O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 20 de março. A versão aqui postada é mais longa do que a impressa que, por limitações de espaço, teve que ser um pouco abreviada.
A antifilosofia
O ROMANCISTA espanhol Javier Cercas, comentando que o pior vício que um filósofo pode ter é se esforçar para ser interessante, observava que "dizer que os homens buscam a felicidade é enfadonho e pouco original, porque os filósofos o dizem pelo menos desde Aristóteles, mas tem a vantagem de ser certo; reivindicar a infelicidade, a doença e a velhice, como faz agora o filósofo alemão Boris Groys, tencionando discordar do discurso dominante da apoteose juvenil, é sem dúvida original, mas tem a desvantagem de ser uma bobagem".
Lembrei-me disso ao ler um livro de Groys recentemente publicado na Alemanha, cujo título em português seria "Introdução à antifilosofia". A observação de Cercas se refere a outra obra desse autor, mas a busca da originalidade a qualquer preço também se encontra no livro mais recente.
Groys fala das "verdades" como produtos oferecidos no mercado. Na Grécia antiga, segundo ele, os sofistas produziam verdades para o mercado. Ao contrário deles, Sócrates se definia como filósofo, isto é, como aquele que ama a verdade, mas não a possui ou produz, ou como aquele que está disposto a adquirir verdades, desde que se convença de que o que lhe oferecem como verdade é o produto autêntico, e não uma falsificação. Assim, a diferença entre o sofista e o filósofo é que este é o consumidor crítico, enquanto aquele é o produtor de verdades.
Contudo, para Groys, o simples fato de descobrir que uma verdade funciona como mercadoria – a descoberta dos interesses econômicos por trás da formulação e da divulgação de uma doutrina – já bastaria para que Sócrates a recusasse. "De Sócrates, através de Marx, até a teoria crítica frankfurtiana", afirma Groys, "pensa-se que a verdade, quando se dá como mercadoria, não é verdade". Isso significa, segundo ele, que não há verdade, pois na economia mercantil nenhuma verdade escapa à condição de mercadoria. A própria filosofia, inclusive a de Sócrates, justamente na medida em que é consumidora crítica de verdades, também faz das verdades mercadorias.
Groys diz que é a partir da compreensão desse fato que surge a antifilosofia. Esta não funciona através da crítica, mas da ordem ou comando. Ordena-se, por exemplo, a transformar o mundo, em vez de explicá-lo (Marx); ou a proibir todas as questões filosóficas e calar sobre o que não pode ser dito (Wittgenstein); ou a transformar o próprio corpo num corpo sem órgãos e pensar de modo rizomático, e não lógico (Deleuze); etc. A verdade - não mais mercantil - somente se revela quando a ordem é obedecida. Primeiro vem o salto à fé; depois se manifesta a verdade da religião. Quem se recusa a obedecer permanece para sempre no escuro e não pode sequer criticar a ordem, pois não a compreende propriamente. A decisão primeira é vital, não filosófica. Creio, de fato, reconhecer esse tipo de irracionalismo decisionista em antifilósofos contemporâneos como Alain Badiou e Slavoj Zizek, que sincretizam Paulo de Tarso e Lenin, Robespierre e Mao Tse-tung.
A mesma recusa do pensamento crítico opera hoje, segundo Groys, não somente nas religiões e ideologias políticas, mas em livros que receitam pensamentos positivos, estratégias de mercado, indicações sobre o combate contra o império americano com a ajuda das "multidões" (Hardt e Negri), comportamentos adequados para os ativistas da esquerda ou da direita etc. Em última análise, as ordens da antifilosofia são conselhos de autoajuda.
Se a antifilosofia é como Groys a descreve, então devemos dizer que ela se baseia numa falácia (coisa que pouco lhe importa, já que ela despreza a crítica, a razão e a lógica). É que, assim como o fato de que todo pato seja animal não significa que todo animal seja pato, o fato de que toda avaliação de mercadorias seja uma espécie de pensamento crítico não significa que todo pensamento crítico seja uma espécie de avaliação de mercadorias; e o fato de que as mercadorias possam ser objetos da crítica não significa que todos os objetos da crítica sejam mercadorias.
Além disso, por que aceitar, sem mais, que as verdades sejam “produzidas” e não descobertas? E que sejam “produzidas” pelos sofistas e “consumidas” pelos filósofos? De onde Groys tira que os filósofos não descobrem ou pretendem descobrir verdades, de modo que se reduzem a meros “consumidores” de verdades “produzidas” por outros? Ou ainda que não sejam críticos os pensamentos dos “antifilósofos” que cita, ou de que eles não tentem provar as suas teses?
Ao escrever o livro em questão, Groys não se considerou antifilósofo, mas fenomenólogo. Ele pretende estar simplesmente a descrever, sem julgar, o que se passa. Mas talvez o modo mais generoso de entender suas teses seja tomá-las como, no fundo, irônicas em relação ao que chama de antifilosofia. Afinal, segundo ele, seus antifilósofos teriam rejeitado a filosofia porque pensavam ter descoberto seu caráter de mercadoria. Mas quem ignora que, entre os livros vendáveis – logo, que se realizam como mercadorias –, os de autoajuda superam, de longe, os de filosofia?
De modo menos generoso, mas mais sincero, diríamos que Groys é simplesmente cínico (no sentido moderno e vulgar dessa palavra). Ele não prova nada do que diz e, como observou Cercas, parece preocupado apenas com a originalidade de suas ideias. Para que? Evidentemente, para melhor “vendê-las”.
