A seguinte entrevista, que concedi a Salvatore Carrozzo, do jornal Correio da Bahia, de Salvador, foi publicada em 27 de junho:
Qual foi o seu objetivo ao fazer este livro? Qual pergunta queria responder?
A pergunta que motiva o livro é a que frequentemente me fazem: qual a diferença entre poesia e filosofia? Como penso, contra as tendências da moda, que são empreendimentos diferentes, aproveitei para não apenas falar dessa diferença, mas sobretudo para expor minhas ideias sobre a especificidade da poesia.
O brasileiro ainda liga poesia e filosofia a algo hermético?
Muita gente realmente despreza tudo o que não tem alguma utilidade prática. Pior: despreza tudo o que não dá dinheiro. Além disso, enquanto é possível fazer coisas práticas, como trabalhar, comer, transar ou ler o jornal ouvindo música, por exemplo, não é possível fazer nada disso ao mesmo tempo em que se lê um poema ou um ensaio de filosofia. Estes exigem tempo e concentração. Sendo assim, a poesia e a filosofia acabam sendo desprezadas. A ciência não é desprezada do mesmo modo somente porque é associada à tecnologia, logo, à técnica, logo, à utilidade prática.
Em um momento do livro, o senhor cita a lenda segundo a qual filósofo Tales, olhando os astros, caiu em um poço, e foi caçoado: "Pretendendo conhecer os céus, ignorava o que se encontrava aos seus pés". A filosofia tem virado muito as costas para os problemas do Brasil?
Acho mais lamentável que os brasileiros virem as costas para a filosofia. Então devemos deixar o pensamento mais ambicioso e profundo para os franceses, alemães, americanos, isto é, para os outros, limitando-nos a pensar sobre o que está aos nossos pés? Então um alemão, quando filosofa, pode perguntar-se sobre o ser, sobre o universo ou sobre os problemas da humanidade, mas nós, brasileiros, devemos nos ater aos problemas do Brasil? A Grécia antiga é hoje admirada como um dos pontos altos da história exatamente por causa de gente como Tales, que era capaz de voltar o olhar para o que se encontra muito além do chão que pisava, e não por causa dos que caçoavam de Tales.
O senhor diferencia pensar sobre o mundo e pensar o mundo. Poderia explicar melhor isso?
Em 2004, Adauto Novaes concebeu um ciclo de conferências intitulado “Poetas que pensaram o mundo”. Pareceu-me importante que ele o tivesse intitulado assim e não, como seria de esperar, “Poetas que pensaram SOBRE o mundo”. Refletindo sobre a diferença entre essas duas formulações, pareceu-me que, de fato, são os filósofos que pensam SOBRE o mundo, enquanto os poetas pensam O mundo. É como se os filósofos estivessem ACIMA, o que implica que estivessem FORA do mundo, ao pensar sobre ele. Já o pensamento dos poetas tende a se confundir com o mundo. O poeta, enquanto poeta, isto é, nos seus poemas, pensa não apenas com conceitos que pretendam abarcar o mundo, mas também com os sons, os ritmos, as imagens do próprio mundo: pensa, por isso O mundo, e não sobre o mundo.
O termo "poético" é usado para dizer algo muitas vezes pueril. "Fulano tem um olhar poético da vida", por exemplo. Isso faz parte da construção da poesia como algo supérfluo?
Creio que sim. É como se os poetas, como as crianças, não tenham caído na “real”, que é, segundo o senso comum, ver a vida com um olhar pragmático, utilitário, instrumental.
Em seu livro, o senhor fala de textos que podem, simultaneamente, ter uma contribuição original ao pensamento filosófico e ser um bom poema. Isso é raro hoje em dia?
Não é raro apenas hoje em dia. Sempre foi muito raro que um texto fosse, ao mesmo tempo e no mesmo trecho, um bom poema e uma contribuição original ao pensamento filosófico. É que aquilo que torna um texto poético bom não é o que torna um texto filosófico bom. O valor de um texto filosófico depende, por um lado, da originalidade e da capacidade das teses filosóficas que propõe de darem conta de questões lógicas, ontológicas, epistemológicas e estéticas, bem como da qualidade da argumentação com que o faz. Já o valor de um poema é função de sua capacidade de estimular o jogo de todas as nossas faculdades: inteligência, sensibilidade, emoção, sensualidade, memória etc. São coisas inteiramente diferentes.
O senhor diz, no livro, ser perfeitamente concebível um filósofo não produzir uma obra sequer em sua vida. Isso de alguma forma não corrobora a ideia do filósofo como um ser superior, que não faz parte do mundo?
