16.12.07

Os limites da diversidade cultural

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo, sábado, 15 de dezembro:


Os limites da diversidade cultural

A DECLARAÇÃO Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO define a cultura como "o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de conviver, os sistemas de valores, as tradições e as crenças".

Quanto a artes e letras, é claro que tudo o que a humanidade já fez constitui um patrimônio a ser preservado e disponibilizado à fruição da presente e das futuras gerações.

Quanto a modos de vida, maneiras de conviver, sistemas de valores, crenças e tradições, porém, a situação é outra. Alguns são admiráveis e devem ser preservados; outros são abomináveis -etnocêntricos, racistas, sexistas, intolerantes- e devem ser combatidos.

Apropriadamente, o artigo 4 da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, intitulado "Os Direitos Humanos, Garantias da Diversidade Cultural" afirma, com razão, que "a defesa da diversidade cultural [...] implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance".

Infelizmente, porém, desde antropólogos até obscurantistas religiosos têm, em nossos dias, invocado a ideologia do relativismo cultural para justificar todo tipo de violação dos direitos humanos. Segundo eles, tais direitos pertencem à cultura ocidental, onde surgiram, de modo que tentar exportá-los para culturas que não os reconhecem violaria o direito destas à diversidade.

Assim, foi com base no relativismo cultural que neste ano, na Alemanha, uma juíza -citando o Alcorão, que reserva ao homem a prerrogativa de castigar a esposa em certos casos- recusou-se a conceder o direito à antecipação do divórcio a uma mulher que era regularmente surrada pelo marido muçulmano. Ou seja, em nome do direito à diversidade cultural, desrespeitaram-se os direitos humanos dessa mulher.

Ora, os direitos humanos não são um produto da cultura ocidental. Na Europa, o reconhecimento deles foi uma vitória da razão -que só o mais tacanho etnocentrista classificaria de "ocidental"- exatamente sobre as tradições culturais bárbaras do Ocidente medieval.

De todo modo, a menos que seja tomada como uma aplicação particular dos direitos humanos, a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural não pode ser levada a sério. Por quê? Porque cada unidade cultural ampla contém ou é capaz de conter minorias, isto é, unidades culturais menores. A proteção da diversidade cultural falhará, a menos que proteja também o direito à diversidade de cada uma dessas unidades menores.

Pois bem, a menor unidade concebível é o indivíduo. Por exemplo, um único judeu -ou ateu, ou budista- que viva entre evangélicos constitui uma unidade cultural minoritária. Embora, portanto, a declaração em questão tenha em vista proteger a diversidade cultural de unidades culturais maiores do que a de um indivíduo, essa proteção será em última análise deficiente, a menos que se estenda ao indivíduo; e este é o sujeito dos direitos humanos. Portanto, para ser consistente, o direito à diversidade cultural tem que ser pensado como um direito humano: o direito de cada indivíduo humano à diversidade.

Esse direito me traz de volta à definição de cultura da UNESCO. Eu disse que tudo o que já se fez em matéria de artes e letras constitui um patrimônio a ser preservado e disponibilizado à apreciação da presente e das futuras gerações. No entanto, é preciso não esquecer que tudo o que já se fez, conquanto importante, é apenas um conjunto de possibilidades que se realizaram. Há, porém, infinitas outras possibilidades a se realizarem, algumas das quais só se manifestam historicamente, a partir do desenvolvimento tecnológico. O direito à diversidade cultural tem que ser, portanto, o direito à experimentação e ousadia em arte, filosofia, ciência, tecnologia etc.

E aqui penso que é preciso ir além e afirmar que o direito à diversidade cultural, estendido até o indivíduo e tendo como fundamento último e intransponível os direitos humanos, deve garantir a liberdade de experimentação também no que diz respeito a novos -para usar as palavras da mesma definição- modos de vida, maneiras de conviver, sistemas de valores e maneiras de lidar com as tradições e as crenças.

