13.4.08

Nelson Ascher: Coluna

Coluna

Por que dar conta do recado
e terminar mais um artigo?
Prefiro olhar meu próprio umbigo
a trabalhar sem resultado

como que posto de castigo.
Mas, apesar de tão cansado
que quero só virar de lado
e dormir, mesmo assim prossigo.

Pra quê? Não faz nenhum sentido
e, não obstante todo estrago
que isso me causa, mal sou lido.

Escrevo e apago, escrevo e apago
o que não passa de um grunhido
que me vem d'alma ou do lumbago.


De: ASCHER, Nelson. Parte alguma. Poesia (1997-2004). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

11 comentários:

  1. Como um beijo sem gosto que não faz sentido.Que sentimento é esse que não passa de um grunhido?Volto cego novamente a este blog reler o mal lido.
    e deixo estes versos:


    beijo sem gosto
    Eu me vejo, eu me beijo
    Eu me quero, eu me desejo
    eu me desboto, eu me protejo
    é tão fácil te querer
    mas não consigo te dizer
    bela, eu quero viver dentro de você
    quero que entenda que tudo é pra eu tomar você pra mim
    como um poeta toma viciado sua overdose diária de versos sintéticos
    em memórias de suicídios poéticos
    nosso entardecer atômico, de onde ninguém vai levantar
    o gosto de um gemido sinfônico, quando te fizer gozar
    estou te esperando no futuro, num paraíso onde as plantas não morrem
    te amo no silêncio do escuro, como um cego
    que as cores dele fogem


    Abraço!!!

    ResponderExcluir
  2. espírito caprichoso e iluminado por horas dedicadas
    de poetas e artistas insones,
    varando madrugadas
    com o sol nascendo em meio a mil palavras em turbilhão,
    vertidas sobre o corpo de uma noite mal dormida.
    nunca me abandones.
    dou-me a ti -
    única forma de viver que quero,
    minha razão no mundo turvo dos homens sem paixão.

    ResponderExcluir
  3. cicero!

    reconheço desaires em mim que são o eco desse poema. adorei!

    abraço,filipa

    ResponderExcluir
  4. Querida Filipa,

    De fato, considero perfeito esse soneto. Há nele uma admirável correspondência entre som e sentido. O próprio título, “Coluna” já é revelador, pois tanto pode se referir ao artigo quanto ao lumbago que incomoda o poeta, sentado ao computador por muito tempo (“escrevo e apago, escrevo e apago”) para escrevê-lo. A correspondência mesma entre som e sentido ecoa outra, entre o corpo e a alma. “Prefiro olhar meu próprio umbigo”, diz um dos versos. Ora, normalmente são os militantes políticos que usam essa frase, com a qual reprocham o que consideram o “subjetivismo” dos artistas que não usam a sua arte para falar dos grandes temas sociais. Assim, “olhar o próprio umbigo”, isto é, olhar para uma parte do próprio corpo, é análogo à atividade da subjetividade, ou da alma, que se entrega aos seus próprios caprichos. Do mesmo modo, “virar de lado”, frase com que se designa a busca de uma nova posição na cama, para melhor dormir, aqui quer também dizer virar para o lado oposto ao do dever: para o sono, o sonho e o prazer. Finalmente, “grunhido” é o som ainda não articulado, ainda não humano, o resmungo que em parte vem do próprio corpo, mas se transforma nas palavras do artigo. O grunhido é, em primeiro lugar, a manifestação visceral de inconformidade com o rumo imprimido ao pensamento e à política pelo Zeitgeist, pelo o senso comum dos tempos. É por sentir o dever de criticar esse Zeitgeist que o poeta se levanta para escrever sua coluna, ainda que ela mal seja lida. E o grunhido é, em segundo lugar (do ponto de vista cronológico) o protesto contra a renúncia a líquidos prazeres e sonhos, em nome de duros e dúbios deveres .

    Beijo,
    Antonio Cicero

    ResponderExcluir
  5. "...escrevo e apago..."diz o poema belo,e vence o lumbago,e vence o lumbago...
    Ah,poetas das noites mal dormidas...beijos cariocas,poeta querido!