Não necessariamente. Sócrates, por exemplo, era considerado filósofo porque suas ideias, mesmo não tendo sido escritas, foram discutidas e divulgadas pelos seus discípulos. Tanto ele quanto Pitágoras, outro filósofo que jamais escreveu, diziam preferir colocar suas doutrinas em seres dotados de alma (os discípulos) do que em seres sem alma (os livros). No fundo, eles achavam que, desse modo, essas doutrinas fariam mais integralmente parte do mundo.
Muitos poetas, o senhor incluído, dizem que, a rigor, o poema não serve para nada. Muito já foi declamado sobre esse assunto. Não é algo radical demais?
Não. É que o poema não precisa se justificar por nenhuma utilidade ulterior a ele mesmo. Sua leitura compensa a si própria. Nesse sentido, o poema vale por si. Isso não significa nenhum formalismo. É o poema como um todo, em que forma e conteúdo, não podem ser separados um do outro, que vale por si.
O senhor se refere muito a Carlos Drummond de Andrade no seu livro. Uma predileção especial? Podemos tratá-lo como um filósofo?
Não. Drummond não foi um filósofo. Foi o nosso maior poeta. Enquanto tal, ele não foi inferior a filósofo nenhum. A poesia é diferente, mas não é inferior nem superior à filosofia. Como eu já disse, um poema é capaz de mexer com todas as nossas faculdades: e é capaz de mexer com tudo o que sabemos, inclusive com a filosofia, a história, a geografia, a mitologia, a física que conheçamos. Um poema pode, por exemplo, falar do ser, da Grécia, de vulcões, de Zeus, de “partículas elementares” ou de “buracos negros”. Mas isso não quer dizer que ele seja uma obra de filosofia, história, geografia mitologia ou física. Ele é uma obra de poesia apenas, e isso basta.
No Brasil, a média é de pouco mais de um livro lido por ano. Isso não é muito frustrante para um escritor?
Sim; principalmente considerando que, apesar disso, nenhum governo investe maciçamente na educação.
No livro, o senhor diz que "deve-se às vanguardas do século XX a desfetichização completa de todos os recursos poéticos". Poderia explicar melhor isso?
É muito simples. Certas formas poéticas haviam sido fetichizadas, isto é, enfeitiçadas, pela tradição. Como a maior parte da poesia produzida no Ocidente moderno era metrificada e rimada, por exemplo, supunha-se que a métrica e a rima fossem intrinsecamente poéticas. Elas eram, de maneira geral, tidas como necessárias e como suficientes para a produção de um poema. Viraram fetiches. Ou seja, um texto que não possuísse métrica e rima não era normalmente tomado como um poema; e um texto que as possuísse era automaticamente tomado com um poema. Ora, as vanguardas mostraram que era possível produzir poemas sem métrica, rima ou outras características fetichizadas. Com isso, desfetichizaram tais características.
O senhor lê latim e grego? Ainda são línguas essenciais para o estudo da filosofia como foi no passado?
Tenho a impressão de que nada foi mais importante, para minha formação, do que aprender grego e latim. Nada me estimulou ou ensinou mais do que o estudo dessas línguas, tanto no que diz respeito à poesia, quanto no que diz respeito à filosofia. Mas não tenho o direito de generalizar. Há inúmeros grandes poetas e inúmeros grandes filósofos que não leem nem grego nem latim.
No ano passado, Marina Lima, sua irmã, lançou Climax, o primeiro disco sem colaborações suas. O senhor se incomodou com isso, de alguma forma?
Não me incomodou propriamente porque isso é, em parte, resultado de minha própria opção por me concentrar em escrever ensaios de filosofia e poesia para ser lida. Além disso, nossa parceria era sempre resultado de muitas conversas. Normalmente, eu ia para a casa dela, onde ela me mostrava a música que estava começando a compor e eu, a partir das conversas e do clima da música, começava a esboçar uns versos. Ora, agora Marina está morando em São Paulo e eu, no Rio, de modo que isso se tornou mais complicado. Lamento essa distância, mas tenho certeza de que ainda faremos muita coisa juntos.
29.6.12
27.6.12
Alex Varella: "Ontologia"
Ontologia
Existem o mar e o sol.
E além disso,
também existem o sol e o mar do poema.
VARELLA, Alex. Céu em cima / Mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.
25.6.12
Antonio Cicero: "Aparências"
Aparências
Não sou mais tolo não mais me queixo:
enganassem-me mais desenganassem-me mais
mais rápidas mais vorazes mais arrebatadoras
mais volúveis mais voláteis
mais aparecessem para mim e desaparecessem
mais velassem mais desvelassem mais revelassem mais re-
velassem
mais
eu viveria tantas mortes
morreria tantas vidas
jamais me queixaria
jamais.
CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012. (No prelo)
23.6.12
António Botto: "Quanto, quanto me queres?"
Quanto, quanto me queres? — perguntaste
Numa voz de lamento diluída;
E quando nos meus olhos demoraste
A luz dos teus senti a luz da vida.
Nas tuas mãos as minhas apertaste;
Lá fora da luz do Sol já combalida
Era um sorriso aberto num contraste
Com a sombra da posse proibida...
Beijámo-nos, então, a latejar
No infinito e pálido vaivém
Dos corpos que se entregam sem pensar...
Não perguntes, não sei — não sei dizer:
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.
BOTTO, António. As canções de António Botto. Lisboa: Presença, 1999.
20.6.12
Detlev Meyer: "Trocadéro"
Trocadéro
No bar um jovem
que parece ter sido
inventado por Botticelli
segundo um estudo em SO 36
Ele tem mãos de operário
como num filme da DEFA
e o perfil
dos prerrafaelitas
Por fora quase Florença,
mas por dentro somente Kreuzberg,
pensa invejoso seu vizinho
que por fora é muito Hannover
mas por dentro todo Hélade.
Trocadéro
An der Bar ein Junge
der aussieht als hätte ihn
Botticelli erdacht nach
Zeichenstudien in SO 36
Er hat Arbeiterhände
wie aus einem Defa-Film
und das Profil
der Präraffaeliten
Außen fast Florenz
aber innen nur Kreuzberg
denkt neidisch sein Nachbar
der außen sehr Hannover
aber innen ganz Hellas ist
MEYER, Detlev. Heute Nacht im Dschungel: fünfzig Gedichte. Berlin: Oberbaumverlag, 1981.
17.6.12
Antonio Cicero: entrevista a Diego Viana
A seguir publico na íntegra a entrevista que concedi a Diego Viana e que foi publicada parcialmente no jornal Valor Econômico, em 11 do corrente:
Sua participação na Flip deste ano será dedicada aos 110 anos de Drummond. Gostaria de poder adiantar um pouco do que será discutido. O que há para dizer de Drummond, hoje, que vá além de tudo que já se disse?
Sempre haverá o que dizer sobre a poesia de Drummond porque Drummond escreveu vários grandes poemas. Ora, um único grande poema já é capaz de evocar tantas coisas, de aludir a tantas coisas, de admitir tantos níveis de tantas interpretações, que nada do que se disser sobre ele será capaz de esgotá-lo.
Logo nos primeiros capítulos, o sr. aponta uma característica comum da filosofia e da poesia, que as deixa, ambas, algo deslocadas hoje: a exigência de dedicação e tempo. Até que ponto a correria contemporânea pode comprometer não apenas a recepção, mas a própria atividade da poesia e da filosofia?
De fato, a temporalidade cotidiana, utilitária e instrumental dos nossos dias não favorece o cultivo nem da poesia nem da filosofia. Trata-se de uma temporalidade inteiramente submetida ao utilidade, à instrumentalidade, ao princípio do desempenho. Contudo, é a filosofia que nos permite criticar a exclusividade da vigência desse mesmo princípio, e é a poesia escrita que nos dá acesso a outro modo de apreensão do ser, a outra temporalidade, não submetida ao princípio do desempenho. É por serem empreendimentos extremos do pensamento que a poesia e a filosofia são tanto indispensáveis quanto impopulares, pelo menos hoje e no futuro previsível.
A liberdade dos poetas, conquistada a duras penas, em relação às formas (inclusive a liberdade de adotar uma forma clássica) é, não raro, criticada como esteticamente permissiva demais. Assim como ocorre com a maior parte da arte contemporânea, a poesia enfrenta um saudosismo segundo o qual “quando tudo se pode fazer, nada se faz de verdade”. Como o sr. encara essa antiga objeção à poesia e à arte contemporâneas?
Encaro-a como inaceitável, pois regressiva. As vanguardas nos ensinaram que não é possível estabelecer limites a priori para a liberdade poética. A poesia não se encontra prêt-à-porter em nenhuma forma dada. O domínio de nenhuma técnica particular garante a qualidade de um poema. Quase todos os poemas escritos em versos livres são ruins; mas também quase todos os poemas escritos em versos metrificados são ruins. É que, em matéria de poesia, só o excelente é bom. E não há regras para a produção ou a avaliação de poesia excelente. É preciso julgar caso a caso. Como já dizia Montaigne, “a poesia boa, excessiva, divina está acima das regras e da razão”.
