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A Cabeça de Fernando Pessoa
1
Portugal,
questão que trago comigo mesmo.
Leio o poeta e aceno com a cabeça.
Devagar, para não bater nas paredes.
2
Tenho andado aqui
à escuta dos pequenos
movimentos da terra
ou das pessoas nela.
3
Não me atrevo a perguntar quem sou.
Nada me tenho a responder.
4
Pratico a ausência de alarmismos –
somos todos capazes de inventar a solidão
portátil,
boa para andar por casa.
5
Podíamos combinar um encontro
por telemóvel,
eu e o meu país refeito dos sustos
de tantos séculos.
6
Mas ele não atende.
Deixou-me aqui fechado
comigo mesmo.
7
Olha, Daisy –
escrevia ele numa carta
a anunciar a sua futura morte
para os amigos que tinha deixado
em Inglaterra.
Olha –
nada sobra de cor-de-rosa.
nem os mapas.
8
Já viste as obras de Lisboa?
E as do Porto?
Já viste as pontes para Espanha?
Acaso atendeste a chamada por satélite
que te faziam do lado de lá do Oceano?
9
É que eu nunca fui a Inglaterra.
E não, também nunca fui à Alemanha.
Nunca fui aos grandes países da civilização.
E no entanto continuo aqui, sentado junto ao cais
onde já nem barcos de pescado atracam.
10
Estou cansado, isso sim.
Cansado de todo este amor mal correspondido,
cansado de toda esta cultura que me entope
as narinas e me faz espirrar à hora marcada.
11
Porque foi tudo isto o que nos aconteceu –
Caravelas
Territórios
Ilhas
Ouro
Escravos
Filhos
Pimenta
Guerra
Revoluções
Fado
Futebol
Fátima
- uma tristeza imensa de existir.
12
Agora já não nos sobram poetas,
esta literatura é coisa de rapazes
caídos pela calçada de um bairro lisboeta
em noite de Santo António.
O resto são auto-estradas.
13
Heterónimos?
Só sei de quem os viu passar.
14
Coimbrões?
Só lhes restou o cheiro a naftalina das capas.
15
Geração de 70?
Eu nasci em mil novecentos e setenta e nove,
escapei-me, por pouco, à exclusão da universidade,
primeiro porque um governo nos limitava as vagas
depois porque aos meus pais lhes faltou o dinheiro
necessário para pagar todas as taxas de inscrição..
Não me venhas com gerações –
a verdade é que desaprendemos a espontaneidade.
16
Portugal,
questão que trago comigo mesmo.
Sardinhas, bacalhau e bitoque.
Iscas, cozido e douradas.
Futebol o ano inteiro.
Mar com Berlengas ao fundo.
Esta sensação católica de ser.
A galinha da vizinha tão melhor que a minha.
Quatro canais iguais de televisão.
17
Portugal –
entro no carro e ligo o rádio,
sigo em direcção ao mar,
estaciono.
Abro o jornal desportivo,
acaricio-o.
Sabes, Portugal,
estava bem capaz de te virar as costas,
ir cantar para outra freguesia,
sei lá,
se me pagassem melhor,
se me dessem os bons-dias na rua
sem me cuspir as costas do casaco.
Sabes,
estava bem capaz de esquecer o vinho na adega
e o Sporting,
se ao menos noutro lugar qualquer
houvesse um carro e um rádio ligado
seguindo em direcção ao mar,
se ao menos os jornais desportivos no estrangeiro
fossem tão dóceis e domingueiros como os teus.
18
Pensar em tudo isto
e uma enorme vontade
de bocejar.
19
Tantos anos de gastronomia
e tanta dor de cabeça acumulada –
eis o fim de toda a história
em poucas páginas impressa.
Tão pouca poesia, tanta pressa.
20
E dizer-te agora que para a vizinhança
vieram as braçadas do Camões
o pinhal de Leiria nas cantigas de Dom Dinis
a estricnina do Sá-Carneiro
os petardos do Castilho
as anedotas empacotadas do Bocage
o caminho para Santarém pelo Garrett
os diários incomunicáveis do Ruben A.
as pequenas carícias gregas de Sophia
os poemas do Herberto que só o Manuel Gusmão percebe
a língua afiada do Assis Pacheco
o megafone do Jorge de Sena
os óculos do Alexandre O'Neill
os espirros do Jorge de Sousa Braga
e dizer-te agora que tenho
a cabeça de Fernando Pessoa numa bandeja
e é já hora de jantar.
21
E sim, Portugal,
como sempre,
tu não precisas de fazer nada.
De: CRISTÓVÃO, Luís Filipe. A cabeça de Fernando Pessoa. Lisboa: Ardósia, 2009.
Blogue de Luís Filipe Cristóvão: www.milnove79.blogspot.com.
Ei, ei, ei, que é isso!!!
ResponderExcluirComecinho insosso e agora já estou com hipertensão...
Excelente texto.
Portugal de papel, aquele de que não se precisa de passaporte...
Por conta do Hegel, as pessoas se preocupam em entender o "princípio de não-contradição (antiphásis)" do Aristóteles, e se despreocupam de entender o que lhe é anterior, a "potência da contradição (antiphásis){Metafísica, 1050b}, numa outra tradução possível, "potência da contra-dicção", esse poema tem essa potência.
ResponderExcluirAntônio Cícero ,
ResponderExcluirGosto de ler teu blog , fico quieto como leitor sem comentar pois sinceramente nem sei como comentar de forma correta ou uma análise mais técnica . O pouco que eu escrevo no meu blog são reflexões do cotidiano.Seu espaço tá de parabéns ! K.
e qual é o endereço do blog do kamal?
ResponderExcluirExcelente esta intertextualidade poética sobre a «cabeça de Fernando Pessoa»:dado todo este amor por Pessoa, só faltava dizer como Jorge de Sousa Braga:«Portugal/ (Pessoa)/gostava de te beijar muito apaixonadamente/na boca»
ResponderExcluirDomingos da Mota
A crítica, a náusea, o cansaço ao olhar para o país, para a história das civilização e para si mesmo. Álvaro de Campos - mais do que ninguém - gostaria de ler esse poema!
ResponderExcluirAbraços.
Jefferson.
que lindo, cicero!
ResponderExcluira cabeça de fernando pessoa... são tantas as cabeças, tantos os reconhecimentos... sinto-me assim com o brasil: odeio, canso, chateio-me, por uma relação, muitas vezes, de amor mal correspondido, e embalo, amo, romantizo, por conta de tudo o que, por outro lado, me encanta, me emociona, me estimula, porque o brasil é uma questão que trago comigo mesmo, no meu jeito de ser, na minha geografia.
poema lindo lindo lindo.
e você também: lindo lindo lindo.
beijoca boa!