8.1.10

Nelson Ascher: "Um ótimo poema repulsivo"




No seguinte artigo, publicado em 30/06/2008 na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, Nelson Ascher comenta o poema de Philip Larkin traduzido por ele e aqui postado em 30/11/2009:



NELSON ASCHER

Um ótimo poema repulsivo


É NUM tom paradoxalmente triunfalista ("Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria") que, em 1881, Machado de Assis arrematava "Memórias Póstumas de Brás Cubas".

Noventa anos depois, em 1971, o poeta inglês Philip Larkin (1922-1985) encerrava simbolicamente a carreira com um breve poema cuja última estrofe afirma e aconselha (em tradução literal) o seguinte: "Os homens passam (ou legam) a miséria uns aos outros. (...) Não tenhas filho algum".

O texto, um dos mais citados de sua língua, é, assim, um epitáfio.

Diante de tamanha coincidência (aliás, a tradução britânica do romance machadiano, sugestivamente intitulada "Epitaph of a Small Winner", saíra em 1968, numa edição da Penguin), seria tentador imaginar que o poeta de lá (bibliotecário profissional) tomara conhecimento do prosador daqui e se inspirara em seu livro. Tal vínculo de causa e efeito, porém, nada tem de obrigatório. Operando com materiais similares, mentes e temperamentos semelhantes chegam não raro a resultados parecidos.

Há imagens notáveis que, de tão usadas, perdem o impacto original e até deixam de expor claramente o que dizem, a que vieram. É o que ocorre com o sutil oxímoro formulado pelo brasileiro e pelo inglês. Cada qual, falando de um "legado de miséria", cria uma imagem à cuja família pertencem, por exemplo, "sua ausência preencheu uma grande lacuna" (atribuída a Stanislaw Ponte Preta), "a cárie (...) que enche inteiramente o cheio de vazio" (de um poeta que desconheço) e, no limite, o "nada que é tudo" pessoano.

Nada impede, portanto, que Larkin e Machado de Assis (ou melhor, Brás Cubas), numa destilação que, a nossos ouvidos, soa, a um tempo, bíblica, darwiniana e psicanalítica, sintetizassem independentemente a essência do niilismo.

Agora, consta que o inglês mesmo era pessoalmente uma figura no mínimo desagradável, e ninguém precisa concordar com sua mensagem explícita. A maioria das pessoas que conheço teve lá seus problemas com pai e mãe, mas sabe que tanto o presente voluntário da vida como todo o restante superam de longe as perdas e danos eventuais, e quem quer que os tenha perdido sempre lhes sentiu pungentemente a falta.
Que os pais cometem erros e nos causam dificuldades desnecessárias, tampouco é segredo. Eles, afinal, são humanos, e é deles que herdamos, sobretudo, nossa humanidade. Aqueles que atribuem o grosso de suas limitações ou insucessos a eles não passam de fracos, incapazes de reconhecer e assumir as próprias responsabilidades. Salvo em casos extremos (o de gente enviada a Auschwitz ou ao Gulag, respectivamente por Hitler ou Stálin), cabe a todo indivíduo responder, desde muito cedo, pelo que é ou faz.

O de Larkin é, sem dúvida, um poema bem-feito e, antes de mais nada, contundente (assim como as palavras derradeiras, note-se bem, de Brás Cubas, um personagem que jamais deve ser confundido com seu criador), não devido à qualidade ou agudeza de seu "insight", de sua percepção, mas a despeito da manifesta falsidade e injustiça desta. Infelizmente, o fato é que ética e estética não costumam andar de braços dados: bons sentimentos podem gerar versos medíocres, enquanto idéias repulsivas às vezes rendem ótimos poemas.

Pensando bem, no entanto, o "infelizmente" acima está errado. Ótimos poemas com mensagens detestáveis são necessários para que nunca deixemos de ter em mente que, ao contrário do que parece dizer a urna grega de Keats, o belo e o verdadeiro não são a mesma coisa. Um texto como "Este seja o poema" obriga-nos a dissociar ambos, bem como o que sentimos a seu respeito. Para quê? Para aprendermos a não ceder ao canto das sereias a ponto de acreditar em sua letra (ou vice-versa), pois, embora possa ter sido escrita por anjos ou pela serpente, ela, em nenhum dos casos, torna nossos ouvidos automaticamente refratários à sedução da melodia.




Philip Larkin
"Este seja o poema"

Teu pai e mãe fodem contigo.
Que não o queiram, tanto faz.
Passam-te cada podre antigo,
além de uns novos, especiais.

Mas de cartola e fraque, outrora,
fodera-os já do mesmo modo,
gente ora austero-piegas, ora
se engalfinhando cega de ódio.

Miséria é o que legamos: fossas
num mar que só fica mais fundo.
Dá o fora, pois, tão logo possas
sem pôr nenhum filho no mundo.

8 comentários:

  1. Cicero,

    Há muito, essa lição moral de que se deve ter cuidado (ambíguo mesmo!)com os pais (começo pela hierarquia superior, paterna, para que os fatos possam ser esclarecidos(?) ou supostamente imaginados) e com os filhos, é tema da História, da Literatura, da Mitologia e da Filosofia.

    A começar: Deus castigou seus próprios filhos(Adão e Eva, somente?) por terem-no desobedecido.

    A narrativa mitológica da criação dos deuses, do mundo e dos homens, feita por Hesíodo (século VII a.C.), através de dois belíssimos poemas: "Teogonia" e "Os Trabalhos e Os Dias", demonstra-nos, com sabedoria, o quanto os gregos temiam o poder paterno e a audácia dos filhos.