A ausência de Elis Regina inspirou, na bela tarde ensolarada de ontem, uma grande festa no Butantã, bairro de São Paulo, com música, dança, poesia e pintura. Foi na praça que leva o seu nome, e que está com seus dias contados (vão fazer nesse lugar um viaduto para ligar o Estádio do Morumbi à Marginal, medida tomada por causa da copa do mundo, precisamos do Gabeira aqui, abraçando a Elis Regina). Bem, sendo pertinho da USP, a Elis Regina tem em seus arredores jovens estudantes cabeludos, com seus filhos, também cabeludos, e livros, cachorro, bicicleta, violão... Fui apresentado como “professor”, e Carolina, menina de uns cinco anos, decidiu brincar comigo: corremos, desenhamos, poetamos, imitamos o cara que imitava Secos e Molhados, dançamos, bebemos de canudinho, não faltou nada. É assim que vejo a filosofia, uma brincadeira de esconde, uma presença alegre no dia de uma ausência triste (Heráclito: o poder real é de uma criança). Agora, esses antifilósofos, ninguém deseja brincar com eles, melhor eles terem um carro bacana para atravessar o viaduto.
ResponderExcluirE viva Paulo Celho!
ResponderExcluirAntonio Cícero, peço sua autorização para postar um comentário sobre um show que assisti no dia 20 de março, portanto no último sábado, no Sesc Pinheiros.Trata-se de "Uirapuru Latino Americano, homenagem a Mercedes Sosa". Artistas maravilhosos como Cida Moreira, Mônica Salmaso,Marcia Castro e outros cantaram homenageando Mercedes de forma sublime, grandiosa onde todos saímos em "estado de graça". Homenagem merecida não só pela beleza e força de sua voz, mas por todos os valores agregados em sua trajetória de vida.
ResponderExcluirMercedes,monstro sagrado,pássaro tão encantado quanto o Uirapuru.
Bravo, Cicero.
ResponderExcluirObrigado e grande abraço!
Cícero,
ResponderExcluirTem a ordem e tem a crítica, que inclui, entretanto, o sapere aude! Kant era panfletário! Ninguém pode ser impedido de fazer com que as suas idéias interessem, pois esta é uma postura anti-iluminista, no meu entendimento.
Não vejo como a transformação do mundo, o silêncio sobre o que não pode ser dito e a busca da compreensão de uma lógica do corpo possam ser consideradas atitudes antifilosóficas. Esses são também alguns problemas poskantianos.
Viva Paulo Coelho, mas abaixo o autoprejuízo antifilosófico do Groys.
Um abraço,
Insígnias iníquas injúrias
ResponderExcluirGrande perda para o sexo
quando inexiste o amor, e
simultaneamente, perda maior
para o amor, quando inexiste sexo
Ambos, desacordados, que se lixem
que se acabem e se vendam
para marionetes, cuja almas
sequer sabem o que procuram
Meu ódio, ontológico, não principia
no varejo, onde a inveja, girândola
grassa feito moscas do doce à merda
Minha inveja, absoluta, resoluta, luta
no atacado, onde o ódio, graceja, ora
sutil, ora ácido, mistura merda ao doce
Olá, Cícero
Não sou "letrado", tenho só o terceiro colegial.
Esforço-me para estar e ir um pouco além dos nomes dos mais conhecidos filósofos; Kant, Marx, Sócrates...
Então, perdoe-me, se acaso, algo absurdo comunicou pelo poema.
Depois deste seu post, consegui aquela tal sensação, quase rotina, do poema(?); uma tentativa de entender divertida questão, entre meu espaço e meu tempo, dessa coisa filosofia e, mais esta agora, da antifilosofia.
Cicero, o "eu" da apócrise compreende tanto o ser consciente quanto o inconsciente? Poderia afirmar, filosoficamente, ser ele um sujeito?
ResponderExcluirÉ que estou lendo um ensaio de Baudieu sobre antifilosofia, sujeito e linguagem, no qual ele diz ser fiel a Lacan sobre o conceito de sujeito, mas parecem que eles estão falando de uma outra coisa, ou de uma "coisa Outra". Magic?
http://www.escolaletrafreudiana.com.br/wp-content/uploads/publicacoes/51/Psicanalise_Filosofia_22-8199.PDF
Sei q vc é mto ocupado, então, se não der pra responder, entenderei.
Um abraço.
Caro Nobile José,
ResponderExcluirdesculpe-me a demora da resposta. É que estou preparando, para a próxima quarta-feira, uma palestra sobre Rilke, e praticamente não tenho cabeça para outra coisa.
Mas veja: o “eu” da apócrise, quando bem considerado, não tem substantividade alguma. Por isso, ele não pode ser sujeito. Veja bem: durante o processo da dúvida apocrítica, toda substantividade foi negada a “ele”. “Ele” não tem corpo, nem espírito, nem passado, nem conteúdo algum, consciente ou inconsciente. Trata-se da pura ação de duvidar, criticar, distinguir. A rigor, “ele” não passa, ao menos epistemologicamente, da própria razão crítica. “Crítica”, isto é, que duvida, separa, distingue. Em oposição a qualquer positividade, trata-se do que chamo de “negação negante”.
Abraço
Mto obrigado!
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