5.6.11
Antonio Cicero: A poesia como liberdade e experiência do ser
O seguinte artigo, em que apresento o ciclo de conferências Forma e Sentido: Poesia, que terá lugar no espaço do Oi Futuro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e será inaugurado na próxima 3ª feira, com conferência de Tzvetan Todorov, foi publicado ontem, sábado, no suplemento "Prosa e Verso", de O Globo. O leitor encontrará informações detalhadas sobre esse ciclo de conferências no seguinte endereço: http://www.formaesentido.com.br
A poesia como liberdade e experiência do ser
Curador de ciclo de palestras sobre o tema, Antonio Cicero, afirma que inutilidade do poema o torna indispensável
Vivemos numa época que – com a Internet, os computadores, os celulares, os tablets etc. – experimenta o desenvolvimento de uma tecnologia que tem, entre outras coisas, o sentido manifesto de acelerar tanto a comunicação entre as pessoas quanto a aquisição, o processamento e a produção de informação. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo o mundo se queixa de não ter mais tempo para nada. Na verdade, o tempo livre parece ter encolhido muito.
Acontece que, de maneira geral, a fruição de um poema exige mais tempo livre do que a fruição de obras pertencentes a outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo, um ensaio ou um e-mail, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um poema é necessário dedicar-lhe tempo.
O fato é que, numa época em que todos se queixam de falta de tempo, é evidente que sobram argumentos para aqueles que pretendem não haver mais, na nossa época, lugar para a poesia. E não são poucos os que hoje afirmam que a poesia ficou para trás: que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo.
Pois bem, penso o contrário. É exatamente nesta época de aceleração desembestada que a poesia mais se faz desejável. Por que? Porque o que me parece inteiramente indesejável é a aceitação passiva da inevitabilidade do encolhimento do nosso tempo livre.
A verdade é que, se praticamente não temos mais tempo livre, isso ocorre porque praticamente todo o nosso tempo – mesmo aquele que se pretende livre – está preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor – inclusive, evidentemente nos tais joguinhos eletrônicos –, do desempenho. Não estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que parece que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e pessoas.
Nessas circunstâncias, nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como um meio para outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na qual se enquadram as próprias “diversões” que se nos apresentam imediatamente.
Em tal situação, parece-me que uma das poucas ocasiões em que conseguimos romper a cadeia utilitária cotidiana é quando, concedendo a um poema a concentração por ele solicitada, permitimos que ele “esbanje” o nosso tempo. Configura-se então um tempo livre, isto é, um tempo que já não se encontra determinado pelo princípio do desempenho. Afinal, a rigor, o poema não serve para nada. Ou bem a leitura de um poema recompensa a si própria, isto é, vale por si, ou bem ela não vale absolutamente nada.
É nesse tempo livre que nos deleitamos em flanar pelas linhas dos poemas que mereçam uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não-linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. E, para tanto, deixamos que em nosso pensamento interajam e brinquem uns com os outros todos os recursos de que dispomos: razão, intelecto, experiência, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor, memória, cultura, crítica etc. Desse modo, a leitura de poesia proporciona uma apreensão alternativa – e poderosa – do próprio ser.
Em todo caso, foram semelhantes reflexões sobre o sentido da poesia no mundo contemporâneo que me motivaram a conceber uma série de palestras proferidas por alguns dos teóricos e/ou poetas que tenham pensado de modo profundo e original sobre essa questão.
Só somos "ricos", de resto, quando temos direito a coisas "inúteis"!
ResponderExcluirBelo texto, Cícero! É sempre bom relembrar a desimportância da poesia, e como ela não serve para nada! Nisso eu conto com a ajuda do Manoel de Barros, que sempre me desensinou.
ResponderExcluirNão existe algo como a poesia.
O que existe é a atitude poética sobre o mundo.
Uma atitude poética.
Por atitude poética eu digo um olhar enviesado, uma tentativa-de, um constante alerta para o que não importa, uma constante criação de personagem, e dramatização contraditória do mundo.
O que diferencia um texto qualquer, ou qualquer outra obra de arte, de uma poesia é a atitude poética.
Não é preciso escrever para se ter atitude poética.
Porque ela é o próprio viver em estado alterado pela poesia.
No caso, escrever ajuda e faz a manutenção da atitude poética.
Porque nada é o que parece,
porque "as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis..."
e outros desaprendizados que o manoel complica melhor.
Será preciso inventar as coisas
será preciso realmente sê-las
para se ter a atitude poética.
Quando a atitude interna transborda
precisa ser liberta em forma de palavra, imagem, sons, gestos, em suma,
imaginação: imagem em ação.