    A Pipa

    Poeta sofre pane
    Com o que deleta
    Dá murro em faca
    Faz a prosa alerta
    Come pra dois dias
    Quando caça o verso
    Ah,poeta...
    Põe uma roldana
    Quando nasce o dia
    Tem a conta aberta
    No bar da alegria
    Compra diamante
    Pra sofreguidão
    Poeta chama toda rosa
    De frondosa guia
    Tem boa vontade
    Uma dor tardia
    E não se conforma
    Com o mundo não...
    Ah,poeta...
    Serpentina empolga
    Sua boemia
    Uns preferem roda
    Outros calmaria
    Uma tarde cobra
    Seu olhar perplexo
    Ah,poeta...
    Dorme o ar da lua
    O sopro do universo
    Pra depois soltar
    No meio dos dispersos
    Sem cerol que doa
    A pipa da poesia...

    Nina Araújo

    ResponderExcluir
  6. Vale ainda dizer, Cicero, da ambivalência com que a própria forma é tratada, muito típica, diga-se de passagem, da poesia de Nelson Ascher. O soneto sofre uma espécie de apagamento de sua estrutura através da fluência da prosa que lhe imprimem os enjambements. No caso, esse procedimento formal parece informar o continente do próprio conteúdo que o preenche: a prosaica fatalidade da senectude e da morte.

    Abraço,
    Marcelo Diniz

    ResponderExcluir
  7. Marcelo,

    Obrigado pela excelente complementação.

    Abraço,
    Antonio Cicero

    ResponderExcluir
  8. Cicero,
    este seu post aqui é uma aula de poesia e de vida.
    Abraço forte!
    Nuno Rau.

    ResponderExcluir
  9. Obrigado, Nuno. Fico contente de você ter gostado.

    Grande abraço,
    Antonio Cicero

    ResponderExcluir
  10. Reeditando o post:
    Cicero, o comentário que fiz não foi uma crítica, apenas tentei fazer uma aproximação de imagens dos dois poemas. Vi em ambos a dor e o desgosto como pontos em comum, como pontos onde há alguma identificação entre eles.Por isso no jogo de palavras posso ter confundido a concepção do que realmente queria dizer.Que era acima de tudo um elogio.Pois estava justamente evidenciando o genial de sensações desagradáveis se pode transmitir belamente nos textos. Enfim para evitar quaisquer dúvidas volto a este blog para reescrever e para não deixar algo mal compreendido.
    O que eu queria dizer:

    Senti um amargo, como sentiria num beijo sem gosto, ou num cansaço de querer e não ir dormir.As coisas perdem ai os seus sentidos. Devemos portanto estar falando de sentimentos (como aqueles imcompreensíveis)que não passam de um grunhido. Volto como um cego ( sem certeza do que encontrará mas certo do que procura). Reler(o blog) o mal lido (Ascher) e então deixo (não mais) novos versos:

    Beijo sem gosto

    Eu me vejo, eu me beijo
    Eu me quero, eu me desejo
    eu me desboto, eu me protejo
    é tão fácil te querer
    mas não consigo te dizer
    bela, eu quero viver dentro de você
    quero que entenda que tudo é pra eu tomar você pra mim
    como um poeta toma viciado sua overdose diária de versos sintéticos
    em memórias de suicídios poéticos
    nosso entardecer atômico, de onde ninguém vai levantar
    o gosto de um gemido sinfônico, quando te fizer gozar
    estou te esperando no futuro, num paraíso onde as plantas não morrem
    te amo no silêncio do escuro, como um cego
    que as cores dele fogem

    Com muita admiração,pelos seus trabalhos e atenção pelos debates e belezas que este blog proporciona. Grande abraço. Teo.

    ResponderExcluir
  11. Teo,

    Obrigado pelo esclarecimento. De qualquer modo, o seu primeiro comentário me estimulou a dizer como é que o poema batia de outro modo em mim. Isso, por sua vez, fez você explicitar como é que ele bate em você. Acabou sendo bom.

    Abraço,
    Antonio Cicero

    ResponderExcluir