19.7.10

Francis Ponge: "Le pain" / "O pão": trad. de Manuel Gusmão





O Pão

A superfície do pão é maravilhosa primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheira dos Andes.
Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzida para nós no forno estelar, onde, endurecendo, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas... E todos esses planos desde então tão nitidamente articulados, essas lajes finas em que a luz aplicadamente deita os seus lumes, - sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.
Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou flores são aí como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos ao mesmo tempo. Logo que o pão endurece essas flores murcham murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.
Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser a nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.



Le pain

La surface du pain est merveilleuse d'abord à cause de cette impression quasi panoramique qu'elle donne : comme si l'on avait à disposition sous la main les Alpes, le Taurus ou la Cordillère des Andes.
Ainsi donc une masse amorphe en train d'éructer fut glissée pour nous dans le four stellaire, où durcissant elle s'est façonnée en vallées, crêtes, ondulations, crevasses... Et tous ces plans dès lors si nettement articulés, ces dalles minces où la lumière avec application couche ses feux, sans un regard pour la mollesse ignoble sous-jacente.
Ce lâche et froid sous-sol que l'on nomme la mie a son tissu pareil à celui des éponges : feuilles ou fleurs y sont comme des sœurs siamoises soudées par tous les coudes à la fois.
Lorsque le pain rassit ces fleurs fanent et se rétrécissent : elles se détachent alors les unes des autres, et la masse en devient friable...
Mais brisons-la : car le pain doit être dans notre bouche moins objet de respect que de consommation.



PONGE, Francis. Alguns poemas. Seleção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Lisboa: Cotovia, 1996.

19 comentários:

  1. Absolutamente lindo !!!!
    Que percepção !!!
    Que beleza !!!
    Que imagens !!!
    Dá vontade de comer!!!!


    JORGE SALOMÃO RIO 2010

    ResponderExcluir
  2. bien...en français la sonorité est jolie, mais le sens est un peu lourd, quasi indigeste ( ce n'est pas un jeu de mot avec le pain)
    c'est marrant de voir un "non français" choisir ce poème, pas terrible
    pardon, seu cicero ! c'est rare que je ne sois pas d'accord avec vous

    ResponderExcluir
  3. J'suis désolé!

    Moi, j'aime Ponge.

    Ne disparaissez pas!

    ResponderExcluir
  4. Cicero,


    que c'est beau poème! Belle traduction! Je aime Ponge aussi!


    Affectueusement,
    A. Nunes.

    ResponderExcluir
  5. Sempre que leio Ponge tenho a impressão que ele assim descreve como que para persuadir-se da existência real do objeto. Não seria demais achar que Ponge quer crer no milagre/complexidade dos detalhes que formam esses objetos, por isso desfibra-os...

    abraços.

    http://cartassideradas.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  6. desculpe pela arrogancia de dizer que ponge "n'est pas terrible"; teria sido mais elegante dizer que nunca gostei muito, que acho seu estilo pesado,chato( chato nao,fica ainda mais arrogante!)


    releio "l'appareil du téléphone", devagar, com atençao, procurando a genialidade que muitos aplaudem !
    mas de novo me entedio...e a comparaçao entre homard e telefone me desagrada...devo ser alguma espécie de idiota impermeavel pra nao curtir esse poema...

    so gosto da ultima frase :
    "Mais ici finit le prodige et commence une banale comédie."

    uma frase é pouco demais pra gostar !

    :-))

    ResponderExcluir
  7. Sou apaixonado pelo poema "De l'eau", do livro "Le parti pris des choses".

    Só não o ponho aqui porque não achei tradução para o português e não tenho tempo de traduzi-lo eu mesmo.

    ResponderExcluir
  8. Nossa, eu amei.Vc, com suas escolhas, enche de beleza meu dia.
    Obrigada
    Angela

    ResponderExcluir
  9. ah, je ne vais pas vous mentir et faire semblant de connaitre "de l'eau" par coeur, d'ailleurs je l'avais complètement oublié ...j'ai du aller chercher dans la pleïade...comme vous avez dit "sou apaixonado" !

