22.2.09

Zizek, Fukuyama e o "fim da história"

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 21 de fevereiro:


Zizek, Fukuyama e o "fim da história"


"É FÁCIL zombar da ideia do ‘fim da história’ de Francis Fukuyama", diz Slavoj Zizek, "mas hoje a maioria é fukuyamista: o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula finalmente encontrada da melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná-la mais justa, tolerante etc.". À primeira vista, Zizek pretende, ao contrário da "maioria" que despreza, ser antifukuyamista. Será?

Uma semelhança óbvia entre eles é que ambos são hegelianos ou pretendem sê-lo. Assim, ninguém ignora que a própria tese do fim da história, de Fukuyama, origina-se no pensamento de Hegel. Quanto a Zizek, ele mesmo declarou, em entrevista recente, ser "profundamente hegeliano". Mas há uma ligação ainda mais profunda entre o pensamento de Zizek e o de Fukuyama. É que ambos se entediam com a época em que vivemos.

Fukuyama pensa, como diz com inconfundível sotaque hegeliano, que não há mais lugar para "a luta pelo reconhecimento, a disposição de arriscar a vida por um fim puramente abstrato, a luta ideológica mundial, que havia suscitado audácia, coragem, imaginação e idealismo". Comentando que, além de sentir em si próprio "poderosa nostalgia pelo tempo em que a história existia", percebe esse mesmo sentimento nos outros, arremata: "Talvez a própria perspectiva de séculos de tédio ao fim da história servirá para fazer a história recomeçar".

Observo, en passant, que, assim como não entendo que haja quem precise acreditar no sobrenatural para não achar a vida tediosa, tampouco entendo que haja quem, para o mesmo fim, precise acreditar na História (com agá maiúsculo). Então tais pessoas não se admiram com o mistério já da própria existência, do próprio ser? Não se espantam com o excesso de terror e de esplendor a que estão expostos pelo mero fato de existirem? Ou o percebem e renegam, ocultando-o por trás da cortina do tédio? E será que não sabem que a noção de história está longe de ser universal? A maior parte das culturas jamais produziu tal noção. Devemos supor que quase toda a humanidade sempre se tenha sentido brutalmente entediada com a vida?

Pois bem, Zizek, ostentando tédio, manifesta nos seus textos o desejo de fazer a história "recomeçar". Julgando que a lógica interna do capitalismo não levará automaticamente à sua própria superação, ele crê que, de certo modo, "Fukuyama ESTAVA certo, o capitalismo global É o ‘fim da história’”, de modo que teme que, "no interior da nossa clausura tardo-capitalista do fim da história", já não sejamos capazes de experimentar o "impacto assustador" de uma "abertura histórica autêntica".

De que maneira Zizek, que despreza a "democracia liberal global", cujo verdadeiro conteúdo lhe parece ser, como para Foucault, a "administração biopolítica da vida", imagina que seja possível "fazer a história começar de novo"?

A resposta é clara: por meio da pura vontade "revolucionária". Trata-se da apologia do voluntarismo, da violência e do terror. Segundo ele, a incapacidade de aceitar a violência e de suspender a ética constituem limitações da posição liberal. São esses os limites que quer superar, para recomeçar a história.

Não admira, portanto, que Zizek chame os direitos humanos de "obscenos" ou que faça a apologia de Robespierre, Lênin, Stálin e Mao. Isso mostra porém que, no fundo, a "abertura histórica autêntica" que busca não passa da lamentável -e reacionária- tentativa não só de reabilitar, mas de tornar paradigmáticas algumas das mais abomináveis experiências políticas dos tempos modernos.

Ora, é em parte como repúdio ao horror dessas experiências que hoje se dá o reconhecimento crescente do caráter universal dos direitos humanos; e é a partir desse reconhecimento que todo ser humano é capaz de se sentir autorizado a criticar qualquer manifestação de barbárie, quer esta se manifeste na Coreia do Norte, no Irã ou nos Estados Unidos. O verdadeiro progresso jamais poderia estar em ignorar ou limitar esses direitos, mas sim em reconhecer que eles incluem, como quer Amartya Sen, direitos não apenas políticos, mas também direitos à segurança social, ao trabalho, à educação, à proteção contra o desemprego, à sindicalização e mesmo a uma remuneração justa e favorável.

