5.12.10

Drauzio Varella: "Violência contra homossexuais"

O seguinte artigo de Drauzio Varella foi publicado na sua coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 4 de dezembro. Republico-o por considerá-lo um dos textos mais lúcidos e inteligentes que já li sobre o assunto.


Violência contra homossexuais

A HOMOSSEXUALIDADE é uma ilha cercada de ignorância por todos os lados. Nesse sentido, não existe aspecto do comportamento humano que se lhe compare.

Não há descrição de civilização alguma, de qualquer época, que não faça referência a mulheres e a homens homossexuais. Apesar de tal constatação, esse comportamento ainda é chamado de antinatural.

Os que assim o julgam partem do princípio de que a natureza (leia-se Deus) criou os órgãos sexuais para a procriação; portanto, qualquer relacionamento que não envolva pênis e vagina vai contra ela (ou Ele).

Se partirmos de princípio tão frágil, como justificar a prática de sexo anal entre heterossexuais? E o sexo oral? E o beijo na boca? Deus não teria criado a boca para comer e a língua para articular palavras?

Se a homossexualidade fosse apenas uma perversão humana, não seria encontrada em outros animais. Desde o início do século 20, no entanto, ela tem sido descrita em grande variedade de invertebrados e em vertebrados, como répteis, pássaros e mamíferos.

Em alguma fase da vida de virtualmente todas as espécies de pássaros, ocorrem interações homossexuais que, pelo menos entre os machos, ocasionalmente terminam em orgasmo e ejaculação.

Comportamento homossexual foi documentado em fêmeas e machos de ao menos 71 espécies de mamíferos, incluindo ratos, camundongos, hamsters, cobaias, coelhos, porcos-espinhos, cães, gatos, cabritos, gado, porcos, antílopes, carneiros, macacos e até leões, os reis da selva.

A homossexualidade entre primatas não humanos está fartamente documentada na literatura científica. Já em 1914, Hamilton publicou no "Journal of Animal Behaviour" um estudo sobre as tendências sexuais em macacos e babuínos, no qual descreveu intercursos com contato vaginal entre as fêmeas e penetração anal entre os machos dessas espécies. Em 1917, Kempf relatou observações semelhantes.

Masturbação mútua e penetração anal estão no repertório sexual de todos os primatas já estudados, inclusive bonobos e chimpanzés, nossos parentes mais próximos.

Considerar contra a natureza as práticas homossexuais da espécie humana é ignorar todo o conhecimento adquirido pelos etologistas em mais de um século de pesquisas.

Os que se sentem pessoalmente ofendidos pela existência de homossexuais talvez imaginem que eles escolheram pertencer a essa minoria por mero capricho. Quer dizer, num belo dia, pensaram: eu poderia ser heterossexual, mas, como sou sem-vergonha, prefiro me relacionar com pessoas do mesmo sexo.

Não sejamos ridículos; quem escolheria a homossexualidade se pudesse ser como a maioria dominante? Se a vida já é dura para os heterossexuais, imagine para os outros.

A sexualidade não admite opções, simplesmente se impõe. Podemos controlar nosso comportamento; o desejo, jamais. O desejo brota da alma humana, indomável como a água que despenca da cachoeira.

Mais antiga do que a roda, a homossexualidade é tão legítima e inevitável quanto a heterossexualidade. Reprimi-la é ato de violência que deve ser punido de forma exemplar, como alguns países o fazem com o racismo.

Os que se sentem ultrajados pela presença de homossexuais que procurem no âmago das próprias inclinações sexuais as razões para justificar o ultraje. Ao contrário dos conturbados e inseguros, mulheres e homens em paz com a sexualidade pessoal aceitam a alheia com respeito e naturalidade.

Negar a pessoas do mesmo sexo permissão para viverem em uniões estáveis com os mesmos direitos das uniões heterossexuais é uma imposição abusiva que vai contra os princípios mais elementares de justiça social.

Os pastores de almas que se opõem ao casamento entre homossexuais têm o direito de recomendar a seus rebanhos que não o façam, mas não podem ser nazistas a ponto de pretender impor sua vontade aos mais esclarecidos.

Afinal, caro leitor, a menos que suas noites sejam atormentadas por fantasias sexuais inconfessáveis, que diferença faz se a colega de escritório é apaixonada por uma mulher? Se o vizinho dorme com outro homem? Se, ao morrer, o apartamento dele será herdado por um sobrinho ou pelo companheiro com quem viveu por 30 anos?

15 comentários:

  1. Pelo amor!
    Que texto!
    Obrigado por compartilhar conosco.

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  2. Muito bom!! Aquele seu texto que distingue ‘prescrição’ de ‘descrição’, acho-o também bastante esclarecedor no tocante à tão comum confusão entre o que diz respeito à moralidade e à natureza. A falta de clareza entre ambos os domínios está na origem dos fascismos.
    Um abraço,
    Bruno Holmes Chads
    espelhosemimagem.blogspot.com

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  3. Tive uma discussão uma vez com um sujeito que me veio com essa conversa de "comportamento anti-natural" e portanto "nocivo". Eu disse a ele que o ser humano é um animal eminentemente cultural. Se fóssemos agir apenas "naturalmente" nem sequer escovaríamos os dentes, muito menos usaríamos antibióticos ou mesmo sapatos. Quase todos os nossos atos são um tipo negação de um destino sombrio que a natureza nos reservaría, não fóssemos dotados de razão e, portanto, de arbítrio. Melhor ainda, a natureza, nesse contexto, não passa de uma especulação oportunista, um espelho dos preconceitos mais pobres que temos.