Antonio Cicero

11 comentários:

  1. Este texto é extremamente pertinente, numa época como a nossa, em que correntes religiosas se aproximam, equívocamente, do poder. Infelizmente, são justamente as correntes que mais chamam para si uma suposta "verdade", em detrimento de outras formas religiosas ou do próprio ateísmo, um direito inalienável de todo cidadão. Essas correntes, extremamente perigosas, justamente para a cultura, entram em choque com a miscigenação cultural e espiritual que sempre caracterizou a formação da sociedade brasileira, ultrapassando a cor da pele e se instaurando como um entre-cruzamento de fronteiras, que agora esses supostos arautos da evangelização tentam soerguer, na forma tosca de muralhas intransponíveis e cerceadoras.

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  2. Caro Antônio,

    Parabéns por mais esse artigo muito pertinente. É muito importante, especialmente no Brasil, contar-mos com defesas tão bem elaboradas dos direitos humanos, inclusive à diversidade cultural.

    um abraço,
    Lucas Nicolato

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  3. Eu tinha lido na Folha e adorei.
    Dificil tarefa (?) de todos nós, defender, proteger, militar, exercer a liberdade de expressão em ser sem desrespeitar o ser.

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  4. Acho um absurdo certos procedimentos que acontecem na África, por exemplo, e nenhum orgão internacional se manifesta com eficácia, como as condenações por lapidação contra algumas mulheres. É horrível e acontece.
    No Brasil, a prostituição infantil de populações nativas próximas à Amazonia e em outras regiões mais distantes corre solta e nada é feito com rigor lá pra cima. Tudo isso é muito lamentável.

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  5. cicero,

    sem tirar nem pôr, que maravilha!

    que cabeça, que entendimento de determinadas coisas, que riqueza!

    fico louco em ler o quão pertinente são as suas colocações, em perceber o quanto podem iluminar todo o resto.

    aqui, vc propõe, com o respeito à diversidade cultural, aquilo que já foi discutido neste espaço: a democracia profunda. chegar ao próprio fundo requer esse tipo de trabalho.

    respeitar as opiniões, os desejos, desde que estes estejam afins ao exercício de tal democracia, a pró-funda.

    e tal respeito, como vc mesmo escreveu, só é válido quando se olha de frente o indivíduo, quando os seus anseios, quando a sua voz é ouvida. para que o alargamento das liberdades individuais se dê, bonito, iluminado.

    num poema, afirmo categoricamente: "liberdade é poder de escolha."

    que as escolhas, então, possam ousar!

    um brinde, poeta! à sua sagacidade!

    beijão, queridão!

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  6. Paulinho querido,
    Diante de palavras tão generosas quanto as suas, não sei nem o que dizer. Vou ser simples e direto: muitíssimo obrigado, feliz Natal e tudo de bom em 2008!
    Abraço grande,
    Antonio Cicero

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  7. Caro Cicero,
    Muitíssimo obrigado por ter se dado ao trabalho de me indicar essa seqüência de textos. São excelentes, muito claros, precisos e instrutivos.
    Um abraço,
    Héber Sales

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  8. Caro Héber,

    Obrigado eu a você, pelos comentários inteligentes e estimulantes.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  9. Algumas colocações são interessantes. Outras, certamente não! Cultura, já nos avisava Roy Wagner, é uma invenção ocidental. Uma forma de classificar o outro. Que outra sociedade usa o termo cultura para classificar o "outro"?
    Diversidade cultural só serve para conhecermos nós mesmos, e percebemos quanto olhamos o "outro" com os nossos óculos...
    Mayra

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  10. Então, Mayra, explique isso à Unesco e aos antropólogos em geral, inclusive ao próprio Roy Wagner, porque eles, coitados, consideram o conceito de cultura como aquele que define a antropologia.

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  11. Com certeza Cicero! Por esse motivo faço mestrado em antropologia e coaduno com Roy Wagner na capacidade criativa daquilo que "nós" chamamos de cultura. Entretanto, moral e politicamente perigoso é falar de uma invenção sem antes concordamos com alguns preceitos ontológicos. Padeço, como muitos colegas antropólogos, do mal de falar somente entre nós mesmos. Obrigada! Mayra

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