3.4.08

João Pereira Coutinho: "Ensaio sobre cegueira"

Eis um excelente artigo do João Pereira Coutinho, publicado na Ilustrada, da Folha de São Paulo, terça-feira, 1 de abril de 2008:


Ensaio sobre a cegueira

-- Cegueira mental começa quando a distinção entre civilização e barbárie deixa de fazer sentido --

EM SETEMBRO passado, o presidente do Irã visitou Nova York. Bizarro, sobretudo para quem deveria estar preso por suas exortações genocidas? Nem por isso. O momento bizarro da visita aconteceu na Universidade Columbia, uma vetusta casa por onde já passaram Lionel Trilling ou Jacques Barzun. Bons tempos, esses, em que a universidade não era uma pocilga.

Em 2007, e perante a platéia erudita do momento, Mahmoud Ahmadinejad, internacionalmente conhecido por sua sanidade mental, declarou que no Irã não havia "homossexuais". Toda a gente riu.

Toda, exceto o próprio Ahmadinejad. E com inteira razão. Não pretendo ser internado no manicômio na companhia dele. Mas sou obrigado a concordar com o presidente. Como é possível acreditar que o Irã tem "homossexuais" dentro das suas portas quando o regime tem sido exemplar a persegui-los, a torturá-los e a executá-los?

Os números não mentem: em 1979, uma data que será lembrada na história da humanidade como hoje recordamos a Revolução Russa de 1917 ou a chegada de Hitler ao poder em 1933, o aiatolá Khomeini iniciava a sua "revolução islâmica". E, em três décadas, o regime executava 4.000 "homossexuais", aplicando a rigorosa (mas altamente discriminatória) lei penal iraniana sobre a matéria.

Digo rigorosa mas discriminatória porque a lei penal concede às donzelas uma benevolência que está interdita aos machos: a sodomia é punida com a morte; mas o mesmo não acontece com a homossexualidade feminina. As senhoras recebem "apenas" cem açoites nas três primeiras infrações lésbicas.

Só à quarta vez conhecem o fatal destino dos homens. Quem disse que não existem vantagens em pertencer ao "sexo fraco"?

Aliás, as vantagens não se ficam pelo chicote. E não será exagero afirmar que, no Irã, só morre por homossexualismo quem quer.

Li em tempos, num artigo da jornalista portuguesa Alexandra Prado Coelho, que o regime iraniano pode condenar os homossexuais à morte. Mas o regime não se opõe a operações cirúrgicas para mudança de sexo. Pelo contrário: o financiamento estatal é bastante generoso para esse fim.

De acordo com os números oficiais, existem entre 15 a 20 mil transexuais no Irã. Mas os números "clandestinos" multiplicam a cifra por dez, o que transforma o Irã no segundo país do mundo, logo a seguir à Tailândia, com o maior número de homossexuais que optaram pelo bisturi para jogarem por outro time. O presidente Ahmadinejad sabia do que falava. Homossexuais? É tão difícil encontrar um no Irã como encontrar o saci a pular no mato brasileiro.

Mas alguns ainda pulam. Para sermos mais exatos, alguns pulam fora e procuram salvação no corrupto mundo ocidental.

Pior: de acordo com as notícias dos últimos dias, existem casos em que "homossexuais" islâmicos abandonam a riqueza e a tolerância das suas culturas locais, entregando-se de alma e coração a potências opressores e imperialistas. Como a Grã-Bretanha. Como Israel.

Na Grã-Bretanha, o governo de Gordon Brown, depois de uma ridícula hesitação diplomática, decidiu conceder asilo político a um homossexual iraniano de 19 anos.
Parece que o rapaz, de seu nome Mehdi Kazemi, depois de assistir à execução do namorado em Teerã, achou por bem não ficar mais tempo no país. Inexplicavelmente, há gente que não gosta de balas. Ou de bisturis.

