O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 4 de abril.
Os vídeos poéticos de Carlos Nader
POR OCASIÃO da mostra, ainda em cartaz, "Carlos Nader: Ensaios Audiovisuais", cuja curadoria é de Bernardo Vorobow, participei, quarta-feira, de um debate com Carlos Adriano, Caetano Veloso e o próprio Carlos Nader. Conheço e admiro Carlos Nader e o seu trabalho há muito tempo, e já tive a honra de aparecer em dois dos seus vídeos, bem como no filme "Pan-Cinema Permanente". Por isso, cheguei à Cinemateca com algumas ideias sobre o que dizer durante o bate-papo. Entretanto, antes da mesa, assistimos aos vídeos "Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser", "Carlos Nader" e "Concepção".
No vídeo "Carlos Nader", do qual participo, digo algumas coisas sobre a questão da subjetividade, a respeito da qual ele me pedira que falasse. Exatamente por ter aparecido nesse vídeo, porém, eu não havia conseguido apreciá-lo serenamente na época em que ficou pronto, mais de dez anos atrás.
É que, no filme, minha fala é improvisada. Ora, minhas falas improvisadas são, para usar a expressão de Homero, "palavras aladas", não porque sejam excelsas, mas porque merecem rapidamente voar para o passado e serem esquecidas. Repletas de anacolutos, repetições e imprecisões, não passam de rascunhos do que um dia eu talvez escreva, ou de arremedos do que um dia já escrevi. Além disso, desconfio que eu também, como o poeta Henri Michaux, tornei-me escritor "para revelar uma pessoa de cuja existência ninguém suspeitaria ao olhar para mim". Mas volta e meia um amigo me pede -por razões que me são absolutamente ininteligíveis- que faça uma ponta num filme seu e, como nesse caso, acabo cedendo.
O fato é que, não tendo conseguido ver direito o "Carlos Nader" dez anos atrás, na época do seu lançamento, vi-o quarta-feira passada como se o estivesse a ver pela primeira vez. Depois de tanto tempo, já sou quase outra pessoa. Pela primeira vez, apreciei-o como merece ser apreciado: como obra de arte. E ele, como os outros dois que passaram na mesma noite, é belíssimo.
Resultado: fiquei tão emocionado que, na mesa, esqueci o que havia pretendido dizer e falei apenas sobre o que tinha acabado de sentir. E o que me ocorreu foi que essas obras, que se apresentam como documentários, devem ser vistas -lidas- como poemas. Eles não se restringem a documentar pessoas e fatos, mas, através do estabelecimento de um certo modo de olhar e de uma certa sintaxe espaço-temporal produzida pela montagem, revelam-nos, à maneira de poemas verbais, um novo mundo, a sair do já conhecido. Caetano, a quem tampouco havia escapado a natureza poética desses vídeos, explicou brilhantemente de que modos concretos a sintaxe espaço-temporal a que me refiro é análoga a recursos da poesia verbal como ritmos, rimas etc.
"Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser" fala de um homem cuja patetice nunca me interessara muito. O vídeo, porém, não só mostra na figura patética desse homem uma complexidade maior e mais interessante do que imaginávamos, mas, através do páthos que nele descobre, solicita-nos a pensar mais profundamente sobre os aspectos cômicos e trágicos das relações entre a busca do reconhecimento, a fama e o anonimato no mundo em que vivemos.
Em "Concepção", repete-se de vez em quando, por escrito, um trocadilho com as palavras "estranho" e "entranho". Esse jogo verbal é visualmente traduzido por uma cena que consiste numa endoscopia do próprio Carlos Nader: e quanto mais nele nos entranhamos, mais nos distanciamos dele, que mais estranho nos parece. É claro que exibir o lado de dentro de alguma coisa é fazer dela algo da mesma ordem dos objetos que se encontram do lado de fora. Nesse sentido, a endoscopia transforma o interior em exterior. E estranhamos as entranhas assim exteriorizadas.
Por outro lado, entranhamos, por assim dizer, os estranhos, como o beijoqueiro, pois, ao mesmo tempo em que percebemos sua verdadeira estranheza, criamos alguma empatia com eles, quando nos são exibidos em todas as suas verdadeiras dimensões, inclusive profundidade ou interioridade.
O vídeo "Carlos Nader" me lembrou os versos de Fernando Pessoa que dizem: "Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o quem eu me suponho / Corre um rio sem fim". Logo no início, encarando a câmera, o diretor afirma que vai confessar um grande segredo. Quando começa a contá-lo, não se ouve o que diz. O segredo não pode ser dito em linguagem prosaica. O vídeo prossegue. O segredo está no mundo. O vídeo é a prova.
Antonio Cícero, poeta!
ResponderExcluirHoje eu vi/ouvi vc dizendo um
poema seu. E era tão lindo tudo,
a poesia, você, suas palavras e o modo de dizê-las e os gestos ou a
ausência deles, que saí encantada!
Eis que você estava na Estação
Botafogo, em Palavra En-cantada!
Gostei desse "estranho" e "entranho".
Se até quando me 'entranho' dentro
de mim mesma, me estranho...
Mas esse trazer o lado de dentro
para fora, faz com que possamos olhar de diversas maneiras e de vários ângulos...
