tampouco estão  sujeitos à gravidade e à cronologia, deslocando-se instantaneamente no espaço e no tempo.  Mas padecem do amor e do ciúme, da inveja e da cólera e de expectativas que nem sempre logram realizar, como a paixão de Apolo por Daphne.
Os deuses gregos não prescrevem, salvo em termos muito genéricos, (basicamente contra a perfídia), uma conduta ética.  Minha pessoal preocupação ética não decorre deles nem neles se baseia.  O que deles decorre e neles se baseia é minha aspiração à excelência.  Todos os deuses gregos são personificações de excelência nas qualidades que lhes são peculiares.  Uma excelência para a qual estimulam os que protegem, como Atenas em relação a Odisseus.  Uma excelência, por outro lado, que leva alguns a não suportar a de outrem, como Apolo sacrificando Marsyas por sua superior capacidade de tocar a flauta.
Além de poderoso estímulo os deuses gregos proporcionam indispensável apoio para a compreensão do mundo clássico.  Como é sabido, o panteon helênico se transferiu aos romanos, alguns deuses conservando o mesmo nome, como Apolo, mas a maioria adquirindo nomes latinos, como Júpiter para Zeus, Diana para Ártemis, Baco para Dionísio.  Conservaram, em sua versão romana, as características que ostentavam na helênica, embora, em alguns casos, tenham experimentado certa degradação, Vênus tornando-se mais sensual que Afrodite, Marte mais militar que Ares, Baco mais grosseiro que Dionísio, Vulcano, mais artesão do que Hefaisto.
O apelo aos deuses gregos, no quotidiano de nossos dias, é uma forma amável de referir criscunstâncias superiores sem recorrer ao divino das religiões monoteístas.  Assim “dei volendi”, em lugar de se Deus quiser.  O que torna particularmente simpático, para um ateu transcendente, a referência aos deuses, notadamente tomados no plural, é o fato de dessa forma se assinalar o que supera o correntemente humano sem se incidir em mitos sobrenaturais.  Os deuses gregos são supremos entes da cultura, não objetos de fé.


JAGUARIBE, Helio. "Breve referência aos deuses gregos". In:_____. Estudos filosóficos e políticos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013. 

1.12.13

Arnaldo Antunes: "Sou volúvel"




Meu querido amigo Adriano Nunes enviou-nos o link para um belíssimo -- e oportuníssimo -- clip de Arnaldo Antunes. Vejam:

http://youtu.be/N4CFyktqZEs

Ingeborg Bachmann: "Exil" / "Exílio": trad. por Vera Lins






Exílio

Um morto eu sou, ambulante
registrado em parte nenhuma
desconhecido no reino do prefeito
excedente nas cidades douradas
e no campo verdejante

despachado há muito
sem receber nada

Apenas o vento, o tempo e o som

que não posso viver no meio dos homens

Eu com a língua alemã
esta nuvem em torno de mim
que mantenho como casa
divago por todas as línguas

Ó como ela escurece
os tons sombrios, de chuva
só esses poucos que caem

Depois ela leva o morto para cima, a zonas mais claras.


Exil

Ein Toter bin ich der wandelt
gemeldet nirgends mehr
unbekannt im Reich des Präfekten
überzählig in den goldenen Städten
und im grünenden Land


abgetan lange schon
und mit nichts bedacht

Nur mit Wind mit Zeit und mit Klang

der ich unter Menschen nicht leben kann

Ich mit der deutschen Sprache
dieser Wolke um mich
die ich halte als Haus
treibe durch alle Sprachen

O wie sie sich verfinstert
die dunklen die Regentöne
nur die wenigen fallen

In hellere Zonen trägt dann sie den Toten hinauf




BACHMANN, Ingeborg. Trad. por Vera Lins. In: LINS, Vera. Ingeborg Bachmann. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.