23.12.09
W.H. Auden: "As I walked out one evening" / "Ao descer a rua Bristol: tradução de Nelson Ascher
Ainda sobre o tempo (tema bem a propósito no fim do ano), uma belíssima balada de W.H. Auden, com a tradução -- que é um admirável tour de force -- de Nelson Ascher:
Ao descer a rua Bristol
uma tarde, eu vi os demais
que eram como, antes da ceifa,
os já maduros trigais.
E ouvi junto ao rio, debaixo
da ponte da ferrovia,
um namorado cantando
como ele sempre amaria:
“Vou te amar, meu bem, até
que a África se junte à China,
que o rio salte a montanha
e salmões cantem na esquina.
Vou te amar até que o oceano
seque pendurado ao léu,
até que as Plêiades grasnem
quem nem os gansos no céu.
Anos fujam como lebres,
pois, nos braços, eu estreito
a Flor de Todas as Eras
e, entre amores, o perfeito.”
Mas, nas ruas, mil relógios
badalaram com alarde:
“Não confies nunca no Tempo,
Ele triunfa cedo ou tarde.
Nos desvãos do pesadelo,
onde a justiça está nua,
o Tempo espreita das trevas
e em teu beijo se insinua.
Em transtornos e ansiedade,
nossa vida esvai-se a esmo
e o Tempo há de impor-se a todos
amanhã ou hoje mesmo.
Neva em muitos vales verdes
e o Tempo reduz a nada
o arco que o mergulhador
descreve e a dança ensaiada.
Põe a mão até o pulso
dentro da água, na bacia,
pondera, ao fitar-lhe o fundo,
que tua vida foi vazia.
Desertos gemem na cama,
o armário acolhe o glaciar,
e a chávena leva à Terra
dos Mortos, ao se rachar.
Lá mendigo é perdulário
e o Gigante agrada a João,
anjinhos rugem ferozes,
Mariazinha dá no chão.
Olha bem, olha no espelho,
olha cheio de pesar:
viver é uma bênção, mesmo
que não possas abençoar.
Fica à janela conforme
ferve o choro assustador;
ama o próximo traiçoeiro
com teu coração traidor.”
Caía a noite, o casal
fora embora, a litania
dos mil relógios cessara
e, profundo, o rio corria.
As I walked out one evening,
Walking down Bristol Street,
The crowds upon the pavement
Were fields of harvest wheat.
And down by the brimming river
I heard a lover sing
Under an arch of the railway:
'Love has no ending.
'I'll love you, dear, I'll love you
Till China and Africa meet,
And the river jumps over the mountain
And the salmon sing in the street,
'I'll love you till the ocean
Is folded and hung up to dry
And the seven stars go squawking
Like geese about the sky.
'The years shall run like rabbits,
For in my arms I hold
The Flower of the Ages,
And the first love of the world.'
But all the clocks in the city
Began to whirr and chime:
'O let not Time deceive you,
You cannot conquer Time.
'In the burrows of the Nightmare
Where Justice naked is,
Time watches from the shadow
And coughs when you would kiss.
'In headaches and in worry
Vaguely life leaks away,
And Time will have his fancy
To-morrow or to-day.
'Into many a green valley
Drifts the appalling snow;
Time breaks the threaded dances
And the diver's brilliant bow.
'O plunge your hands in water,
Plunge them in up to the wrist;
Stare, stare in the basin
And wonder what you've missed.
'The glacier knocks in the cupboard,
The desert sighs in the bed,
And the crack in the tea-cup opens
A lane to the land of the dead.
'Where the beggars raffle the banknotes
And the Giant is enchanting to Jack,
And the Lily-white Boy is a Roarer,
And Jill goes down on her back.
'O look, look in the mirror,
O look in your distress:
Life remains a blessing
Although you cannot bless.
'O stand, stand at the window
As the tears scald and start;
You shall love your crooked neighbour
With your crooked heart.'
It was late, late in the evening,
The lovers they were gone;
The clocks had ceased their chiming,
And the deep river ran on.
Original:
AUDEN, W.H. Selected poems. London: Faber & Faber, 1979.
Cicero,
ResponderExcluirUma verdadeira viagem! Tão comovido fiquei que as redondilhas ainda permanecem vivas em minha memória!
Parabéns para Nélson Ascher!
Muito grato por compartilhar essa pérola preciosa!