Só mesmo uma espantosa cegueira ideológica pode levar Zizek a considerar enclausuradas as sociedades em que tem lugar a luta pelo reconhecimento e pela aplicação de tais direitos; e só a mesma razão pode levá-lo a considerar aistórico um mundo em incessante e evidente transformação, como este em que vivemos.

16 comentários:

  1. não será Zizek ou qualquer outro oráculo que nos ensinará o caminho da história, nem que ele fosse cego. quem sabe um poeta possa nos ajudar a criar esse caminho, instigando a reflexão e o acontecimento.

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  2. Caro Cicero,
    Somente a lucidez, como a de textos como o seu, para desvelar a sordidez dos nostálgicos de terrorismos revolucionários. Não há tédio para quem trilha os caminhos da afirmação da vida, distante dos mistificadores. Assim também pensava nosso saudoso e também lúcido Milton Santos, que ao final de seu texto,"O recomeço da história", publicado na Folha de São Paulo(09/01/2000)disse:"As condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação, mas o seu destino vai depender de como serão aproveitadas pela política. O que talvez seja irreversível são as técnicas, porque elas aderem ao território e ao cotidiano. Mas a globalização atual não é irreversível. Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta, pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente humana, finalmente, está começando."
    Abraço fraterno.
    Mariano

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  3. Prezado Antônio Cícero,

    Sou um leitor de seu blog, de suas poesias e de seus livros. Acabo de ler o que o senhor escreveu sobre Slavoj Zizek. De fato, ele se considera um intelectual hegeliano, mas sem o Absoluto em direção ao qual o movimento histórico se encaminharia para a sua supressão. É por esta razão que, quando lemos o que Zizek diz acerca de Fukuyama, notamos logo o seu distanciamento irônico. Zizek não acha que a História acabou e que por isso vivemos no tédio, mas que hoje se vive ‘como se’ ela tivesse acabado, ‘como se’ tivesse chegado ao seu limite e desenvolvimento máximos. É precisamente nesse ‘como se’ que consiste o mecanismo ideológico. Isto é, para ele (da mesma forma como para Althusser) ideologia não passa pela crença íntima, subjetiva do indivíduo, mas pela prática de cada um na sustentação do Outro. Portanto, o que ele quer dizer é que, hoje, o capitalismo liberal democrático é vivido como sendo a única maneira possível em relação a qualquer outra alternativa. É nesse ponto que ele se utiliza da ética kantiana, cuja novidade é exatamente não se pautar pelo conteúdo (noções de bem e mal), mas pela forma (o Ato). Em suma, o que ele pretende resgatar, na contramão das filosofias pós-modernas, é o lugar do sujeito, única instância verdadeiramente capaz de intervir no fluxo dos acontecimentos. A noção de Fim da História é uma noção ideológica, pois esse sujeito que Kant pôs em evidência parece ficar obscurecido. Isso é hoje bastante evidente, por exemplo, nos conselhos que as famílias de classe média dão aos seus filhos, de que é preciso se adaptar à realidade (em lugar de transformá-la), e na televisão. Parece estar presente nestes discursos uma concepção de uma realidade dura, fixa, insuperável, não modificável por ninguém (ontologia claustrofóbica). Mas a principal lição de toda sua obra está, acho eu, na seguinte máxima: o Outro não existe, só não sabe disso (Outro, aqui, sendo entendido como a realidade histórica atual). Um segundo ponto que eu gostaria de comentar é que Zizek de forma alguma é um nostálgico. A referência que ele faz a Lênin em seu livro “Às portas da Revolução” não é como um elogio endereçado ao líder soviético, mas como valorização de sua atitude no interior de um mundo tomado como dado, em direção ao qual qualquer tentativa de romper soava como loucura. Zizek, na valorização do Ato como um meio político, não faz apelo nem a violência, muito menos a um passado que gostaria de retornasse. Assumir o lugar de sujeito por meio do Ato é assumir a abertura da história e negar que esta tenha chegado ao seu termo. Ser livre e tomar consciência de que a realidade é sustentada pelo nosso consentimento e, em conseqüência, sentir capaz transformá-la. Isso deixa bem claro que o que ele entende por liberdade não é o mesmo que o capitalismo liberal democrático (“livre iniciativa”, “direito ao voto” etc. seriam formas aparentes de liberdades). Ser livre é assumir o lugar de sujeito. Terceiro ponto: quando você diz que outras culturas não possuem a noção de história, isso certamente pelo fato de não serem sociedades históricas mas, sim, sociedades míticas. Lembro de dois excelentes trabalhos: um de Pierre Clastres, Sociedade contra o Estado, e o outro de Mircea Eliade, O sagrado e o Profano. Sociedades míticas são sociedades sem história, onde as contradições possuem explicação divina. Nas sociedades históricas, ao contrário, as contradições não conseguem ser explicadas, são o que se pode chamar de experiências traumáticas, sendo por isso mesmo os limites das explicações, aquilo em relação a que não há palavra que suture.