Já em 2007, o sr. publicou um artigo em que argumentava pela manutenção da fronteira clara entre poesia e filosofia. Há quanto tempo a questão dessa fronteira o motiva? Nos cinco anos de intervalo entre o artigo e o livro, a que acréscimos sua reflexão o levou?
Quando escrevi o artigo, já pensava a maior parte das coisas que agora desenvolvo no livro. No espaço limitado de um artigo de jornal, porém, era limitado o que eu podia dizer. Por isso, quando o Evando Nascimento, que dirige o selo “Coleção Contemporânea” da Civilização Brasileira, convidou-me para escrever um volume sobre poesia e filosofia, aproveitei essa ocasião.
Para alguém que trabalha com a mesma desenvoltura na erudição da filosofia e na música popular, como se dá a relação entre o erudito e o popular? Durante décadas, foi uma relação de desconfiança mútua, não raro até de desprezo.
É verdade. No entanto, há muita coisa vulgar no terreno “erudito” e muita coisa fina no terreno “popular”. De novo, também aqui é preciso julgar caso a caso. Antigamente eu considerava que o desprezo pelo jazz que um pensador como Adorno ostentava não passasse de uma mistura de ignorância e preconceito; hoje em dia, porém, depois de ler o artigo de 1933 em que Adorno, sendo judeu e marxista, apela ao governo nazista pela proibição do jazz, considero esse “desprezo” como simplesmente patológico.
Além da vontade em borrar a fronteira entre poesia e filosofia, me parece que uma das tarefas a que se entregou a filosofia no século XX, ou, pelo menos, a filosofia chamada continental (particularmente a francesa), foi justamente derreter fronteiras em geral, entre práticas, teorias, doutrinas. Se aceitarmos essa perspectiva, poderíamos dizer que erguer-se contra a dissolução da fronteira entre poesia e filosofia se inscreve numa disputa mais ampla, erguendo-se contra a dissolução de fronteiras em geral?
Não, pois creio que algumas fronteiras eram meramente convencionais, de modo que teriam, mais cedo ou mais tarde, que ser relativizadas ou suprimidas. Refiro-me, em particular, às fronteiras entre as diferentes artes. Mas, como tento mostrar no meu livro, a fronteira entre arte e filosofia não pode ser suprimida sem prejuízo para ambas. Creio que o mesmo vale para as fronteiras entre arte e ciência, por um lado, e ciência e filosofia, por outro.
Até que ponto a motivação para questionar o vínculo entre poesia e filosofia está ligada a sua própria prática dupla, de poeta e filósofo? Pergunto isso porque poderíamos acrescentar aí uma questão, para além daquela do poema como objeto, sobre o sujeito do fazer poético e o sujeito do pensamento filosófico: como é a coabitação entre esses esforços dentro de uma mesma consciência, no caso, a sua? Ou seja: dialogam? São permeáveis um ao outro? Entram em conflito?
Costumo dizer que, em mim, quando chega o filósofo, o poeta vai embora; e que, enquanto o filósofo está presente, o poeta nem sequer aparece. Sei que isso parece um tanto esquizofrênico, mas é assim.
A mesma questão, de maneira mais direta e simples: em sua poesia, não há também filosofia e, em sua filosofia, poesia?
Em minha poesia pode estar presente tudo o que sei e tudo o que vivo, inclusive a filosofia. Contudo, o que sei de filosofia não está mais presente na minha poesia do que o que sei de história, sociologia, urbanismo, pintura, romance etc.; nem mais presente nela do que a minha memória, o meu senso de humor, a minha emoção, as minhas sensações etc. É o livre jogo das diferentes faculdades que produz o poema. Embora também na filosofia tudo possa ser levado em conta, o que nela domina é a razão. Mas o que faço questão de mostrar no livro é que são inteiramente diferentes os fatores que nos fazem dar valor a um poema, por um lado, e os que nos fazem dar valor a uma obra filosófica, por outro.
Simplifiquei a pergunta anterior para poder introduzir a questão de filósofos que escreveram poesia (não simplesmente verso) mesmo quando filosofavam: sejam Heráclito, Parmênides e Empédocles, seja Lucrécio, seja Nietzsche. Neles, o trabalho poético prejudica ou amplifica o trabalho filosófico?
