12.7.09

Enquanto fazemos poesia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 11 de julho:


Enquanto fazemos poesia


UMA VEZ PARTICIPEI de uma mesa redonda em Póvoa de Varzim, no norte de Portugal, em que se discutiu a proposição "Enquanto fazemos poesia não partimos". Trata-se de uma sentença de Hermann Broch, que se encontra no romance "A Morte de Virgílio". Mas ela foi apresentada fora do seu contexto, de modo que cada qual pudesse interpretá-la como quisesse, quer para defendê-la, quer para criticá-la. O importante era que essa interpretação pessoal revelasse algo da concepção de poesia de cada um. Foi, de fato, o que ocorreu.

Quanto a mim, concordo com a tese de que "enquanto fazemos poesia não partimos". Consultando o contexto em que essa frase se encontra, percebe-se que Broch lamentava o fato de não partirmos quando fazemos poesia, como se dissesse: "Quando fazemos poesia, não chegamos a partir". Para ele, o importante era partir. Pois bem, penso, ao contrário, que o fato de não partir é exatamente o que faz da poesia o que ela é: uma das dimensões insubstituíveis e, segundo penso, supremas, da experiência humana. Na verdade, creio que não é somente quando fazemos poesia, mas, principalmente, quando a lemos, que não partimos.

Partir quer dizer dividir em partes, separar as partes: e é da noção de separação que vem o sentido de ir embora. Pois bem, para que o juízo, isto é, o conhecimento humano discursivo, dianoético, seja possível, é necessário, em primeiro lugar, que o sujeito (que julga) e o objeto (sobre o qual se julga) tenham sido separados. No próprio objeto, é preciso também que o sujeito tenha sido separado de suas propriedades e relações etc. Ora, muito sucintamente, essas separações são condições para que possamos conhecer e instrumentalizar o mundo dos objetos. Através da partida, portanto, todos os entes se tornam objetos para o sujeito que conhece.

Também o poema consiste num objeto artificial. Não se trata, evidentemente, de um objeto artificial material, como a folha de papel sobre a qual ele se encontra escrito, mas de um objeto formal, de um objeto-tipo, como uma palavra. É assim que, como uma palavra, ele pode encontrar-se em diferentes meios ao mesmo tempo: nos vários exemplares de um livro, em revistas, em computadores, na internet, em gravações sonoras etc.

A mais importante característica a distinguir esses dois tipos de objetos artificiais de caráter formal que são as palavras e os poemas parece-me ser o fato de que, ao contrário de uma palavra, um poema enquanto poema não desempenha qualquer função sintática ou semântica na língua a que pertence. Na verdade, o poema enquanto poema é um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada. Ora, um objeto destituído de função determinada é, literalmente, um objeto que não serve para nada.

Normalmente, não damos atenção a objetos que não servem para nada. Por que damos atenção a um poema enquanto poema? Coube a Kant responder a essa pergunta, ao descrever a beleza como uma finalidade sem fim. O poema enquanto poema é um objeto no qual reconhecemos a forma da finalidade sem, entretanto, reconhecermos o fim, a função que daria o seu conceito. Por isso mesmo, o poema enquanto poema é um objeto que, como diz Kant das ideias estéticas, "constitui uma apresentação da imaginação que dá muita ocasião ao pensamento, sem que nenhum pensamento determinado, nenhum conceito, possa ser-lhe apropriado e que, consequentemente, não é completamente alcançável ou tornado inteligível por nenhuma linguagem".

Sob o domínio da imaginação, o poema provoca o que o autor de "A Crítica do Juízo" chama de "livre jogo" entre as faculdades do conhecimento: trata-se de um objeto da língua ao qual voltamos, não por razões pragmáticas, mas estéticas, como voltamos a contemplar um quadro ou uma escultura.