Grande abraço,
Adriano Nunes.
bel+issimo poema! Um Bom Natal para si e para aqueles que ama,
ResponderExcluir“Eterno, mas até quando?” Drummond
ResponderExcluir"Eterno enquanto dure." Vinicius
"justiça do tempo (díke khrónou), mãe poderosa das divindades olímpicas" Sólon
Três deuses irmãs: sedução, confiança e verdade. Quando elas brigam ...
Muito amor para você Cícero.
é lindo mesmo né, lembra aquelas velhas canções irlandesas sobre o o amor, o tempo, a vida e a morte...
ResponderExcluirLindo!
ResponderExcluirAs forças, se não dependesse do tempo...
Abraço
Muito bonito, Cícero. Estive na Cobal esses dias e lembrei de você.
ResponderExcluirBelíssimo o poema e admirável a tradução. Um excelente 2010 pra você, querido Cicero.
ResponderExcluirBeijo grande.
Obrigado, Arthur.
ResponderExcluirTambém lhe desejo um 2010 maravilhoso.
Beijo
muito criativa esta tradução, fico imaginando quanto tempo o tradutor demorou, trabalhando no poema, para chegar a uma realização tão boa.
ResponderExcluirPrimeiro, obrigado a todos pelo feedback e, muito especialmente, ao Cícero por publicar a tradução.
ResponderExcluirRespondendo ao Rafael: levei cerca de duas semanas, trabalhando algumas horas por dia no poema. Mas, no caso da tradução de poesia, não há um tempo fixo ou médio, pois a gente pode, com sorte, chegar a um resultado satisfatório logo na primeira tentativa, pode investir meses ou até anos antes de alcançá-lo e, na pior das hipóteses, pode não consegui-lo jamais. E o pior é que isso não é dado de antemão, não há como sabê-lo antes de pôr mãos à obra. Ademais, não há resultado que, por melhor que pareça, não possa ser melhorado.
Trabalhar, porém, com um poema como esse já é um prazer em si mesmo, é a própria recompensa. Por quê? Porque, como na música, a gente, ao lê-lo no original, vai sendo levada por seu embalo, seu ritmo, sem atentar muito para os detalhes. Foi, aliás, o que me aconteceu: eu quase o sabia de cor e ainda não tinha, por assim dizer, "sacado" muitas de suas mais importantes minúcias. Ao terminar, porém, o primeiro esboço de versão, comecei a notar que havia nele coisas que me passaram despercebidas, que o poema era de fato ainda melhor do que me parecera de início. E foi tentando achar equivalentes razoáveis ou pertinentes para tal ou qual expressão feliz que me dei conta de sua precisão, de quão exatamente cada uma de suas partes se "sintonizava" com as demais, formando um conjunto nuançado e coerente.
Nada disso, no entanto, quer dizer que eu considere minha tradução definitiva ou acabada. A rigor, nem há mesmo traduções definitivas -- só versões melhores ou piores. E, no caso específico desta, há pelo menos duas estrofes onde minhas interpretações são hipotéticas e as respectivas soluções, provisórias.
Agora, cada um tem seu método, e o meu consiste em guardar esta tradução na gaveta, esquecê-la e, mais tarde, talvez daqui a meses, relê-la para ver se ela ainda se sustenta ou se me ocorre alguma solução melhor para este ou aquele problema.
Obrigado, de novo, a todos, e um ótimo 2010 para vocês.
Nelson Ascher
Quem agradece sou eu, Nelson, por ter sua autorização para aqui publicar suas excelentes traduções.
ResponderExcluirUm excelente 2010 para você também!
Abraço
Antonio Cícero,
ResponderExcluirSó agora descobri seu blog repleto de poetas que amo ler e W.H.Auden é um deles.
Sobre a discussão tão bem explicada por Nelson Ascher, do tempo necessário à tradução do poema, lembrei-me imediatamente das palavras de Antonio Houaiss à tradução de Ivo Barroso aos sonetos de Shakespeare, que valem perfeitamente para o belo trabalho de Ascher:
" ... aceitando o mais desigual dos desafios, que é o do tradutor por amor - já que sabe que a um só original podem corresponder mil soluções e que a sua deve ser, por amor, a mais pertinente.
Quando a vida ameaça ser embrutecida por urgências desumanizadoras, é um bem dedicar algumas horas, ao longo de algumas horas, ao longo de alguns meses, na comungação de arte-ofício-artesania tão belos como os que nos oferece Ivo Barroso [Nelson Ascher, nota minha] com seus sonetos reinventados sobre a mais pura matéria-prima da poética universal."
HOUAISS, Antonio, "Shakespeare: Uma Tradução Isotópica". In: BARROSO, Ivo (tradução e apresentação). William Shakespeare 50 Sonetos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.