A seguinte matéria, publicada no jornal Correio Brasiliense de 19 do corrente, foi feita a partir de uma entrevista que concedi a Severino Francisco.
Correio Brasiliense, 19/10/2011
Antonio Cicero fala sobre a preguiça que faz criar, hoje, na Caixa Cultural
Oswald de Andrade escreveu: ninguém quis comprar o poeta. Mas, na contramão das relações utilitaristas de mercado, a poesia resiste como uma atividade em que a preguiça se torna fecunda e produtiva. Poesia e preguiça são o tema que o poeta, filósofo e compositor carioca Antonio Cicero aborda hoje, a partir das 19h30, na Caixa Cultural: “Para quem pensa que tempo é dinheiro ou que só o perecível vale a pena, a poesia não tem lugar nenhum”, comenta Antonio Cicero. “Felizmente, nem todo mundo pensa assim.”
De maneira geral, a fruição de um poema exige mais tempo livre do que a de obras de outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura, ou numa escultura, ou na arquitetura de um prédio, para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito, observa Antonio Cicero. Quem lê um poema como se fosse um artigo de jornal, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para desfrutar um poema é necessário dedicar-lhe tempo: tempo livre de preocupações utilitárias, livre de finalidades ulteriores, livre de trabalho, livre, em suma, do princípio do desempenho, que rege quase toda a nossa vida cotidiana. “Para fazer um poema, é necessário ainda mais tempo livre. E nada garante que, ainda que um poeta dedique muito tempo à criação de um poema, esse poema vai ficar pronto. Ora, do ponto de vista de quem se encontra submisso ao princípio do trabalho ou do desempenho, alguém que se entrega desse modo a um tempo livre não está fazendo nada, de modo que é simplesmente preguiçoso.”
Cicero pinçou a expressão “preguiça fecunda” no poema A cabeleira, de Charles Baudelaire. Trata-se de um estado de espírito em que a sensibilidade, a imaginação, o intelecto, a cultura — em suma, as diferentes faculdades do poeta — brincam irresponsavelmente umas com as outras. “Nesse estado, abolem-se temporariamente as dicotomias necessárias para a vida utilitária, como a que separa sujeito de objeto, significado de significante, atividade de passividade, causa de efeito etc.” A internet provocaria uma preguiça infecunda e improdutiva, uma preguiça de ler? “Quanto à internet, creio que tudo depende do uso que dela se faz”, responde.
Os poetas modernos ou pós-modernos não assimilaram também a velocidade e a fugacidade, escrevendo com letras de macarrão ou em guardanapos, sem tempo para a preguiça? Cicero não crê que haja poetas de verdade que não tenham tempo para a preguiça, no sentido que indicou. Um poeta assim seria sem tempo para a poesia: “Quanto a escrever em guardanapos, muitas vezes isso ocorre porque a intuição produtiva ou a inspiração nem sempre vem quando a gente quer; às vezes, ela passa voando, quando a gente menos espera; e então, se o poeta não a capturar em pleno voo, e colocar num guardanapo, corre sério risco de perdê-la. Como diziam os antigos, a Musa é ciumenta”.
Banalização
Poetas modernos da qualidade de Baudelaire e Rimbaud usaram o haxixe e outras drogas com o objetivo de ampliar o campo da percepção. Hoje, as drogas foram massificadas e banalizadas. Mas Cicero lembra que o próprio Baudelaire dizia concordar com o teórico musical Auguste Barbereau, que afirmava que os grandes poetas não necessitavam de drogas, pois eram capazes de atingir um estado poético pelo puro e livre exercício da vontade. “De todo modo, eu faria algumas distinções. Penso que as drogas que criam dependência física, como a heroína, são simplesmente nocivas. Além disso, considero nocivas drogas como a cocaína e seus derivados, pois, independentemente de criarem dependência, tornam seus usuários pessoas extremamente desagradáveis e antipoéticas. Já a maconha e o haxixe, parecem-me ser mais ou menos como o álcool: algumas pessoas se dão bem com elas, outras mal. Quanto a mim, prefiro entrar no estado poético sem ter tomado droga nenhuma.”
Qual o lugar da poesia em que tempo é dinheiro? A apreensão utilitária e instrumental do ser, que é a que praticamos durante a maior parte da nossa vida, é absolutamente necessária, mas não é a única, responde Cicero. “É possível também uma apreensão estética do ser: uma disponibilidade tal às suas manifestações que as distinções utilitárias, instrumentais, estabelecidas pela razão crítica deixam, momentaneamente, de ter a última palavra. O poeta enquanto poeta, isto é, enquanto faz poesia, habita o mundo aberto pela apreensão estética do ser.”