    Um grande abraço,

    Bruno Holmes Chads [bhchads@hotmail.com]

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  4. Oi, Antônio.
    Não por acaso, após uma semana de intensa reflexão sobre o sentido de nossa história (individual e coletiva), deparei com este artigo, escrito, como sempre por você, de modo claro e intenso.

    Estou impregnado de Espinosa. Sou absolutamente fascinado por ele, principalmente por ele não conceber quaisquer instâncias transcendentes ou transcendentais para a existência da Natureza e do homem.
    Sinto-me, no entanto, angustiadíssimo com os processos que ora passamos, em nível global, e desentendo tanta coisa que ora parece que meu esforço afetivo e intelectual não estão produzindo em mim a visão, e digo visão num sentido amplo, do campo intensivo do qual fazemos parte.

    Seria como buscasse, ainda, uma explicação totalizante, à maneira caretesiana, por assim ter sido educado, mas já soubesse, de antemão, da irrelevância de tal explicação, se a houvesse, por trazer em meu íntimo um princípio novo, eminentemente afetivo, no sentido espinosano, ou seja, de que somos, desde o nível subjetivo até o histórico-objetivo, compostos a partir e através das experiências que nos toque o mais profundamente, e somente assim seríamos. Não sei se bem me explico, mas não consigo, ainda, verbalizar este sentir o mundo ao modo puramente conceitual. Creio que por ser poeta (como eu), entenderá o que me angustia.

    Existe um algo, indeterminado (como já bem dizia Aristóteles), uma espécie de ciência, de saber, que me foge cada vez que penso dele me aproximar. Seria (imageticamente), o nexo-primeiro e fundamental, o fio da meada, que uma vez desenrolado, poria as coisas em seu lugar, transmitindo, espontaneamente, uma inteligibilidade nova que dissesse respeito, dentre outras coisas, ao sentido da história. Não consigo deixar de pensar em alguma relação com a Beatitude espinosana e o Aleph de Borges...

    Gostaria muito, se te fosse possível, que me desse uma palavra sobre isso. Tento formular a questão, mas está difícil, vamos ver se consigo: "O fim da história não seria o ato de iludirmos um desejo arraigado em nosso inconsciente de ver desvanecida a considerada trágica realidade da história não possuir fim algum?" As implicações teológicas e políticas de destituir a história de sua finalidade já para Espinosa, causou-lhe o absoluto degredo. Por que temos de co-responder a uma concepção limitadora e inconsequente como a visão judaico-cristã, ou a hegeliana, se bastaria voltar nossa atenção ao mais evidentes de nossa experiência? bastaria ver uma flor morrer para saber, intuitivamente, que sua existência não pôde ter tido um fim transcendente! E dos humanos, que dizer? Somos mais ou menos especiais que uma flor, ou um inseto?
    Às vezes fico a pensar que nossa presunção jamais nos permitirá enxergar o vero das coisas...

