Ao escrever o artigo que saiu hoje publicado na minha coluna da “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, acabei por fazê-lo muito maior do que o espaço que me é reservado. Normalmente, quando isso acontece, edito o artigo, para que caiba no espaço disponível, sem perder o essencial do seu argumento. Foi o que tentei fazer com o artigo de hoje. Ao relê-lo no jornal, porém, achei que o resultado deixa a desejar: que carece de clareza e precisão. Por isso, excepcionalmente, publico aqui o artigo na sua versão – mais longa – original.
A ressurreição do apóstolo Paulo
HÁ POUCOS meses, o papa Bento 16 anunciou que haviam sido encontrados os restos mortais do apóstolo Paulo. Nesse ponto, Ratzinger estava atrasado. Em alguns círculos de esquerda, esse apóstolo já havia sido ressuscitado há algum tempo. Basta lembrar o livro de Alain Badiou, de 1997 ("São Paulo: a Fundação do Universalismo"), o de Giorgio Agamben, de 2000 ("O Tempo que Resta: Comentário à Carta aos Romanos"), a reedição, em 1993, do livro de Jacob Taubes ("A Teologia Política de Paulo") e as muitas páginas que Slavoj Zizek tem ultimamente dedicado a esse apóstolo (por exemplo, em "O Absoluto Frágil").
Ora, nenhum leitor das invectivas de Paulo contra a filosofia e a racionalidade (por exemplo, em 1Co 1:19-27 e 3:18-20, e Ro 1:21-22) pode ignorar que ele foi um dos fundadores do irracionalismo cristão. De fato, esses escritores me parecem ser atraídos exatamente pelo irracionalismo de Paulo. Por que?
Consideremos Badiou. Recentemente, ele tem escrito (por exemplo, na "Revista Piauí" de agosto de 2007), sobre a "hipótese comunista". Basicamente, esta consistiria na suposição de que seja possível eliminar a desigualdade das riquezas, a divisão de trabalho e o aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil.
Francamente, não sei se é mesmo possível eliminar a desigualdade ou o aparelho de Estado. Entretanto, Badiou diz também que essa "hipótese" é "uma ideia com função reguladora, e não um programa". Se isso significa que quem adota a "hipótese comunista" é aquele que orienta suas ações políticas no sentido de, entre outras coisas, promover a diminuição da desigualdade das riquezas, flexibilizar a divisão do trabalho e diminuir a necessidade do Estado coercitivo, então ela pode ser aceita por um reformista radical, como eu mesmo.
Badiou porém, longe de se considerar um reformista, pretende ser um revolucionário. Assim também creio serem quase todos os entusiastas da “hipótese comunista”. O que querem é uma revolução que, mais ou menos rapidamente, destrua o capitalismo e construa o comunismo, isto é, que rapidamente, como foi dito, elimine a desigualdade das riquezas, a divisão de trabalho e o aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil.
Entretanto, desconfio que nenhum desses revolucionários saberia dizer exatamente como se daria tal superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em “socialismo”. Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?
Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representa sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se proclamou, por exemplo, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?
Será possível identificar a estatização com o socialismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que “quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge”.
Para Engels, portanto, a propriedade estatal não era a solução. No máximo, ela podia ser usada como um meio para se chegar mais perto da solução. E qual seria essa, segundo ele? Que a sociedade, aberta e diretamente, tomasse posse das forças produtivas. Note-se bem: a propriedade estatal dos meios de produção, consistindo na manifestação extrema de uma relação de produção capitalista, está longe de ser a posse social dos mesmos.
Os revolucionários russos não pensaram assim. Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a constituição do “modo de produção socialista” (que seria o primeiro passo para o comunismo), supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.
