Louvor do Bairro dos Olivais
Não tive nunca nada a ver com as
guitarras estudantes; eu vivia
num lento bairro da periferia
onde a chuva apagava os passos das
pessoas de regresso a suas casas
fazia compras na mercearia
e algum livro mais forte que então lia
já era para mim como um par d'asas
amigos vinham ver-me que eu servia
de ponche ou Madeira malvasia
para soltar as línguas livremente
um que bramava um outro que dormia
eu abria a janela e só dizia
ao menos estas ruas têm gente
PACHECO, Fernando Assis.
A Musa irregular. Lisboa: ASA, 1996.
Cícero,
ResponderExcluirpoema extraordinário! me impressionam essas oscilações, "indefinições" rítmicas notáveis nos cortes "equívocos" dos versos nas átonas (segundo alguns mais tradicionais, sem aspas e "grave defeito"). vou procurar conhecer esse poeta - acho que é a primeira vez que o leio, já o conhecia de nome.
belíssima postagem, abraço
Malvasia
ResponderExcluirCerto dia
Colhia
Uvas brancas
Uvas doces
De malvasia
Na parreira do quintal
Que meu avô plantava
No quintal da sua casa
E tanto tempo se foi desde então
Mas tão perto ainda é do coração.
SONETO AOS FILHOS
ResponderExcluirToda a epopeia da família cabe aqui
um avô galego chegado a Portugal rapazinho
outro de ao pé de Aveiro que se meteu
num barco para S. Tomé a fazer cacau
de filhos seus nasci
com este pouco de inútil fantasia
nutrida em solidões nas que me vejo
nu como um bacorinho na pocilga
e como ele indefeso e porém quis
mesmo assim ser mais que o animal
no tutano dos ossos pressentido
não peço nada usai o meu nome
se vos praz lembrai-me
o que for costume
mas livrai-vos do luxo e da soberba
Fernando Assis Pacheco
A musa irregular, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006
RESPIRAÇÃO ASSISTIDA
Eu vi a morte
de noite - névoa branca -
entre os frascos do soro
rondar a minha cama
era um trasgo
e como tal metera-se
pelas frinchas; noutra versão
coando-se através
dos nós da madeira
ou noutra ainda
imitando à perfeição
o gorgolejar da água
nos ralos: eu tremia
covardemente enquanto
ela raspava a parede
com unhas muito lentas
eu vi? ouvi a morte?
com toda a probabilidade
e por instantes era ela - luz negra -
tentando cegar-me
Pardilhó, 7/9-VII1-94
Lisboa, 27-XI-95
Respiração assistida, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003