    abraços,
    desculpe pela extensão da mensagem, mas preciso de ajuda para entender algumas coisas, e confio tanto em você (desde o nosso encontro no seminário Mutações), que quero mesmo saber o que pensa a respeito. Espero não ter sido muito confuso.

    abraços.
    evandro.

    http://eloarte.blogspot.com
    http://doxauno.blogspot.com

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  5. Achei bem fraca a crítica ao Zizek. Sobre o que ele diz de que todos zombam da tese de Fukuyama, acerca do fim da história, mas que todos na prática agreditam nela, penso que ele ´não necessariamente se exclui do destinatário dessa provocação; ela vale, em primeiro lugar, para ele também, que a todo momento está questionando o Fukuyama.

    A frase importante que o Zizek disse na entrevista do Roda Viva, que é a frase que eu gostaria de ver Antônio Cícero comentar, refere-se mais ou menos à seguinte: "(...) começa-se defendendo o liberalismo, a democracia, etc.; no fim das contas, fazem guerras, passam a praticar a tortura, etc., para poderem efetivá-la".

    Pelo que entendi da tese do Zizek, a questão importante para ele é sobre o que existe de inconsistente no projeto liberal-democrático, no capitalismo globalizado, etc. Do mesmo modo, é o que existe de contraditório, de inconsistente e de imprevisível na aplicação do projeto liberal-democrático que torna impossível falar em fim da história.

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  6. ANTÔNIO CÍCERO DIZ:

    ""Então tais pessoas não se admiram com o mistério já da própria existência, do próprio ser? Não se espantam com o excesso de terror e de esplendor a que estão expostos pelo mero fato de existirem? Ou o percebem e renegam, ocultando-o por trás da cortina do tédio?""

    PLATÃO RESPONDE:

    Sempre que uma pessoa começa a filosofar sobre "o mistério da própria existência", todos a sua volta precipitam-se num bocejo irresistível. Não existe nada mais entediante, nada mais alheio aos problemas reais da vida, do que indagar sobre esse tipo de assunto. Honestamente, acredito que Zizek esteja incorreto e equivocado a respeito de muitas coisas que tenho lido dele. Mas acho que uma qualidade que ele possui em alguns textos é justamente apresentar um pensamento nada entendiante. Não há nada mais interessante, mais estimulante para o torpor intelectual comum, do que pensar as teses clássicas da filosofia à luz dos acontecimentos presentes.

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  7. Caro Bruno,

    vou comentar cada uma das suas críticas. As suas proposições estão em itálico.


    Sou um leitor de seu blog, de suas poesias e de seus livros. Acabo de ler o que o senhor escreveu sobre Slavoj Zizek. De fato, ele se considera um intelectual hegeliano, mas sem o Absoluto em direção ao qual o movimento histórico se encaminharia para a sua supressão.

    A presença ou ausência do Absoluto não faz diferença para o meu argumento. Mas observo aqui que Zizek simplesmente absolutiza a ação.

    É por esta razão que, quando lemos o que Zizek diz acerca de Fukuyama, notamos logo o seu distanciamento irônico.

    A afetação de ironia manifesta uma vontade de se distanciar/distinguir desse outro hegeliano, que é Fukuyama. É por trás dessa vontade ostensiva que percebo a identidade de que falo em meu artigo.

    Zizek não acha que a História acabou e que por isso vivemos no tédio, mas que hoje se vive ‘como se’ ela tivesse acabado, ‘como se’ tivesse chegado ao seu limite e desenvolvimento máximos.