O fato, porém, é que a própria extinção da URSS e o caráter selvagem e mafioso do capitalismo que hoje vigora na Russia se encarregaram de desmentir essa pretensão. Em obra recente, Badiou comenta que “sob a forma do Partido-Estado, experimentou-se uma forma inédita de Estado autoritário e mesmo terrorista, de todo modo muito separado da vida das pessoas”. E conclui: “O princípio da estatização era em si mesmo viciado e por fim ineficaz. O exercício de uma violência policial extrema e sangrenta não conseguiu salvá-lo de sua inércia burocrática interna e, na competição feroz que lhe impuseram seus adversários, não foram precisos mais de cinquenta anos para mostrar que ele jamais venceria”.
A Revolução Cultural Chinesa é por Badiou entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de uma situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: “Não se sabe onde está a burguesia? Mas ela está no Partido Comunista!” Como, porém, as “massas” são necessariamente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer “democracia direta” não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, como diz Badiou, “restabelecer a ordem nas piores condições”. O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.
A verdade é portanto que, como nem a centralização, sob a égide do Partido, nem a mobilização das massas logram superar o capitalismo, não se sabe – jamais se soube – como se daria tal superação.
Um famoso hino alemão oriental dizia: “Die Partei hat immer Recht”, isto é, "o Partido sempre está certo". Tal secularização do pensamento religioso constitui o ápice do irracionalismo e acabou por produzir incalculável sofrimento. As terríveis experiências do século 20 apenas confirmam empiricamente algo que, por direito, já se sabe desde a Ilustração: nem a Igreja, nem a Bíblia, nem o Partido, nem o líder genial, nem as massas, ninguém é capaz de sempre estar certo. Nada está acima de ser criticado. Por isso, a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. são exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão.
Ora, não há por que pensar que não seja possível, mesmo nos marcos de uma sociedade aberta, promover a diminuição da desigualdade das riquezas, flexibilizar a divisão do trabalho e diminuir a necessidade do Estado coercitivo. Uma das provas de que as coisas podem melhorar é hoje a própria experiência brasileira, nos últimos quinze anos de governos democráticos de esquerda.
Mas, naturalmente, os seguidores do apóstolo Paulo não pensam assim. Apesar de reconhecer que "o marxismo, o movimento operário, a democracia de massas, o leninismo, o Partido do proletariado, o Estado socialista, todas essas invenções notáveis do século 20 não nos são mais realmente úteis", Badiou prefere crer na Revolução do que na razão. Para ele, a Revolução Francesa abrira um primeiro período revolucionário; a Revolução Russa, um segundo. Aguardando o próximo, ele confessa: "Não estou em condições de dizer com certeza o que é a essência do terceiro período revolucionário que vai se abrir". Ele tem certeza de que ocorrerá algo decisivo no terceiro – note-se bem a mística do numero – período revolucionário, embora não saiba o que será. Em suma, adota um estilo escatológico, sem nada dizer. Por que isso?
Porque ele é “revolucionário”, ou melhor, apocalíptico. Badiou rejeita a democracia parlamentar porque quer rejeitar em bloco a sociedade aberta em que vive: “A hipótese comunista”, afirma, “não coincide de maneira nenhuma com a hipótese democrática”. Se como dissemos, a sociedade aberta é uma exigência inegociável da crítica, isto é, da razão, então, embora não o confesse literalmente, é a razão que, no fundo Badiou tenciona relativizar. “Há algo no devir de uma verdade”, afirma ele, “que ultrapassa as possibilidades estritas da mente humana”.
Aqui entra o apóstolo Paulo. Embora a racionalidade clássica considerasse irracionalistas as teses de Paulo, estas, segundo Badiou, constituíram um "acontecimento" que superou aquela, inaugurando um novo tipo de universalismo e de verdade. “Todo procedimento de verdade”, diz ele, “rompe com o princípio axiomático que governa a situação e organiza a sua série repetitiva. Um procedimento de verdade interrompe a repetição e não pode portanto ser sustentado pela permanência abstrata própria à unidade da conta, subtraída da conta”. Ou seja, o “procedimento de verdade” é incomensurável com o que, antes da sua instauração, passa por verdade.