Mas um poema é um objeto especial também em outro sentido, evidentemente ligado a esse primeiro. Ocorre que ler um poema é como mergulhar nele em pensamento. O poema é objeto e pensamento ao mesmo tempo. E, ao contrário do que ocorre nos não poemas, no poema não é possível separar o objeto do pensamento ou do sujeito do pensamento. Aquilo que pensa no poema é também a sua materialidade linguística: não apenas os seus significados convencionais, mas os seus significantes: e os significados não se separam, no poema, dos significantes. Nada, nele, se separa de nada; nada se parte; nada parte.

É nesse sentido que eu diria que, enquanto fazemos ou lemos poesia, não partimos.

20 comentários:

  1. Belo texto.
    Por tudo isso é que Leminski dizia que a poesia é um "inutensílio".
    Abraço

    ResponderExcluir
  2. É uma satisfação ler um artigo desses. É saber da re-união que traz a poesia e as artes.

    um forte abraço.
    Jefferson

    ResponderExcluir
  3. Seu texto me levou a pensar num outro parágrafo. A leitura do poema se parte quando encontra frágeis as relações entre forma e conteúdo, portanto. Quando o poema que chegou dilui-se no tempo da memória sem deixar vestígio. Quando o poema, enquanto memória, esvazia-se do poético para situar-se na esfera do acaso. Não seria assim o outro lado da moeda que muitos poemas encontram num lance de dados mal feito?

    ResponderExcluir
  4. li nalgum lugar que Cézanne tomou a maior chuva nos estudos que fazia para o seu último quadro, encontraram-no desmaido por causa da pneumonia, dias de cama, conseguiu levantar-se, voltou para a chuva e morreu. Cara, a poesia é necessária, mas isso é insano!(Antonio é de Candido, Bento é de Prado, sou Paulo Henrique mesmo).

    ResponderExcluir
  5. Cicero,


    belíssimo ensaio! Como Baudelaire disse: " La poésie ne peut pas, sous peine de mort ou de déchéance, s'assimiler à la science ou à la morale; elle n'a pas la Vérité pour objet, elle n'a qu'Elle-même."


    Abração!
    Adriano Nunes.

    ResponderExcluir
  6. O ser humano é polifacetado
    ...poético se tocam...não creio em regras por isso comungo " enquanto fazemos poesia não partimos".As conversas nas mesas em Póvoa de Varzim são momentos iluminados
    .
    .
    .

    ResponderExcluir
  7. Prezado Cícero,

    Concordo com você, embora se coubesse a mim argumentar, o faria de forma diferente. Há uma frase do Proust que diz que "viajar é mudar de olhos". Isso quer dizer que deslocamento no espaço muitas vezes não é sinônimo de partida. A verdadeira partida prescinde desse deslocamento. A poesia, por ser uma arte cuja matéria é a linguagem, é a viajem e a partida por excelência. Um grande poeta, por exemplo você, é aquele que nos faz ver aquilo que não tínhamos visto antes. Isso pra mim é a partida, sair para fora de mim, embora tudo ocorra no pensamento. Em suma: a poesia é a real partida; deslocamento no espaço, não necessariamente.
    Ps. Cícero, eu criei um blog onde comento trechos de literatura. Relacionei o seu blog ao meu e pretendo postar nele a sua poesia ‘O parque’. Tenho a sua permissão para tal? Obviamente colocarei as referências do poema, como a autoria, o livro, a editora...
    Link do blog: espelhosemimagem.blogspot.com
    Um grande abraço,
    Bruno Holmes Chads (bhchads@hotmail.com)

    ResponderExcluir
  8. Abençoada a poesia em sua inutilidade.

    Abençoados os poetas em sua teimosia cotidiana.

    Que Dionísio continue nos guiando.

    Abraxas.

    ResponderExcluir
  9. Enquanto fazemos poesia não "precisamos" partir, diria eu. Ou até partimos, mas não totalmente. Lembrei de um poema de Drummond chamado "Lanterna mágica": "(...) É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui lá". Mais de 50 anos depois ele escreveu o seguinte:

    O POEMA DA BAHIA QUE NÃO FOI ESCRITO

    Um dia - faz muito tempo -
    achei que era imperativo fazer um poema sobre a Bahia,
    mãe de nós todos, amante crespa de nós todos.
    Mas eu nunca tinha visto, sentido, pisado, dormido, amado a Bahia.