Tanto os poetas quanto os filósofos são pensadores. Ocorre porém que os pensamentos destes são de natureza inteiramente diferente dos pensamentos daqueles. Digo sempre que os filósofos pensam SOBRE o mundo. É como se estivessem do lado de fora, ou acima do mundo, para pensar sobre ele. O mundo é o objeto sobre o qual eles pensam. Já os poetas pensam O mundo. Eles estão imersos no mundo que pensam. Não há nem a mediação preposicional -- ou linguística --, nem mediação nenhuma entre eles e o mundo que pensam. Eles não se diferenciam do mundo, que se lhes apresenta tanto como objeto quanto como sujeito. Quanto aos filósofos que você menciona: Heráclito, que se saiba, não escreveu propriamente poemas, mas aforismos; Parmênides e Empédocles escreveram em versos, mas como Aristóteles observava, referindo-se a eles, fazer versos não é ainda fazer poesia. Já Lucrécio, embora fosse certamente um grande poeta, não se declarava filósofo, mas apenas divulgador da obra do filósofo Epicuro. É verdade que Nietzsche escreveu alguns poemas, mas a maior e melhor parte de sua obra não é propriamente composta de poemas, mas de textos literários bastante sui generis.
Outro tema que aparece no livro e no artigo é o da intuição, na filosofia, e da inspiração, na poesia. Considerando que ambos os termos remetem à noção de um germe criativo, a desenvolver pela reflexão ou pela sensibilidade, de que maneira eles se diferenciam? Podemos dissociá-los radicalmente?
Em certo sentido sim, pois ambos provêm do acaso e do inconsciente, mas eu diria que a intuição filosófica se aproxima de uma espécie de curto-circuito conceitual ou intelectual, enquanto a inspiração do poeta envolve todas as suas faculdades.
Pierre Vidal-Nacquet e Jean-Pierre Vernant retraçam a passagem da Grécia clássica à Grécia socrática, discutindo, entre outras coisas, a evolução das formas de registro da história e do pensamento; um dos elementos dessa transformação está na gramatização da língua, com a separação das frases etc., e a transição do verso para a prosa na história, na filosofia, no teatro. Assim, a poesia poderia ser associada a uma “mentalidade trágica”, enquanto a prosa se associaria a um racionalismo então nascente. Agora, à pergunta: levando adiante essa leitura, a distinção rigorosa entre filosofia e poesia não seria a expressão desse racionalismo, o que faria da tentativa de ir além dessa distinção um esforço de superá-lo? Ou seja: definir essa fronteira comum não consiste, também, em definir as fronteiras da filosofia como um todo?
A gramatização da língua grega se deu em primeiro lugar ao serem escritos os poemas orais de Homero. Ou seja, ela se deu antes da produção de qualquer texto em prosa. Acho errado considerar a poesia lírica como expressão de uma “mentalidade trágica”. Quanto à distinção entre poesia e filosofia, ela não é, a meu ver, a expressão de nenhum racionalismo, mas sim uma expressão da atividade da própria razão. E não vejo como seria possível à razão superar a si própria.
Se um poema, como um quadro de Rembrandt, é uma obra que suscita “o livre jogo da imaginação e do entendimento”, ele não é, porém, um objeto da natureza, como a paisagem e a flor. Existe aí um ato dotado de finalidade estética, ao qual o leitor ou espectador será confrontado, ainda que de maneira exclusivamente estética; é, ao menos, um ato que se insere na realidade e a condensa no objeto da criação: o poema, o quadro. Ora, esse confronto com um objeto que penetra na realidade de maneira até então desconhecida não poderia ser um embrião ou um estopim de filosofia? O mesmo não poderia se dar no propósito de criação de um poema?
Sim. Um ramo da filosofia, a estética, reflete exatamente SOBRE a arte, a poesia, a criação. Mas seria absurdo confundir a estética filosófica com a arte, a poesia ou a criação.
16.6.12
Maria Cecilia Brandi: "Jabs"
Jabs
não gostava muito dos animais
achava-os burros, ignorantes, simplórios
andava encantada com as descobertas humanas
hoje não gosta muito do mundo que descobriu
e o que importa é o afeto com que corta
a casca de meio mamão e pica duas folhas
de alface todas as manhãs para o jabuti
BRANDI, Maria Cecilia. Atacama. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
14.6.12
Ferreira Gullar: "Uma aranha"
Uma aranha
ela surgiu não sei de onde
quando abri o Dicionário de Filosofia
de José Ferrater Mora
no verbete Descartes, René;) mi-
núscula
com suas muitas perninhas
quase invisíveis
cruzou a página 1305 como se flutuasse
(uma esfera de ar
viva)
e foi postar-se no alto
no limite entre o texto e a margem branca
enquanto eu
fascinado
indagava:
como pode residir
insuspeitado
nestas encardidas páginas
– em minha casa, afinal de contas –
um tal ser
mínimo mas vivo
consciente de si
(e como eu
parte do século XXI)
e que agora parece observar-me
tão espantado quanto estou
com este nosso inesperado encontro?
