4.10.11

Fernando Pessoa: "A criança que fui chora na estrada"

A criança que fui chora na estrada (1933)

I

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei de encontrá lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


II

Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

É uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.


III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.


PESSOA, Fernando. Novas Poesias Inéditas. Seleção, organização e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno. Lisboa: Ática, 1973.

12 comentários:

  1. Cicero,


    Demais! Meu mestre maior! Salve Pessoa!


    Abraços,
    Adriano Nunes

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  2. Lindo demais, Cícero.
    É incrível como além dos poemas mais conhecidos do Pessoa aparecem tantos outros tão bons quanto.
    A frase "Hora a hora nosso diverso e sucessivo alguém desce uma vasta escadaria agora" é divina.
    Abraço,
    JR.
    Parece que o scanner comeu os hífens e desarticulou o segundo soneto.

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  3. Cícero,

    Que lindo!!!

    Aproveito para mandar um poema de outro poeta português que adoro.

    Um abraço,
    Eleonora

    GUERRA CIVIL - MIGUEL TORGA

    É contra mim que luto
    Não tenho outro inimigo.
    O que penso
    O que sinto
    O que digo
    E o que faço
    É que pede castigo
    E desespera a lança no meu braço

    Absurda aliança
    De criança
    E de adulto.
    O que sou é um insulto
    Ao que não sou
    E combato esse vulto
    Que à traição me invadiu e me ocupou

    Infeliz com loucura e sem loucura,
    Peço à vida outra vida, outra aventura,
    Outro incerto destino.
    Não me dou por vencido
    Nem convencido
    E agrido em mim o homem e o menino.

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  4. João Renato,

    obrigado por me alertar. Já corrigi os erros que encontrei.

    Abraço

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  5. Eleonora,

    Obrigado pelo poema do Miguel Torga. É realmente bonito.

    Abraço

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  6. cicero,

    hj na coluna do caligaris, no final do texto, ele cita um agambem bem mais moderno do que sua obra anterior parece nos mostrar:
    "Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
    Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério"."

    Enfim, sempre há tempo... rs

    Abçs.

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  7. Caro Nobile José,

    Quando li o texto do Calligaris, de manhã, pensei exatamente como você sobre o Agamben.

    Abraço

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Caro Cicero,

    brilhante e instigante a palestra que você fez no Museu de Artes e Ofícios em BH, terça passada.

    Você é a beleza em superlativo!

    Abraços.
    Rodrigo Viana

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  10. Obrigado, Rodrigo! Ganhei o dia, com suas palavras.

    Grande abraço

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  11. António Cicero, aqui lhe deixo a musica que fiz com este poema de Pessoa, que consta do meu CD Eterno Regresso. https://youtu.be/h_IVlshJo7Y
    Um abraço

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  12. Parabéns, Rogério Godinho! Ficou bonito.

    Abraço

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