    é verdade seu cicero que "le parti pris des choses" é lindo e surpreendente ! vou reler...talvez reconsidere le pain...

    adoro poesia sem motivo
    é mais forte que eu
    mas ninguém na minha entourage
    liga

    ResponderExcluir
  10. Cicero,


    Um poema recente:


    "Inércia" - Para meu amigo Mariano.


    dessa vez não foram os meus olhos
    dessa vez não foram meus ouvidos
    dessa vez não foram as narinas
    dessa vez não... sequer minha boca
    dessa vez não foram as paredes
    com certeza, miragem não foi
    com certeza, quimera não era
    com certeza, quem dera ser mágica
    o que tanto à frente nos espera

    dessa vez não foram os momentos
    dessa vez não foram as vontades
    dessa vez não foram as loucuras
    dessa vez não foram os meus sonhos
    dessa vez não foram minhas falas
    dessa vez não... nunca dessa vez!
    com certeza, uma ilusão não era
    com certeza, armadilha não era
    não era nada... vingava o vácuo

    dessa vez não foram as palavras
    dessa vez não foram os silêncios
    dessa vez não... não o papel e o lápis!
    dessa vez não foram os rascunhos
    dessa vez não foram os pecados
    dessa vez nem língua nem vernáculo
    dessa vez nem mesmo toda a anáfora
    com certeza, a métrica não! era
    a vida do vate, a vez do verso.



    Abraço forte,
    A. Nunes

    ResponderExcluir
  11. Cicero,


    Um poema concreto-visual:


    "Assombro" - PARA PÉRICLES CAVALCANTI


    )))- assombro -(((
    des assombro - o
    (((- escombro -)))

    o ver-
    so o ver-
    ter o ver
    o ver

    )))- assombro -(((
    des assombro - o
    (((- assombro - )))

    ())))))))me(((((((()

    !!!!!!SÓ SOMBRA!!!!!

    ResponderExcluir
  12. Impressiona o ângulo, ou melhor, os ângulos trabalhados neste poema de Ponge!
    Excelente!
    Abraços
    Jefferson.

    ResponderExcluir
  13. Pelo contrário
    Nunca pensei em
    Entrar na sua vida
    Só que um dia
    Em que as flores se situam
    Em outro lugar
    E as estrelas se espelhando
    Em seu olhar
    as lembranças nadando
    Sem fome
    Ou vontade de fugir
    Gozo eterno
    desse amor
    Porvir
    Lá você podia até me ver
    na noite cheia de deserto
    perto, longe
    em meio aos
    condutores do destino
    nesse rosto de menino.

    ResponderExcluir
  14. Cicero,


    Gostei muito do poema, imagens intrigantes! Valeu!

    Meu novo poema. Tenho escrito muito pouco ultimamente!


    "À porta"

    Abre-se a fresta: a rua
    É vista vertical-
    Mente. Resto da cal
    Extinta, tela crua,
    Na parede do verso,
    Eixo móvel perverso

    De madeira, de ferro,
    De trava, tranca, trinco,
    De cobre, chumbo, zinco,
    Onde os sonhos encerro,
    Onde o vão se mistura
    À foz da fechadura.

    Assim tudo se entrega
    À sorte. Ninguém fica
    Fora nem dentro. À risca,
    A nitidez é cega.
    Pra que serve tal porta
    Se nada me conforta?

    Abraços,
    Mateus.

    ResponderExcluir
  15. talvez a tradução do poema "De l'eau" seja muito extensa para este espaço, mas deixo-a para que me digas o que achou.
    é uma primeira versão.
    algumas escolhas foram difíceis... Mas enfim, não é esse o prazer da tradução?

    meu e-mail: fredgirauta@gmail.com

    abraço!