Segundo Badiou, o conhecimento (savoir), pertencente à ordem do Ser, opõe-se à verdade, manifesta em acontecimentos que não pertencem à ordem do ser, mas surgem ex nihilo, à maneira de milagres. Para Slavoj Zizek, também entusiasta de Paulo, "Badiou está inteiramente justificado ao insistir que -- usando o termo com seu peso teológico integral -- milagres ocorrem sim". A verdade milagrosa é singular, pois não poder ser classificada em gênero nenhum; universal, pois ultrapassa todas as particularidades acessíveis ao conhecimento; e axiomática, pois transcende tudo o que pode ser provado ou demonstrado.
Badiou pensa que a verdade só é discernível pelos membros da nova comunidade de crentes. A rigor, ela não passa, portanto, de uma crença. Comentando -- e aprovando -- tais teses, Zizek especula que a verdadeira fidelidade ao acontecimento é 'dogmática' no sentido preciso de fé incondicional, de uma atitude que não procura boas razões e que, por essa razão mesma, não pode ser refutada por nenhuma 'argumentação'". Ora, ocorre que aquilo que não pode ser refutado por nenhum argumento é exatamente o irracional. Em suma, trata-se aqui do mais puro irracionalismo religioso.
De todo modo, podemos nos perguntar qual é o procedimento de verdade que autoriza Badiou a afirmar suas teses. Certamente não pode ser o que ainda não foi instaurado; e como poderia ser o que vigora contemporaneamente, se este é objeto constante do seu escárnio?
O fato é que – como aliás convém a quem, como bom discípulo de Paulo de Tarso, literalmente exalta as três virtudes teologais – Badiou sustenta suas teses exclusivamente na fé.
Prezado Antonio Cicero,
ResponderExcluirLi seu texto celeremente. Mas quem poderá falar em verdade universal? Eu encaminhei um e-mail aos seus cuidados abordando sobre o que penso acerca da Premissa indutiva (Todo homem é mortal) e ali afirmo que nenhum homem poderá beneplacitar tal assertiva -- e que verdade então seria que NENHUM HOMEM PODERÁ AFIRMAR QUE TODO HOMEM É MORTAL -- sendo, portanto, verdade tal afirmação, mas não para o homem como sujeito cognoscente. Nesse sentido, demonstro a incapacidade de o Homem ser detentor em qualquer época e lugar de uma verdade absoluta e necessária. Falo isso, porque todo tipo de razão deve ser demonstrado. E nos casos abordados, pelo meu modo de ver, há um ato de fé e de convencimento em cada fala, mas não embasado numa razão tida como universal e necessária. Veja: quando digo mortal, pretendo definir o conceito como coisa líquida e certa -- que todos irão morrer; sei também que poderíamos entrar num círculo vicioso filosófico assim: mas o que é morrer? mas o que é homem? mas o que é mortal etcetc...
Obs: não estou criticando o texto e nenhum autor, mas apenas tomando a análise no sentido filosófico de razão que desde Tales tenta romper com um tipo de discurso mítico. Embora não considere que qualquer filósofo a tenha até hoje logrado (a razão)
grato e obrigado pela espaço.
wilson luques costa
Caro Cicero,
ResponderExcluirÉ sempre um prazer ler seus artigos, principalmente quando exercita a veia polêmica contra os caminhos de damasco de certa esquerda irracionalista. Sem dúvida, o artigo está mais claro no blog que na edição do jornal. Curioso que o seu argumento me recorda a conhecida introdução de “A filosofia da história”, de Hegel, na passagem a qual (cito de cabeça) ele diz que manifestar a simples fé na razão seria recair nas armadilhas da providência divina e que, portanto, ao invés da fé, a razão é questão de pensamento e pressupostos críticos. Gostei de saber que a sua percepção de “sociedade aberta” pode abrigar, como idéia e horizonte de ação, uma versão reformista radical inclusive da tal da “hipótese comunista”. Aliás, sempre achei que a sua concepção da modernidade como um negativo absoluto do cogito, como um agora sagital entre tempo e história, embora avesso a uma esquerda irracionalista, é impossível de ser domesticada por quaisquer tipos de conservadorismo liberal. A modernidade não significa o fim da história, mas exatamente a sua afirmação.