Mas o caso da semana veio de Israel, essa entidade maligna que continua a envenenar o Oriente Médio: em decisão rara, Tel Aviv concedeu visto de permanência para palestino homossexual que vivia na Cisjordânia e se preparava para ser morto pelos vizinhos. Segundo parece, os palestinos não se limitam a jogar pedras contra os judeus; também praticam esse desporto contra os seus próprios homossexuais.

Exatamente como o leitor médio da imprensa ocidental média pratica o seu desporto favorito: abominar as democracias liberais onde vive pelo aplauso irracional a culturas retrógradas e até sinistras. As mesmas culturas que o condenariam facilmente à morte caso o leitor tivesse uma orientação sexual, ou religiosa, ou política, que os fanáticos considerassem intolerável.

A cegueira física é um infortúnio, sem dúvida. Mas a cegueira mental, sobretudo quando voluntária, não deixa de ser um infortúnio maior. Ela começa no dia em que a distinção entre civilização e barbárie deixa de fazer sentido.

5 comentários:

  1. Caro Antonio,

    Parabéns por postar artigo tão relevante! Acho que devemos ter o cuidado de não generalizar e transformar todo país onde a religião islamica é majoritária em potencial inimigo. Fora isso, são notórios e revoltantes os diversos crimes impetrados por teocracias e ditaduras contra individuos que não acatem suas ideologias.
    Não apenas no oriente, mas, em menor escala, muitos paises do ocidente ainda apresentam resquicios teocráticos. Os homossexuais, em especial, sofrem sérios ataques à sua liberdade por todo o mundo.

    Certa vez conversava com amigas sobre o Chile, e elas me contaram que gostariam de conhece-lo, mas não se sentiriam à vontade visitando um pais que ainda inclui em seu código penal leis homofóbicas, ainda que raramente aplicadas na prática.

    Felizmente, a legislação de vários países tem avançando - embora ainda lentamente - na garantia dos direitos humanos a todos, e no combate às discriminações.
    Só espero que os lideres mundiais compreendam que mísseis não vencem preconceitos. Senão teremos que conviver ainda com muitas gerações de ditadores genocidas e senhores da guerra sádicos.

    um abraço,
    lucas

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  2. Antonio,

    Encontrei o seguinte depoimento do fundador do IRQO - Iranian Queer Organization.

    http://lifeonq.com/2007/10/26/on-being-queer-and-iranian-a-real-and-dangerous-existence

    Bastante interessante, detalha a que tipo de violência são submetidos os habitantes do Irã.

    abraço,
    lucas

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  3. Caro Antônio,
    É de fato exemplar como sabem utilizar o "Truque da galinha morta". Expressão utilizada pela comunidade "colorida" e título do meu blog, cuja semântica, é disfarçar,distorcer a realidade, se utilizar de mentiras, ser cara-de-pau,hipócrita, sofista. Então, homossexual não é aceito, transexual sim. Como se com a mudança de sexo o princípio da homosexualidade desaparecesse no íntimo do ser que passa pelo bisturi.
    Abs,
    Claudia Luzardo
    http://www.claudialuzardo.blogspot.com/

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  4. Íncrível, meu caro! Eu não conhecia todos esses detalhes sobre a perseguição aos homossexuais no Irã. É algo desprezível demais, um absurdo.

    Um abraço,

    Héber Sales

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  5. Sendo que o Brasil mata 200 homosexuais por ano não estamos perdendo nada.

    Nós poderiamos pedir a caridade do governo americano, para que eles defendam os nossos homosexuais, restaurando a boa e velha "democracia colonial americana" aos moldes da revolução democratica de 64.

    Não há problema eles matarem um milhão de pessoas como fizeram no Iraque, pois se defenderem a democracia e os homosexuais tudo bem.

    E espero que não percam tempo pedindo autorização na ONU para invadir o Brasil e defender os homosexuais brasileiros, pois foram indiferentes a decisão da ONU na Libia e no Iraque mesmo.

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