    Abaixo de mim, sempre abaixo de mim se encontra a água. É com os olhos baixos que sempre a vejo. Como o solo, como uma parte do solo, como uma mudança do solo. Ela é branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vício: o peso; dispõe de meios excepcionais para satisfazer seu vício: contornando, traspassando, erodindo, filtrando.

    Dentro dela o vício também dança: tropeça sem cessar, a cada instante renuncia a toda forma, só tende a humilhar-se, encosta o ventre ao chão, quase um cadáver, como os monges de certas ordens. Sempre abaixo: tal parece seu lema: o contrário do cume.

    Poderíamos quase dizer que é louca a água, por esta histérica necessidade, que a possui como ideia fixa, de não obedecer mais que o próprio peso.

    Certamente, todos sabem dessa necessidade, que sempre e em todo lugar deve ser satisfeita. Este armário, por exemplo, teimoso em seu desejo de aderir ao solo, se um dia encontrar-se em equilíbrio instável, preferirá o abismo à contradição. Mas enfim, em certa medida, ela brinca com o peso, o desafia: não tropeça em suas peças todas, seus moldes e molduras não se cumprem. Há nela uma resistência em prol de sua personalidade e forma.

    Líquido é por definição o que prefere obedecer ao peso, mais do que manter a forma, o que rechaça toda forma para obedecer ao seu pesar. E, por causa dessa ideia fixa, de seu mórbido escrúpulo, perde toda compostura. Deste vício, o que o torna rápido, precipitado ou estancado; amorfo ou feroz, amorfo e feroz, feroz perfurante, por exemplo; astuto, filtrante, circundante; tanto que fazemos dele o que quisermos, e conduzir a água pelos tubos, para fazê-la jorrar verticalmente a fim de gozar enfim do seu modo de se abismar em chuva: uma verdadeira escrava.

    Entretanto, o sol e a lua têm ciúme dessa influência exclusiva, e tentam exercer seu poder sobre ela quando se oferece em grandes extensões, sobretudo em estado de mínima resistência, dispersa em finas poças. O sol, então, lhe cobra alto tributo. Ele a força a um ciclismo perpétuo, e a trata como um esquilo em sua roda.

    A agua me escapa, me escorre entre os dedos. E, ainda mais! Nem sequer é claro se (um lagarto ou um sapo): ainda me restam traços nas mãos, manchas relativamente lentas para secar ou limpar. Ela me escapa e contudo me faz falta, sem que eu possa fazer nada.

    ideológicamente dá no mesmo: ela me escapa, escapa a toda definição, mas deixa rastros de manchas informes em meu espírito e sobre o papel.

    Inquietude de água: sensível ao mínimo declive. Pula as escadas com dois pés ao mesmo tempo. Brincalhona, de obediencia pueril, vai e volta quando a inclinação pendula ao lado.

    ResponderExcluir
  16. GASOLINA é das mais belas palavras em língua portuguesa. há coisas que são mais belas na língua. gasolina é mais bela que lira ou lírio. mais bela que margarida – e ainda mais recendente: como um cio de catástrofes.
    houvesse certas mulheres que virassem um frasco de gasolina no dedo e espalhassem a gotícula – uma gota apenas do orvalho apocalíptico – atrás da orelha.
    só a poesia é capaz de jardinar gasolinas, (ao fim) reduzi-las a um pote de mel ou açúcar. um galão de gasolina é um vaso de flores. perigosa espécie, que atavia com fogo os cabelos e bem pode envenenar o mundo. monstros em flor (flamulando) no olfato da palavra.

    ResponderExcluir
  17. Que ótimo, Fred! Acabo de chegar de viagem, e fiz apenas uma primeira leitura, mas já gostei muito. Depois lhe direi mais.

    Abraço grande

    ResponderExcluir
  18. não há como
    não comer
    e não amar
    o pão

    ResponderExcluir
  19. Surpreendente utilização dos termos da geologia para descrever o pão.

    ResponderExcluir