FERREIRA GULLAR. Em alguma parte alguma. Lisboa: Babel, 2010.
12.6.12
Antonio Cicero: "Os diferentes caminhos da filosofia e da poesia"
A seguinte entrevista, dada por mim a Diego Viana, foi publicada no jornal Valor Econômico no dia 11 de junho:
Os diferentes caminhos da filosofia e da poesia
"Quando chega o filósofo, o poeta vai embora; e, enquanto o filósofo está presente, o poeta nem sequer aparece", diz Antonio Cicero, que lança livro
O carioca Antonio Cicero é homem de dois ofícios. Como poeta, publicou as coletâneas "Guardar" (1996) e "A Cidade e os Livros" (2002). Como filósofo, lançou "O Mundo Desde o Fim" (1995) e "Finalidades sem Fim" (2005). Versos seus, como "Virgem", "Três" e "Fullgás", se tornaram sucessos da música popular. Grande parte de seu tempo é dedicado a essas duas atividades - tanto as de lazer quanto as de trabalho, ele ressalta.
Com o lançamento de "Poesia e Filosofia" (Civilização Brasileira, "Coleção Contemporânea: Filosofia, Literatura, Artes"), Cicero procura responder à curiosidade de seus leitores quanto à ligação entre essas duas atividades. E a resposta, peremptória, é oferecida logo na introdução: são duas atividades humanas inteiramente diferentes uma da outra.
"Costumo dizer que, em mim, quando chega o filósofo, o poeta vai embora; e, enquanto o filósofo está presente, o poeta nem sequer aparece", diz o autor. "Sei que isso parece um tanto esquizofrênico, mas é assim."
O ponto de partida é a experiência pessoal, mas os capítulos se desenvolvem a partir de uma argumentação filosófica. As ideias desenvolvidas no livro já apareciam em um artigo publicado em 2007 na "Folha de S. Paulo", com o mesmo título.
"Quando escrevi o artigo, já pensava a maior parte das coisas que agora desenvolvo no livro", conta. O convite para participar da coleção organizada por Evando Nascimento na Civilização Brasileira foi encarado como uma oportunidade para aprofundar o pensamento sobre a relação entre poesia e filosofia - ou a ausência dessa relação.
"O que faço questão de mostrar é que são inteiramente diferentes os fatores que nos fazem dar valor a um poema, por um lado, e os que nos fazem dar valor a uma obra filosófica, por outro."
Para sustentar seu argumento, Cicero evoca uma estética de inspiração kantiana, segundo a qual a produção de um poema resulta do livre jogo entre a imaginação e o entendimento. Tudo aquilo que está presente na consciência do poeta pode acabar entrando no poema, se o resultado final assim o permitir. "Embora também na filosofia tudo possa ser levado em conta, o que nela domina é a razão", resume o filósofo.
O poeta evoca um célebre diálogo entre o pintor Edgar Degas (1834-1917) e o poeta Stéphane Mallarmé (1842-1898) para explicar mais a fundo sua intenção. Degas teria dito a Mallarmé que poderia ser poeta "porque tem muitas ideias", e ouviu a resposta: "A poesia não é feita com ideias, mas com palavras".
"Tanto os poetas quanto os filósofos são pensadores", afirma Cicero. A diferença, para ele, é que os filósofos pensam sobre o mundo, como "se estivessem do lado de fora, ou acima do mundo, para pensar sobre ele". O mundo é, portanto, um objeto para a apreensão do pensamento.
Já os poetas pensam o mundo: "Eles estão imersos no mundo que pensam. Não há nem mediação linguística, nem mediação nenhuma entre eles e o mundo que pensam".
Embora o livro esteja estruturado em torno da fronteira rigorosa entre as duas atividades cultivadas por Antonio Cicero, os primeiros capítulos se dedicam aos problemas comuns do poeta e do filósofo. O primeiro deles é a exigência de dedicação e tempo, que coloca ambas as atividades no contrapé de uma modernidade imediatista e utilitarista. Tanto a leitura de poemas e ensaios filosóficos quanto sua produção ficam prejudicadas.
"A temporalidade contemporânea é inteiramente submetida à utilidade, à instrumentalidade e ao princípio do desempenho", cita o filósofo. "Contudo, é a filosofia que nos permite criticar a exclusividade desse princípio, e é a poesia escrita que nos dá acesso a outro modo de apreensão do ser", completa o poeta.
Outro tema invocado no livro é o da origem das duas atividades: na poesia, a inspiração; na filosofia, a intuição. "Ambos provêm do acaso e do inconsciente", afirma Cicero. "Mas a intuição filosófica se aproxima de uma espécie de curto-circuito conceitual ou intelectual, enquanto a inspiração do poeta envolve todas as suas faculdades."