Antônio Cicero não sabe dizer com precisão se houve queda no altíssimo nível poético das letras das canções populares no Brasil, depois de alcançar o ápice nas décadas de 1960 e 1960, pois, ultimamente, tem se dedicado quase exclusivamente à poesia feita pra ser lida, por um lado, e à filosofia, por outro: "E isso, não porque não goste do que se faz hoje em matéria de música, mas porque esses dois outros campos têm exigido quase todo o meu tempo. Mas há alguns artistas novos que admiro muito. Entre esses, faço questão de citar dois cantores e compositores: Leo Cavalcanti e Arthur Nogueira."
Depois da grande geração de poetas modernistas e do ciclo da Poesia marginal, Cicero identifica muitos poetas bons, mas sem necessariamente estar ligados em nenhuma corrente estética: "A geração de que você fala abriu caminho para uma pluralidade de poéticas. Cada poeta — e cada poema — deve ser julgado por si, e não pela sua pertinência a esta ou aquela corrente. A internet permite a muita gente mostrar o seu trabalho, o que é bom. Mas o que é bom é raro: e sempre foi assim."
Cicero descobriu a poesia por meio do ritmo de I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, lido numa antologia escolar. Ao ser solicitado a citar os grandes poemas e os grandes versos que marcaram a sua vida, ele não nomeia nenhum, pois teme ser injusto. Mas, para ele, o maior livro brasileiro de poesia — e um dos maiores do mundo — é Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade. !Seria bom que se ensinasse a ler poesia – não digo para fora apenas, mas, sobretudo, para dentro – nas escolas. Mas, para isso, os próprios professores precisam aprender a ler poesia."
A matéria ficou ótima. Gostei da ideia de ler poesia para dentro. Li para meus alunos, de 13 anos, alguns poemas do Drummond e disse a eles: o que eu mais quero, como professor, é que vocês não tenham medo da poesia. Veja como elas podem fazer parte da nossa vida.
ResponderExcluirum abraço
querido poeta,
ResponderExcluirficou ótima a matéria - esclareceu as minhas dúvidas sobre o tema - e obrigado pela gentil citação a mim.
beijo grande,
arthur
Que beleza de artigo, prá assinar em baixo, e parabéns Caixa Cultural pela iniciativa, tem que repetir e repetir e, o Cícero é um luxo só!
ResponderExcluirCoincidência ou não, tenho me achado muito preguiçosa ultimamente por ficar tanto tempo lendo poesia na internet, daí que conectando meus espelhos encontro esse texto de enorme reflexão.Dois comentários me saltam aos olhos: 1)esse conceito de preguiça de Baudelaire é traduzido hoje como ócio criativo. Outro rótulo,outros contextos, mas me parece que o fundo é o mesmo.
ResponderExcluir2)A internet provocaria uma preguiça infecunda e improdutiva, uma preguiça de ler? poxa, a internet é feita de textos, nunca se leu tanto!
Eu não sei se vc lê comentários Antônio cícero, mas o texto "frui".
Movimento pela Língua do Poeta!
ResponderExcluirQueria que todos os poetas mostrassem a língua!
Um Movimento Universal.
Porque a língua é sua impressão digital.
Milhões de línguas fotografadas em mural
De poetas, poetinhas, poetisas
Que mal falam,
Que "mel" falam,
Que não falam o mal.
Na "língua" do Einstein também tem poesia!
20 de outubro dia do poeta Teresa
Me fez lembrar de Virgílio, n'as Bucólicas, e o famoso diálogo entre Melibeu e Títiro em que este, "ocioso à sombra" compondo "um poema pastoril com a doce flauta", responde a Melibeu que um deus lhe proporcionara essa tranquilidade (“O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit").
ResponderExcluirAcho mesmo que a poesia é, antes de tudo, rastejante.
Cicero,
ResponderExcluirGostei muito da entrevista! Divulguei-a no facebook. Amo Leo e o Arthur!
Abração,
Adriano Nunes.
Cicero,
ResponderExcluiro meu novo soneto:
"A laringe de grafite"
A laringe de grafite
Agora nega o que disse,
Funde-se ao disse-me-disse
Do leitor, mas pouco admite.
Talvez, um estranho eclipse
Surja na página e agite
O poema: dinamite
Pronta pra explodir, per se.
Sínquise, silepse, elipse
( Infinito, consegui-te!)
Como se nada existisse,
Nem rima ou ritmo, nem se-
Mente na margem-sinapse,
Nem mesmo uma laringite!
Abração,
Adriano Nunes
Li a matéria no Correio e fui lá te prestigiar na Caixa Cultural na semana passada. Adorei te ouvir! Interessante essa visão da preguiça como ambiente para a produção poética, essa inutilidade tão "útil" à alma!
ResponderExcluirObrigado, Maíra!
ResponderExcluirFico feliz de você ter gostado.