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  4. Cicero,


    Texto maravilhoso. Grato por compartilhar! Aproveitei e divulguei-o no facebook!


    Abraço fraterno,
    Adriano Nunes.

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  5. Cicero, com permissão, coloquei o endereço deste link no Facebbok, pois acho muito importante que um maior nº de pessoas tenham acesso a ele. Bjs.

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  6. que texto incrível! maravilha!
    "podemos controlar nosso comportamento; o desejo, jamais." é por isso que se cria uma massa de enrustidos que agridem no outro o que sonham extirpar de si.
    a sexualidade humana é a área de nossas vidas mais sujeita a mistificações,preconceitos, obscurantismos,
    intolerâncias e (auto)enganos...
    ela é capaz de "travar" mesmo as pessoas mais inteligentes e cordatas. a visão média sobre as diferenças sexuais ainda precisa viver seu "enlightenment". muitas pessoas continuam a julgar os outros baseados em dogmas caducos e, ao fim e ao cabo, no medo (ou terror) de si mesmas.

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  7. ontem atacaram novamente jovens na Paulista.

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  8. Pra mim (e espero que pra muita gente) este texto é pura chuva no molhado.
    Mas é sempre válido repassar algo assim, pq sempre tem alguém (muitos alguéns, infelizmente) para quem é preciso dizer “olha só, burrinho, as coisas são assim, assim e assim. Entendeu, ou quer que o tio desenhe também?”.
    E um didatismo bem escrito e vindo de uma pessoa competente e respeitada é sempre um bem-vindo reforço.
    (tb publiquei este link no Facebook)

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  9. antonio, havia lido o texto...
    convida-nos para pensar... avançar e não ficar paralisad0s em atrasos.
    abração!
    medina.

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  10. Qualquer tese que pretendesse adequar o homem à "natureza" deveria ser vista com enorme desconfiança. Pois se há alguma coisa que separa o homem dos outros animais é exatamente a sua insubmissão a forças instintivas ou "naturais". Ofereça carne a uma vaca e você não conseguirá despertar no bicho interesse algum, pois a apetência carnívora definitivamente não se encontra no programa comportamental que condiciona as ações da vaca. Uma certeza desse tipo é praticamente impossível com o ser humano, na medida em que ele é potencialmente aberto em termos comportamentais. O ser humano é sempre um feixe de possibilidades perante qualquer estímulo, sendo que suas reações podem apenas ser prováveis, nunca totalmente seguras.
    Mas o artigo de Drauzio Varella é ótimo porque aborda a questão numa perspectiva ainda mais radical: o que é afinal essa "natureza" de que tanto se fala? Um dos aspectos positivos da ciência é justamente o de relativizar esse termo que, em conversas dogmáticas, refere-se a uma espécie de conjunto imutável e fechado, geralmente compreendido apenas no âmbito daquilo que os nossos sentidos conseguem captar. Ao mostrar, como nesse caso, que a "natureza" é muito mais variada e aberta do que o senso comum entende, a ciência ajuda a nos libertar da opressão dogmática que se ampara num argumento supostamente inquestionável e indiscutível.
    Grande texto.
    Flavio.

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  11. Maravilhoso, Antônio!
    Mto obg por compartilhar o texto conosco!
    É muito elucidativo, como vc bem disse, mas tb emocionate!
    Sem dúvida vou preparar aulas com ele!
    Obg!!

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  12. Muito a propósito, está na hora de lembrar “Cidadão-cidadã”, de Jorge Mautner (e Jacobina), numa maravilhosa gravação com Caetano no começo da década de 1980:


    Acho que todo cidadão
    Ou cidadã
    Deve ter possibilidades de felicidades
    Do tamanho de um super Maracanã
    E deve e pode ser azul, negro ou cinza
    Sorridente ou ranzinza
    Verde, amarelo e da cor vermelha
    Deve-se somente ser e não temer viver
    Com o que der e vier na nossa telha
    Vivamos em paz
    Porque tanto faz
    Gostar de coelho
    Ou de coelha...

    Engraçado que às vezes parece que as discussões do mundo estão chegando aonde Mautner já estava esperando por elas há tanto tempo...

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  13. Que não nos acomodemos ao pensar que as manifestações de intolerância, contra os gays especialmente, cessaram ou tornaram-se amenas, indolores, suportáveis... Dia após outro, apesar das sutilezas e camuflagem de que normalmente se revestem, esses atos, por vezes, assumem proporções gravíssimas, como o lamentável caso da Paulista, ocorrido há pouco. É preciso sim combater esse tipo de ação que ocorre de maneira impune e indiscriminada em muitos lugares do mundo, infelizmente. Muito me sensibilizou a atitude do autor do texto, ao se expor e "defender" uma causa que talvez não seja sua, pensando isoladamente - como muito militaram por causas alheias -, mas que, em tese, deveria ser de todos nós.

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  14. BRAVO!!! BRAVO!! MARAVILHOSOOOOOO AMEI. PARABÉNS

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