    Basta que nos lembremos dos mitos de Cronos/Urano (Cronos "sufocava" seus filhos dentro de Gaia/"Terra" - Tal qual hoje, o Deus que há? - até que Urano resolveu dar um basta... E castra o poder do seu pai.). A lição se repete com Urano/Zeus, Zeus/Métis etc e tal. E por quê?

    Para que haja uma harmonia geral (familiar, universal, artística).

    A vinda de um filho implica, de certa forma, numa continuação da vida, numa maneira de se livrar do medo eterno da morte... como um herói, como um deus.

    E as tragédias shakesperianas que nos dizem? Há algo mais que podre no seio das famílias!

    E o pobre Pã, abandonado por ser feiozinho? E Moisés? E tantos que são jogados por aí em sarjetas, por prédios, abortados ilegalmente em hospitais, quintais, puteiros?

    "Nada disso tem moral nem tem lição"?

    E o que nos alerta Vinícius de Moraes:

    "Filhos... Filhos?
    Melhor não tê-los!
    Mas se não os temos
    Como sabê-los?"

    Ou Nietszche que matou o Pai dos Pais?... mas não se matou!

    Seria um discurso infinito recheado de citações e exemplos e maus exemplos. Prós e contras e a favores (A quem? De quem? Vai saber?)

    O que importa: O texto do Nelson Ascher é maravilhoso, brilhante... Um rebento! Ops! Um Deus-Sol!


    Grande abraço,
    Adriano Nunes.

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  2. "A maioria das pessoas que conheço teve lá seus problemas com pai e mãe, mas sabe que tanto o presente voluntário da vida como todo o restante superam de longe as perdas e danos eventuais, e quem quer que os tenha perdido sempre lhes sentiu pungentemente a falta.
    Que os pais cometem erros e nos causam dificuldades desnecessárias, tampouco é segredo. Eles, afinal, são humanos, e é deles que herdamos, sobretudo, nossa humanidade. Aqueles que atribuem o grosso de suas limitações ou insucessos a eles não passam de fracos, incapazes de reconhecer e assumir as próprias responsabilidades."

    Se fosse tirar por mim teria mais uma confirmação dessa hipótese, superei, na medida do possível, os problemas que me causaram e tive ânimo para procriar. Contudo, acredito que haja rombos sem remédio, cáries que se tornam câncer, e isso não tem a ver com a debilidade da vítima, com seu caráter. É porque a foderam mesmo "de verde e amarelo" sem deixar espaço para recomposição.

    A medida do que é grave, mais ou menos grave; do que que se pode suportar, quem haverá de dizer, julgar? Qual profundidade máxima será admitida para que não cicatrizem as escaras deixadas pela guarda dos pais? Alguém pode dar essa medida? Para o outro? Não creio.

    E olha que eu odeio a ocupação indiscriminada do lugar de vítima, mas acho absolutamente legítima a postura dos que têm a prudência e a decência de não legar o que, definitivamente, não fará falta alguma.

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  3. querendo, não querendo ou, como diz o chaves (o personagem da TV, nao o ditador), sem querer querendo, eles nos fodem, nós os fodemos, eles se fodem, nós nos fodemos.
    a foda sempre rolou solta.
    É o caso de vê-la como dor ou delícia. Eu tendo a ver a foda como uma coisa boa, dá prazer e poesia.

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  4. Caro Cícero,
    Um artigo claro desde o título.
    Concordo integralmente com a tese.
    Algumas piadas politicamente incorretas e preconceituosas também são "ótimas piadas repulsivas", desde que consigamos dissociar, da construção da anedota, a besteira que ela afirma.
    A graça delas costuma ser o fato de existir alguém que pense daquele jeito absurdo.
    Abraço,
    JR.

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  5. ética - estética - podem ou não estar na mesma esquina.


    Um poema que escrevi:

    na luz laranja fim de tarde
    desce o odor de dourado táctil
    na leitura erguida que abrasa

    por entre o azul que cintila
    se desnuda quente deste verso
    o inundado vermelho da tez fina

    na cor destes olhos vou deitar-me
    mergulho do que no corpo percorre
    para todas as cores lamber

    feito o declive do tecido rasteiro
    e quase plano da língua do sol
    que eleva a coragem de ver-nos corpo

    Um abraço, Cicero

    Jefferson

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  6. Cicero,


    Um poema:

    "Entre tudo e nada" - Para a minha amada mãe.

    Outra madrugada
    Voraz. Minha vida
    Vaga desvalida
    Entre tudo e nada.

    O meu coração
    Nunca me perdoa:
    Sou essa pessoa
    Sem consolação!


    Grande abraço,
    Adriano Nunes.

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  7. Cicero,

    Veja o que eu achei, de Horácio:

    "A era de nossos pais, pior que a de nossos avós, fez mais perversos a nós, que em breve teremos filhos muito mais depravados."

    Achei essa citação num livro de Kant, mas sem a referência completa. Você a conhece? Se sim, poderia disponibilizar para nós?

    Muito agradecido,

    Abraços.

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  8. Aetano,

    Isso é o final da Ode III.VI:

    aetas parentum peior avis tulit
    nos nequiores, mox daturos
    progeniem vitiosiorem.

    Essa ode é relativamente longa, por isso não me animo a traduzi-la. Vou ver se acho alguma tradução pronta.

    Abraço

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