    Não penso que Zizek diga ou ache que a história acabou. Estou interessado no sentido político objetivo do seu discurso. Para Fukuyama, a história acabou, mas talvez o tédio acabe por levar a humanidade a recomeçá-la; para Zizek, a história se interrompeu, e é como se ela tivesse acabado, mas talvez uma decisão política possa recomeçá-la. O que eu quis mostrar é que, no fundo, há mais semelhança do que diferença entre essas duas concepções.

    É precisamente nesse ‘como se’ que consiste o mecanismo ideológico. Isto é, para ele (da mesma forma como para Althusser) ideologia não passa pela crença íntima, subjetiva do indivíduo, mas pela prática de cada um na sustentação do Outro. Portanto, o que ele quer dizer é que, hoje, o capitalismo liberal democrático é vivido como sendo a única maneira possível em relação a qualquer outra alternativa.

    Considere agora o mecanismo ideológico do pensamento de Zizek. Faz parte desse mecanismo confundir capitalismo e democracia liberal.

    Começo por esta última. Ela consiste no Estado de direito que garanta a sociedade aberta, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. Como tudo isso tudo está longe de existir em toda parte ou mesmo de estar plenamente realizado em qualquer parte do mundo, aqueles que defendem a democracia liberal neste sentido (e me incluo nesse grupo) estão longe de acreditar que a história terminou. É possível demonstrar analiticamente que não há racionalidade política plena sem tais propriedades da democracia liberal. Escuso-me de efetuar essa demonstração aqui, não só porque não é o lugar apropriado como porque considero já tê-lo feito no quinto capítulo do meu livro “O mundo desde o fim”, ao qual remeto os interessados nesse assunto. Zizek, que conhece Kant, sabe que não há racionalidade plena fora dessas propriedades. É exatamente por isso que apela ao voluntarismo, isto é, em última análise, ao irracionalismo à la Foucault.

    Já “capitalismo” consiste numa noção-valise. Não é possível defendê-lo incondicionalmente, como à democracia liberal (no sentido indicado). Como considerar a mesma coisa o capitalismo como se dá na Suécia, no Brasil, na Índia e na Rússia de hoje? Que ele muda incessantemente mostra-o a diferença entre o capitalismo inglês do século XIX e o “socialista” de meados do século XX. Ninguém ignora que a presente crise econômica já está, novamente, mudando o capitalismo mundial. Em suma, também o capitalismo está em transformação. A história não se interrompeu. É por isso que digo que Zizek é vítima de uma cegueira ideológica, ao dizer que ela foi interrompida.

    Além disso, ao confundir o capitalismo com a democracia liberal (no sentido indicado), Zizek se permite relativizar esta última: o que, de novo, é inaceitável.

    É nesse ponto que ele se utiliza da ética kantiana, cuja novidade é exatamente não se pautar pelo conteúdo (noções de bem e mal), mas pela forma (o Ato).

    Francamente, não se pode seriamente reportar a Kant alguém que diz que diz (em “A obscenidade dos direitos humanos”) que a incapacidade de suspender a ética constitui uma limitação da posição liberal.

    Em suma, o que ele pretende resgatar, na contramão das filosofias pós-modernas, é o lugar do sujeito, única instância verdadeiramente capaz de intervir no fluxo dos acontecimentos.

    O "sujeito" dele nada tem a ver com o sujeito transcendental de Kant, que é o sujeito da ética. Para Zizek, trata-se do mero suporte do voluntarismo, isto é, do irracionalismo. Não é à toa que ele defende a posição execrável que Foucault tomou, ao apoiar a teocracia iraniana.

    A noção de Fim da História é uma noção ideológica, pois esse sujeito que Kant pôs em evidência parece ficar obscurecido.

    Não se deve invocar Kant contra a noção de fim da História, pois ele, na verdade, esperava que a história caminhasse para o seu fim.

    Isso é hoje bastante evidente, por exemplo, nos conselhos que as famílias de classe média dão aos seus filhos, de que é preciso se adaptar à realidade (em lugar de transformá-la), e na televisão. Parece estar presente nestes discursos uma concepção de uma realidade dura, fixa, insuperável, não modificável por ninguém (ontologia claustrofóbica).