Quando estou dentro de um trem ou ônibus, ou até carro, percebi que estou no cinema:
imagem em ação pela tela da janela. Imagem em movimento,
e eu parado no mesmo lugar de nunca.
Uma das características da poesia, além do barato que ela dá,
é o movimento parado que ela gera dentro da gente.
Estou descrente na política tal qual ela se afirma no cenário atual do Brasil.
Para mim, a atitude poética,
é a única salvação para dar continuidade e desenvolver
a invenção do nosso país
a partir da invenção da vida.
Tenho certeza de que serão palestras enriquecedoras.
ResponderExcluirO meu melhor tempo é aquele em que mergulho na leitura de poesia.
É como meditação.
Acredito que a poesia pode ser um veículo para o autoconhecimento.
Não posso participar do evento, mas agradeceria se você postasse ao menos um resumo do que foi dito e discutido no ciclo de conferências.
Abraços.
PAZ e LUZ
É lindo ler isso no meu café da manhã. Em meio a uma zanga minha com esse dia a dia utilitário e extremamente funcional, a que nos querem fazer passar a como necessário, ainda há uma resistente tropa de , por que não, Brancaleone, que questiona: utilitário a que?
ResponderExcluirSó vivo e vibro a minha vida com aquele sentimento de completude irresistivelmente maravilhoso, quando "me perco" na inutilidade...
Minha manhã já está mais feliz. Obrigado.
Daniel Marinho
www.clavedeletras.wordpress.com
querido cicero,
ResponderExcluirbelo texto - sentia falta de seus artigos. vou compartilhar.
beijo grande,
Antonio Cícero,
ResponderExcluirComo se dará a transmissão via internet? É preciso fazer algum tipo de inscrição? Será ao vivo?
Aproveito para perguntar se você virá à São Paulo no segundo semestre para dar algum curso.
obrigada,
bia
Cícero,
ResponderExcluirSeria possível você publicar algum material no blog, para nós que moramos em outras cidades ?
JR.
Meus caros,
ResponderExcluirCada conferência estará disponível na Internet a partir do dia seguinte à sua apresentação, no endereço http://www.formaesentido.com.br.
Abraços
Bia,
ResponderExcluirna última semana de julho devo dar um curso na Maria Antonia sobre poesia e letra de canção.
Abraço
Cicero,
ResponderExcluirExcelente artigo! Postei-o no facebook!
Adriano Nunes
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirVim
ResponderExcluirE
a
forma
Lá
está
no sofá
Aqui,
pinga e quentão
patê, limão,
Conversa animada
E o doce fazer nada.
Descobri há pouco seu blog, Cicero, e muito me alegra ler um artigo como esse. A situação atual da poesia é tão marginal que chega a deprimir, o que é irônico, porque mais do que nunca temos acesso à literatura. Assim, acaba sendo sempre importante relembrar e reafirmar a sua posição, como você o fez, especialmente diante de um pensamento dominante burguês-utilitário-tecnólatra. Um abraço.
ResponderExcluirBelo pensamento, Cícero: a imortalidade da poesia resulta da sua inutilidade, a qual se torna cada vez mais evidente no mundo de hoje que realmente não tem tempo para nada e, diria também, fica mais e mais indiferente em relação às coisas boas. Basicamente é o mesmo que acontece com a comida: um bom almoço de três pratos se vê substituído (tanto na mesa como no imaginário das pessoas) por diversos tipos de fast-food. A poesia não foi feita para ser consumida em larga escala, aí é que transparece seu lado supostamente inútil... Sucesso em suas palestras!
ResponderExcluirCaríssimo,
ResponderExcluirImagino ser esse o modo ideal de ler um poema - a leitura que o poema nos pede.
Temo, no entanto, que a produção e o usufruto do poema tenham sido contaminados pela lógica do desempenho também.
Talvez aconteça quando o poema torna-se um elemento de distinção social, um sinal público de refinamento, um operador de diferenciação cultural.
Fiquei muito feliz em saber que você será o curador do ciclo de conferências "Forma e Sentido: Poesia". Sucesso!
Abraços,
Héber Sales.
A Poesia é, acontece... um abraço e gracias por toda poesia e atitude poética, tão bem dita, por Taiyo, aqui desfrutada e refletida.
ResponderExcluirBeijos.
Carmen.
Obrigada.
ResponderExcluirExcelente, Cicero.
ResponderExcluirUm abraço!
Concordo inteiramente com cada palavra de seu texto. Cada vez mais teremos necessidade de nos acercar do universo literário que é o que nos mostra nossa humanidade e falibilidade. Humildemente, apenas acrescentaria a ficção à poesia. Um bom conto ou romance requer de nós paciência e tempo, desprendimento e prazer.
ResponderExcluirObrigada pelas palavras.
Abraços,
Fúlvia