    Ela era para mim um desenho no atlas,
    onde nomes brincavam de me chamar:
    Boninal,
    Gentio do Ouro,
    Quijingue,
    Xiquexique,
    Andorinha,
    - Vem... me diziam os nomes, ora doces.
    - Vem! ora enérgicos ordenavam.
    Não fui.
    Deixei fugir a minha mocidade,
    deixei passar o espírito de viagem,
    sem o qual é vão percorrer as sete partidas do mundo.
    Ou por outra, comecei a viajar por dentro, à minha maneira.
    Ainda carece fazer poema sobre a Bahia?
    Não.

    A Bahia ficou sendo para mim
    poema natural
    respirável
    bebível
    comível
    sem necessidades de fonemas.

    ResponderExcluir
  10. Bruno,

    você fala de um outro aspecto da poesia. Está certo também, é claro.

    Sim, você tem minha autorização para postar "O parque".

    Abraços

    ResponderExcluir
  11. "Enquanto fazemos poesia", tudo fica em nós "inteiro".
    Confesso que nunca tinha tempo para poesias,um dia meu pai chegou em casa e comunicou que havia sido transferido , me deu um disco de presente e de tão "anestisiado" com o comunicado nem abri o pacote.Só fui ver o disco quando estava na Flórida,era Simples como fogo de uma cantora chamada Marina e tinha músicas dela em parceria com o irmão Antônio Cícero,fiquei fascinado pelos dois e ambos passaram a ser minha ponte com o Brasil,foi acompanhado o teu trabalho Cìcero que mergulhei na poesia e eu que sou desconectado com navegação na internet eatava em busca de novidades e acabei achando seu blog.
    Aproveito para dizer obrigado Cícero pelo teus trabalhos , esse dom e a somplicidade de ser o mesmo agradecimento faço para Marina.
    Abraço , Ricardo Soutto Maior

    ResponderExcluir
  12. Obrigado eu, Ricardo, pela sua gentileza. Seja bem vindo!

    ResponderExcluir
  13. Cicero,


    Um poema novo:



    "DO TODO"


    Pergunto-me:
    Que quero
    Da vida,
    Mistério
    Eterno,
    A Musa
    Sem nome?


    Acusa-me
    A mente
    De usá-la
    ( A vida
    Da gente,
    Quem sente?)
    Pra nada,


    A ferro
    E fogo.
    Respondo:
    (Que gozo!,
    Que busca!)
    Não quero
    Tão pouco.


    Almejo os
    Desejos,
    Procuro os
    Obscuros
    Objetos -
    Os óculos
    Dos versos -


    Pra ver/
    Ter outros
    Sentidos,
    Não quero
    Ser parte
    Do todo,
    Eu quero


    Ser só.


    Poema?


    Abraço forte!
    Adriano Nunes.

    ResponderExcluir
  14. olhando enquanto olho

    http://deletrando.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  15. enviei a você um comentário no qual está escrito:

    lindo! lindo! lindo! (o texto e o autor - rs.)

    ADOREI TUDO!

    beijo grande, poetósofo de primeiríssima grandeza!

    ResponderExcluir
  16. Perfeito, Cicero!!! E não deixa de ser interessante o fato de que partimos enquanto ainda não estamos a ler o poema. Todavia, no momento em que o estamos lendo, não partimos. Desse modo, parece que partir é mobilizar apenas uma parte de nós, enquanto que não partir significa mobilizar tudo que há em nós.
    Se assim for, então enquanto lemos um poema não só não partimos, como também não nos partimos.
    Vc concorda?

    Abraços, meu caro...

    Aeta

    ResponderExcluir
  17. AC, você me convenceu e também me persuadiu...

    Vou continuar com a poesia, que não quero partir.

    Felicidades!

    ResponderExcluir