    Desde quando as famílias, seja de que época for, aconselham a seus filhos mudar a realidade? Na verdade, acho que tal coisa só pode ser concebível – ainda que muito pouco realizada – na nossa época. Nas épocas premodernas, isso é inconcebível.

    Mas a principal lição de toda sua obra está, acho eu, na seguinte máxima: o Outro não existe, só não sabe disso (Outro, aqui, sendo entendido como a realidade histórica atual).

    Eis outra evidência do voluntarismo irracionalista de Zizek.

    Um segundo ponto que eu gostaria de comentar é que Zizek de forma alguma é um nostálgico. A referência que ele faz a Lênin em seu livro “Às portas da Revolução” não é como um elogio endereçado ao líder soviético, mas como valorização de sua atitude no interior de um mundo tomado como dado, em direção ao qual qualquer tentativa de romper soava como loucura.

    O mundo moderno esteve o tempo todo em transformação. É a denegação disso que é absurda em Zizek, e serve para justificar o voluntarismo irracionalista, como digo em meu artigo. O elogio a Lenin é, de fato, o elogio do voluntarismo.

    Zizek, na valorização do Ato como um meio político, não faz apelo nem a violência,

    Desculpe, mas aqui você está errado. Ele defende expressamente a violência em vários textos, como, por exemplo, na introdução aos discursos de Robespierre. A “suspensão do ético”, que ele defende, está ligada expressamente à “aceitação da violência”, no artigo acima citado.

    muito menos a um passado que gostaria de retornasse.

    Não é que ele defenda o passado, mas sim que toma como paradigmáticos o terror e a violência exercidas pelos líderes voluntaristas e populistas que citei.

    Assumir o lugar de sujeito por meio do Ato é assumir a abertura da história e negar que esta tenha chegado ao seu termo. Ser livre e tomar consciência de que a realidade é sustentada pelo nosso consentimento e, em conseqüência, sentir capaz transformá-la. Isso deixa bem claro que o que ele entende por liberdade não é o mesmo que o capitalismo liberal democrático (“livre iniciativa”, “direito ao voto” etc. seriam formas aparentes de liberdades). Ser livre é assumir o lugar de sujeito.

    Observe que as liberdades de que você fala (livre iniciativa e direito ao voto) não foram nem citadas por mim acima, quando descrevi o que entendo por democracia liberal; por outro lado, você ignora todas as liberdades que citei acima. Isto é, você, como Zizek, faz uma caricatura da democracia liberal. Desse modo, fica fácil argumentar a favor do voluntarismo...

    Terceiro ponto: quando você diz que outras culturas não possuem a noção de história, isso certamente pelo fato de não serem sociedades históricas mas, sim, sociedades míticas. Lembro de dois excelentes trabalhos: um de Pierre Clastres, Sociedade contra o Estado, e o outro de Mircea Eliade, O sagrado e o Profano. Sociedades míticas são sociedades sem história, onde as contradições possuem explicação divina. Nas sociedades históricas, ao contrário, as contradições não conseguem ser explicadas, são o que se pode chamar de experiências traumáticas, sendo por isso mesmo os limites das explicações, aquilo em relação a que não há palavra que suture.

    Sabe-se hoje que isso não é bem verdadeiro, como Goody demonstra no livro que comento em http://antoniocicero.blogspot.com/search/label/Jack%20Goody. Se fosse verdadeiro, porém, ainda tornaria mais forte a minha tese de que a História com agá maiúsculo não faz falta.