Para aqueles que tenham dificuldade em concordar com suas ideias, o poeta-filósofo indica duas obras que apresentam ideias contrárias. Do filósofo italiano Giorgio Agamben ele recomenda "La Fine del Poema" (O Fim do Poema); do poeta brasileiro Alberto Pucheu recomenda "Pelo Colorido, Para Além do Cinzento (A Literatura e Seus Entornos Interventivos)".
Em julho, Antonio Cicero participará da conferência de abertura da 10ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), ao lado de Silviano Santiago. O poeta e o crítico falarão sobre Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o homenageado deste ano. "Sempre haverá o que dizer sobre a poesia de Drummond, porque Drummond escreveu vários grandes poemas", diz. "Um único grande poema já é capaz de evocar tantas coisas que nada do que se disser sobre ele será capaz de esgotá-lo."
"Poesia e Filosofia"
Antonio Cicero. Civilização Brasileira, 144 págs., R$ 29,90
9.6.12
Vladimir Safatle: "Um livro impossível"
O seguinte -- excelente -- artigo de Vladimir Safatle foi publicado na Folha de São Paulo, no dia 5 de julho.
Um livro impossível
"Ensaios sobre Cultura", de Celso Furtado (Contraponto, 198 páginas), é um livro impossível de ser escrito. Ele reúne artigos e intervenções do economista sobre as relações entre cultura e economia, assim como textos de sua autoria à ocasião de sua rápida passagem pelo Ministério da Cultura, entre 1986 e 1988.
Tal livro é impossível porque, atualmente, não é mais pensável um economista falando com profundidade sobre processos de formação cultural e sobre as relações necessárias entre desenvolvimento e criatividade.
Afundada em uma autoilusão que lhe leva a se ver como uma "ciência matemática", a economia ensinada nas universidades em nada mais se assemelha ao impressionante cruzamento entre história, teoria social e sensibilidade para os processos culturais, que fizeram a marca da experiência intelectual brasileira de Celso Furtado.
Acreditando que sua cientificidade é paga necessariamente com seu afastamento do campo das ciências humanas, a economia de hoje deleita-se com modelos de "ação racional" que nada têm a ver com o modo com que ações sociais realmente se constituem por meio da mobilização de crenças, valores e aspirações.
Dessa forma, economista algum é mais capaz de escrever algo como: "Falar de desenvolvimento como reencontro com o gênio criativo e como realização das potencialidades humanas pode parecer simples fuga na utopia. Mas que é a utopia senão o fruto da percepção de dimensões secretas da realidade, um afloramento das energias contidas que antecipa a ampliação do horizonte de potencialidades aberto ao homem? Esta ação de vanguarda constitui uma das ações mais nobres a serem cumpridas pelos intelectuais nas épocas de crise".
Mas, não contente em simplesmente escrever sobre as relações entre desenvolvimento e criatividade, Celso Furtado quis implementá-las. Sua passagem pelo Ministério da Cultura foi um dos momentos mais ousados de criação de políticas culturais no Brasil.
Por meio deste livro, descobrimos quão avançado era seu projeto original de Lei de Incentivo à Cultura. Celso Furtado sugeria que não apenas as empresas pudessem se beneficiar de isenção fiscal ao financiar atividades culturais. Também as pessoas físicas poderiam abater parte de seu Imposto de Renda ao financiar projetos que elas escolheriam a partir de uma lista fornecida pelo MinC. Dificilmente poderíamos pensar em ideia mais bem acabada de democratização da produção cultural e valorização dos impostos.
Ações ousadas como essa só são possíveis para pessoas capazes de aliar conhecimento técnico e sensibilidade cultural. Pessoas impossíveis, como Celso Furtado.
8.6.12
Algernon Charles Swinburne: "The garden of Proserpine" / "O jardim de Proserpina": trad. Nelson S
Vale a pena ler a bela tradução que Nelson S fez do famoso poema de Swinburne, "The garden of Proserpine", no endereço http://www.tumblr.com/.
7.6.12
Antonio Cicero: "Desejo"
Desejo
Só o desejo não passa
e só deseja o que passa
e passo meu tempo inteiro
a enfrentar um só problema:
ao menos no meu poema
agarrar o passageiro.
CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
(No prelo)
Blaise Pascal: trecho do prefácio ao "Traité du vide"
Aqueles que nós chamamos de antigos eram verdadeiramente novos em todas as coisas, e formavam a infância dos homens propriamente; e como juntamos aos conhecimentos deles a experiência dos séculos que os seguiram, é em nós que se pode encontrar essa antiguidade que reverenciamos nos outros.