Te abraço!
Obrigado, Jac. Fico feliz de você ter gostado.
ResponderExcluirUm beijo.
Querido Cicero,
ResponderExcluirque lindo relato. Infelizmente, ainda não tive a oportunidade de assistir aos vídeos do Carlos Nader - até estou ansioso para saber se "Pan Cinema Permanente" será lançado em DVD, porque aqui não foi exibido - mas fiquei tocado por sua descrição e gostaria de ter presenciado esse belo momento entre você, o autor, Carlos Adriano e Caetano.
Fica um beijo de saudade.
pôxa,
ResponderExcluirque bacana o comentário da jac!
estava com a mesma coisa na cabeça: lendo o seu artigo, sobre "vídeos poéticos", sobre como a arte do cinema e a da poesia podem encontrar-se, lembrei-me imediatamente do "palavra (en) cantada", documentário que fecha com TUDO o que você coloca em seu texto. fiquei tão apaixonado por esse vídeo, tamanha poesia em tela, que assisti a ele três vezes seguidamente (rs)!
não vi nenhum dos filmes do carlos nader citados no seu artigo, mas os títulos já foram devidamente anotados. vou procurá-los.
tudo lindo, poeta!
como sempre, arrebentando!
beijo grande e terno.
Grande Cicero,
ResponderExcluirÓtimo ensaio! Queria poder ter acesso a esses vídeos!!! Como faço???
"ÍRIS" (PARA ALISSON)
Teu flerte inflexível
Flecha-me: a razão
Resiste, em silêncio,
À atração, mas não
Crer ser impossível
Esse grande amor
Pulsar mais além
Do meu coração.
Feliz, fecho os olhos:
Enxergo-te agora,
Abrindo, pra mim,
Janelas e portas
Poéticas, transas
Musicais, as frestas
Dos teus sentimentos,
Do que se passou
Entre nós. Ninguém
Jamais calha assim!
Abraço forte!
Adriano Nunes.
Adriano,
ResponderExcluirfrancamente, não sei. Vou perguntar ao Carlos Nader se há alguma coisa na Internet.
Abraço
Antonio,
ResponderExcluirIncrivelmente poético e trabalhado o seu ensaio. Encantou-me a precisão das palavras postas nas frases como se fossem prova/prosa poética: mais que visual! Parabéns!
***UMA ASA*** (PARA ANTONIO CICERO)
Uma asa de cera eu tenho para ser o Ícaro da minha Mitologia da minha ilha grega uma asa
Uma para ser derretida ali no azul do céu para ser queimada pelo Sol do meu ser descomedido
Para ver do alto o labirinto que criei em mim para ver o mar e no ar me encantar
Com o brilho dessa estrela e ferir o meu pai com o meu amor por horizontes porque nasci
De hoje em diante e não sei o que me finda ou me faz bem uma asa amputada
Sem vôos sem abdução sem envergadura como se pousar não fosse preciso não fosse clichê
Como se voar fosse correr todos os riscos uma asa que me leve ainda mais para além
De tudo uma José graúna Alencar porque quero uma asantonio Calcanhottoda transatlântica
Um Pégasus um passo aéreo para o infinito colossal do âmago do bucólico bule da asa delta
Do Corcovado onde nunca estive e sonhando sorvido a aterrissagem suave secreta rasante.
Beijos,
Cecile.
Cicero,
ResponderExcluirOnde se lê em meu poema CRER leia-se CRÊ!
Grato,
Adriano Nunes.
adriano,
ResponderExcluireu também tentatei obter os filmes. se não for através de locadora, se for de uma maneira que me permita enviá-los a você, tenha certeza de que eles lhe chegarão. ;-)
beijo grande!
cicero,
ResponderExcluiresse texto lindo responde a uma pergunta minha (antiga) - obrigada!
e, claro, tb deixa muita vontade de ver (ler) os poemas de nader... na internet só encontrei o trailer do "pan-cinema permanente" (http://www.youtube.com/watch?v=_Lc1z2g66As). por isso, junto o meu aos restantes pedidos: se souberes onde/como se poderão obter cópias integrais dos filmes, pr fvr, diz!
obgd e abraço gd,
filipa.
Boa noite !
ResponderExcluirCícero , tenho no meu arquivo do youtube dois vídeos. Um vídeo do Trailer Pan-Cinema Permanente sob a direção do Carlos Nader e é sobre o Wally Salomão . O segundo vídeo é do V Panorama Internacional Coisa de Cinema , onde Carlos Nader e Daniel Caetano falam sobre obras que resistem a uma classificação ...
http://www.youtube.com/watch?v=_Lc1z2g66As
http://www.youtube.com/watch?v=j-SzVQ_--6U
Vou ver se tenho mais algum arquivo , caso eu tenha envio.
Abraço , Patrícia.
Maravilha, Patrícia,
ResponderExcluirmuito obrigado!
Beijo
Ovídeo:
ResponderExcluir"video
meliora
proboque
deteriora
sequor".
Estranhas
Entranhas.
***
Nota: Vejo e aprovo o melhor; sigo o pior. As minhas entranhas são estranhas à minha consciência. Toda familiaridade é uma violência.
***
Tomas Baraldi