    Um grande abraço

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  8. O aspecto mais relevante do pensamento de Mircea Eliade, citado por Bruno, no livro "O Sagrado e o Profano", no contexto aqui discutido, não se refere à afirmação de que "as sociedades míticas são sociedades sem história" (o próprio autor afirma que o homem religioso também vivencia um tempo profano. Negar tal fato seria um reducionismo.), mas sim à descrição de como Hegel retoma a ideologia judaico-cristã (a primeira que afirma que o tempo tem um início e terá um fim, ultrapassando o tempo cíclico das religiões arcaicas e paleorientais e as concepções de eterno retorno dos gregos e indianos)e aplica-a à história universal como um todo.
    Mircea Eliade destaca que o historicismo é um produto da decomposição do cristianismo:"ele concede uma importância decisiva ao acontecimento histórico (o que é uma ideia de origem cristã),mas ao ACONTECIMENTO HISTÓRICO COMO TAL, quer dizer, negando-lhe toda possibilidade de revelar uma intenção soteriológica,trans-histórica." (ao contrário do cristianismo, onde há a intervenção de um deus sobre Jesus Cristo, por sua vez histórico).

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  9. T´deui


    Não há remédio
    Para o tédio
    A não ser um soco
    No vazio
    Ou uma olhada pro o mar
    Seu avesso.

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  10. Platão,

    Faço questão de lhe dar ainda mais razões para bocejar. Ocorre que o filósofo costuma admirar-se ante coisas que fazem bocejar os eternos entediados. “Admiro-me imensamente com essas coisas e às vezes, quando as encaro de verdade, fico tonto”, disse Teeteto a Sócrates, em diálogo escrito pelo outro Platão. Sócrates respondeu: “É do filósofo esse sentimento, o admirar-se: pois a filosofia não tem outro começo senão esse”. E Aristóteles afirma que “por admiração os seres humanos, tanto agora quanto no passado, começaram a filosofar”. Agora e no passado: e no futuro. Mais de dois mil anos depois de Aristóteles, Heidegger ainda se admirava com o fato de haver alguma coisa, em vez de nada. Deve o filósofo hoje deixar de se admirar com isso? Por que? Porque não dá Ibope? Porque não entretém os que, com nada se admirando, se entediam com a própria vida? Posso dizer, como Goethe, que não suporto as pessoas que com nada se admiram, pois toda a minha vida sempre me admirei com tudo. Chatos são os que se chateiam com tudo.

    Você quer que eu comente a frase do Zizek. Ela sim, é chata, pois o que diz é meramente que a democracia liberal não é melhor que o totalitarismo; e que, como disfarça o seu verdadeiro caráter, ela é, no fundo, ainda pior que o totalitarismo. Isso quer dizer que vale tudo para derrubá-la: inclusive a violência totalitária. É a velha e banal defesa da violência e do totalitarismo contra a “democracia burguesa”. Não merece resposta. É manifestamente falsa. O regime político brasileiro de hoje está longe de ser igual ou pior que a ditadura militar. O regime político alemão de hoje está ainda mais longe de ser igual ou pior que o de Hitler. O governo terrorista de Bush não foi a “aplicação do projeto liberal-democrático”, mas a violação da democracia liberal (no sentido em que a descrevo, no comentário ao comentário do Bruno), e foi em nome dos princípios desta que ele pôde ser criticado e, por fim, derrotado. Tudo está em transformação. Não, a história – essa sequência de calamidades, como era vista pelo anjo de Klee, segundo Benjamin – não acabou, nem vai acabar tão cedo.

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  11. Caro Antônio Cícero,

    Primeiramente, devo esclarecer que não me referia, de modo algum, ao que vc escreve, quando falei do contágio entediante de alguns assuntos. Muito pelo contrário, quando abro a Folha aos domingos, sempre procuro a sua coluna. Seria uma contradição dizer que vc me causa aborrecimento.

    Aproveitando sua resposta e suas referências a alguns filósofos, acho que a importância da filosofia para o senso comum, o efeito de admiração que ela produz, assim como do pensamento em geral, independe da área de conhecimento, está justamente em conseguir mostrar que as coisas não são o que parecem ser, que o mais evidente não corresponde à realidade mesma. Acho que não existe nada mais contrário à filosofia do que meramente reforçar aquilo que parece ser mais evidente, do que se recusar a problematizar o óbvio.