PASCAL, Blaise. Oeuvres complètes. Ed. J. Chevalier. Paris: Gallimard, 1954.
5.6.12
Ivan Junqueira: "Lamento para Rafael"
Lamento para Rafael
E então fui ver-te neste dia escuro,
de céu nevoento e chuva pesarosa,
de ninguém pelas ruas, de uma rosa
que se inclinava, seca, sobre o muro.
Apenas tu e a morte, mote e glosa,
ali, no pátio nu, onde o futuro,
o teu, fosse talvez algo mais duro
do que a infância que te coube, anfractuosa.
O mar em tuas veias se entrelaça
à espuma em que, tritão, és como a inquieta
e atormentada alma que tens, de poeta,
de alguém que à morte um dia ergueu a taça,
quando tudo era vórtice e presságio
— e agora é só lembrança do naufrágio.
JUNQUEIRA, Ivan. O outro lado. Poemas 1998-2006. Rio de Janeiro: Record, 2007.
3.6.12
Ian Hamilton: "The storm" / "A tempestade": trad. Nuno Vidal
The storm
Miles off, a storm breaks. It ripples to our room.
You look up to the light so it catches one side
Of your face, your tight mouth, your startled eyes
You turn to me, and when I call you come
Over and kneel beside me, wanting me to take
Your head between my hands as if it were
A delicate bowl that the storm might break
You want me to get between you and the brute thunder.
Settling on your flesh, my great hands stir,
Pulse on you, and then wondering how to do it, grip.
The storm rolls through me as your mouth opens.
A tempestade
Ao longe, rompe um temporal. Rola para o nosso quarto.
Olhas para a luz de modo a apanhar-te um lado
Da cara, da boca apertada, do olhar sobressaltado.
Viras-te para mim e quando chamo tu vens
Cá e ajoelhas-te ao meu lado, para eu tomar
A tua cabeça entre as mãos como se fora tal
Uma taça delicada que a tormenta pudesse quebrar.
Queres que me ponha entre ti e o trovão brutal.
Ao pousar na tua carne estas mãos grandes tremem,
Latejam em ti e depois, inseguramente, cingem.
O temporal invade-me enquanto a tua boca abre.
HAMILTON, Ian. Cinquenta poemas. Edição bilingue. Tradução de Nuno Vidal. Lisboa: Cotovia, 1995.
Miles off, a storm breaks. It ripples to our room.
You look up to the light so it catches one side
Of your face, your tight mouth, your startled eyes
You turn to me, and when I call you come
Over and kneel beside me, wanting me to take
Your head between my hands as if it were
A delicate bowl that the storm might break
You want me to get between you and the brute thunder.
Settling on your flesh, my great hands stir,
Pulse on you, and then wondering how to do it, grip.
The storm rolls through me as your mouth opens.
A tempestade
Ao longe, rompe um temporal. Rola para o nosso quarto.
Olhas para a luz de modo a apanhar-te um lado
Da cara, da boca apertada, do olhar sobressaltado.
Viras-te para mim e quando chamo tu vens
Cá e ajoelhas-te ao meu lado, para eu tomar
A tua cabeça entre as mãos como se fora tal
Uma taça delicada que a tormenta pudesse quebrar.
Queres que me ponha entre ti e o trovão brutal.
Ao pousar na tua carne estas mãos grandes tremem,
Latejam em ti e depois, inseguramente, cingem.
O temporal invade-me enquanto a tua boca abre.
HAMILTON, Ian. Cinquenta poemas. Edição bilingue. Tradução de Nuno Vidal. Lisboa: Cotovia, 1995.
1.6.12
George Gordon Byron: de "Childe Harold": trad. Augusto de Campos
114
I have not loved the world, nor the world me, –
But let us part fair foes; I do believe,
Though I have found them not, that there may be
Words which are things, – hopes which will not deceive,
And virtues which are merciful, or weave
Snares for the failing: I would also deem
O'er others’ griefs that some sincerely grieve;
That two, or one, are almost what they seem, –
That goodness is no name, and happiness no dream.
114
O mundo eu não amei, nem ele a mim –
Bons inimigos, vamos sem rancor.
Não as achei, mas creio que há, enfim,
Palavras que são coisas, vi a cor
Da esperança e cheguei mesmo a supor
Virtudes sem perjúrio ou falsidade;
Nos prantos dos demais vislumbro dor
Em dois ou três, e penso, de verdade,
Que o bem pode existir e assim felicidade.
BYRON, George Gordon. "Childe Harold -- Excertos". In: BYRON, George; KEATS, John. "Entreversos". Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Editora UNICAMP, 2009.