Um abraço meu e também de Cida,
Jaldes.
cICERO,
ResponderExcluirBrilhante!
Um poema para você:
"Dez para dez" - Para Antonio Cicero.
Dez para dez. Talvez,
Baco apareça aqui,
No bar. Sem timidez,
Prove do vinho. A qui-
Mera mágica é ver-
Ter tudo em bel prazer,
Em vertigem, em ver-
So, pra satisfazer
O corpo antes de ser
lançado à dor, ao pó
Das horas, desse nó.
O que mesmo vai ser?
E de nada se ser-
Ve. O tempo passa só.
Grande abraço,
Adriano Nunes.
Muito obrigado, Adriano. Gostei muito.
ResponderExcluirAbraço
Paulo, Paulo, por que me persegues? (O "Paulo" aqui é proposital).
ResponderExcluirExcelente denúncia do fideísmo e de seus perigos.
Parabéns, Cicero!
Aeta.
"Nato cattolico, per uscire dal cattolicesimo avrei dovuto avere delle "ragioni"; ma queste ragioni, proposte da più parti, non mi hanno mai convinto." Augusto Del Noce (1910-1989).
ResponderExcluirA separação de fé e razão é um dogma moderno. É possível a partir da fé resistir à barbárie (p.ex.: Dietrich von Hildebrand, Edith Stein, Eric Voegelin, Leo Strauss, Hans Jonas, etc). Esse resnascimento paulino, desses anões filosóficos como Zizek ou Badiou, é na verdade uma imanentização do escháton cristão, como bem demonstrou Voegelin.
Enfim, como disse Gómez Dávila: "El anticristo, tal vez, sea el hombre".
Antonio Cicero,
ResponderExcluirVocê não tem ideia do prazer que tenho ao ler textos lúcidos e claros como este.
Uma voz como a sua é muito necessária nesse século de tantos fundamentalismos e mistificações, cada vez mais irracionalista.
Obrigado e um abraço,
Marcelo
ACREDITEI? NADA NOVO EU VI..SEMPRE O MESMO BLA BLA BLA E 2 BILHOES DE SERES HUMANO MORENDO DE FOME,,SEMPRE BLA BLA BLA BLA ....
ResponderExcluirBoa noite, Cícero, fico pensando muitas vezes no lema do personagem Fabrizio de Salina na obra 'O Leopardo', de Giuseppe Tommazi di Lampedusa, adaptada para o cinema por Visconti. Algo precisa mudar para que tudo permaneça igual - dizia o príncipe de Salina, justificando sua decisão em casar o sobrinho com uma representante da burguesia.
ResponderExcluirPara mim, a frase acima expressa uma certa verdade contida no seio de toda revolução: a luta pelo poder e os pactos que se fazem para mantê-lo. Assim parece caminhar nossa história, a meu ver. Vide as alianças que se fizeram no Governo Lula, as fraudes, a corrupão, que continuam. Social-democracia, sociedade aberta, direitos humanos, são conceitos, avanços, muito importantes, mas ainda nos falta muito para atingirmos uma sociedade mais justa.
Porém, acredito, que diante do totalitarismo, dos regimes de exceção, da ditadura do estado, do comunismo, do fanatismo, a mesma democracia, o direito, as conquistas individuais são as formas mais válidas de governo humano que a razão baseada na ética nos legou.
Um abraço.
Na minha opinião o artigo é bom mas nos estreitos limites do raciocínio metafísico .
ResponderExcluirNão é o que perfilham os que lutam pela transformação revolucionária da sociedade .
Geraldes de Carvalho