    Nesse sentido, não vejo o trabalho de Zizek como uma proposta de retornar ao totalitarismo, muito menos como uma apologia hedionda de uma violência gratuita e torpe. Penso que Zizek é um filósofo que tem bastante legitimidade para criticar a crítica comum que se faz ao totalitarismo, para criticar a forma como se percebe o socialismo real, etc., sobretudo, por ter vivido na antiga Iuguslávia, que foi um país inteiramente mergulhado em todas essas questões que ele discute. (Vale lembrar que o próprio Zizek foi atuante no movimento de independência da Eslovênia e na adoção de uma economia de mercado). Estou de acordo tbem com ele em considerar a visão que o ocidente tem sobre o antigo bloco socialista como bastante nebulosa e maniqueísta, e, portanto, ideológica.

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  12. AMADO CICERO,

    SEUS TEXTOS SÃO LUZ PURA!A CADA DIA QUE PASSA, VOCÊ ME SURPREENDE CADA VEZ MAIS! ESSA CLAREZA PERFEITA PARA FALAR, DISCORRER SOBRE QUALQUER TEMA SÓ VOCÊ POSSUI. PARABÉNS!


    ABRAÇO FORTE!
    ADRIANO NUNES.

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  13. Evandro,

    desculpe ter demorado a postar o seu comentário. É que eu estava tentando lhe dar alguma resposta, sem conseguir. A verdade é que não sei bem se entendi a sua pergunta. O que posso dizer é que não só não creio que a história ou a vida tenham fim que as transcendam como que não me faz falta alguma acreditar nisso. No poema "Sair" (em http://antoniocicero.blogspot.com/search?q=simbologia), digo que "Deus não / existe nem faz falta. Tudo é / gratuito [...]". Poderia ter dito, no lugar de "Deus", "A história". A vida basta a si mesma.

    Não creio ter respondido a sua pergunta, mas isso é o que ela me fez pensar.

    Abraço

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  14. Oi, Antônio.

    Obrigado. Acho que entendo o que quer dizer, e acho que a resposta à minha pergunta será mesmo uma conquista minha. É que o fim da história ou a trasncendência divina me parecem soar mesmo desimportantes, no entanto, não consigo deixar de pensar nas implicações "metafísicas" que essas concepções contém... por exemplo, a imortalidade da alma ou sua preexistência... problemas que também me soam estranhos e indemonstráveis, mas que zumbem em minha cabeça. Será medo da morte?

    bem, de qualquer forma,
    obrigado pela gentileza.

    abraços,
    evandro.

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  15. Cícero,
    acho que por trás de toda essa discussão há essa necessidade, como você bem colocou, de crer em algo sobrehumano (Deus, História, Fadas, Duendes...). E acho que isso decorre de uma incapacidade de viver ou de perceber o "aqui e agora".
    As pessoas não se espantam com a simplicidade exuberante, por si só, de um nascer do sol ou das infinitas redobras que um poema pode suscitar. Preferem, geralmente invocando um mal-estar com a existência, rebelar-se com o presente, destruí-lo, em prol de um "futuro mais adequado".
    Não sei quem disse uma vez (acho que décio pignatari) que ser ateu é fazer parte da minoria mais discriminada do planeta.
    O ateu , como o poeta, vive um eterno "aqui e agora", sem lugar para mistificações sobrenaturais.
    Nesse sentido, não seria todo poeta um ateu?

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  16. acho que nos garantimos nas palavras. Aceitar a realidade e vivê-la intensamente parece melhor que a fuga mística de acreditar num além qualquer. Então, melhor compreender o acaso, deixá-lo escorrer sobre nós como as gotas de Lucrécio. Mas, se formos ler com um pouco de atenção esse poeta (alguém sabe se ele se matou mesmo?) e Epicuro, veremos que o acaso (tykhé) é um encontro e, como todo encontro, precisamos poetá-lo na mente, senão, ocorre encontro nenhum. Enfim, além é aqui mesmo, mas dá trabalho.

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