O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo, sábado, 30 de Junho de 2007:
A razão da modernidade
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Nossa época, diz Kant, é propriamente a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se
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SÃO FREQÜENTEMENTE atribuídas à modernidade (ou à racionalidade, ou à razão, ou à "racionalidade moderna" etc.) as inúmeras atrocidades que tiveram lugar no século XX. Entre os mais importantes dos primeiros pensadores hostis à "razão moderna" encontram-se Pascal, Burke e os românticos alemães. Mais próximos de nós, os pensamentos de Nietzsche, Heidegger e dos pós-estruturalistas, por um lado, e de Max Weber e Adorno, por outro, são, provavelmente, as mais importantes matrizes contemporâneas dessa desconfiança.
Entre os contemporâneos, são muitos os que, como Zygmunt Bauman, argumentam que os genocídios e massacres do século passado resultaram das concepções modernas da sociedade. Um exemplo: o cientista político e antropólogo norte-americano James Scott afirma que grande parte das tragédias políticas do século XX "agitaram a bandeira do progresso, da emancipação e da reforma" que, segundo ele, caracterizam os tempos modernos.
Recentemente, porém, o historiador alemão Jörg Baberowski pôs esse senso comum em questão no livro Tempos Modernos? (Moderne Zeiten?. Götttingen, 2006), em que apresenta os resultados de um encontro sobre "Guerra e revolução no século XX", que teve lugar em Tübingen, em 2001.
Suas conclusões indicam que, independentemente da modernidade dos pretextos invocados para justificar a violência na União Soviética, na China ou na Alemanha nacional-socialista, a verdade é que "onde quer que a violência se autonomizou e se tornou uma estrutura dominante, os pretextos foram esquecidos. Stálin e Mao não apenas sonharam com o belo e novo mundo, eles vinham do velho mundo e agiam como se pode esperar de déspotas pré-modernos. [...] Não é acidente que o discurso moderno sobre raças e classes tenha levado ao assassinato em massa na Alemanha, na União Soviética e na China, mas não nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental".
Baberowski está sem dúvida certo quanto à pré-modernidade desses regimes ditatoriais. Entretanto, ele está errado ao qualificar de modernos os próprios pretextos por eles invocados para fazer o que fizeram. Para explicar por que penso assim, recorro a Immanuel Kant, que pode ser considerado o filósofo clássico da modernidade. "Nossa época", diz ele, na Crítica da Razão Pura, "é propriamente a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se. A religião, através da sua santidade, e a legislação, através da sua majestade, querem em comum subtrair-se a ela. Mas então suscitam uma justa suspeição contra si, e não podem aspirar ao respeito sincero que a razão só concede àquilo que consegue suportar a sua investigação livre e pública".
Retenhamos os seguintes pontos: 1) a nossa época, isto é, a modernidade, é a época da crítica 2) a crítica é uma manifestação da razão; 3) a crítica se dá o direito de investigar, de modo irrestrito e público, absolutamente tudo; 4) a crítica não respeita ou endossa coisa alguma que não se submeta ao seu escrutínio; e 5) a crítica é capaz de criticar a si própria (pois a própria "crítica da razão pura" é a crítica exercida pela razão pura à própria razão pura).
Etimologicamente, crítica quer dizer separação, distinção, escolha, seleção, distinção, juízo. É a crítica que separa, por exemplo, a esfera religiosa da esfera secular, separação que consideramos característica da modernidade.
É verdade que, além de ser crítica, a razão é também usada como um instrumento para a construção de sistemas de pensamento: de teorias científicas, tecnologias, obras de arte, conceitos filosóficos, concepções teológicas, ideologias (modernas e antimodernas) e até de religiões.
Contudo, na modernidade, essas mesmas construções da razão instrumental, como tudo o que há, também estão sujeitas a serem criticadas pela própria razão. Pois bem, na medida em que as construções da razão sejam subtraídas à crítica, esta as rejeita. É o caso das ideologias que serviram de pretexto para justificar as violências totalitárias.
Ainda mais grave e incompatível com a crítica é a constituição de impedimentos (como a censura) para o seu exercício. Ora, uma vez que qualquer totalitarismo, mesmo quando tenta justificar-se com argumentos racionalmente construídos, estabelece impedimentos para o exercício da crítica universal, irrestrita e pública -que vimos ser essencial à modernidade- todo totalitarismo é essencialmente anti-moderno.
Antonio Cicero
Prezado Antonio Cicero,
ResponderExcluirOntem li, reli e tresli o seu artigo, ao ponto de minha noiva perguntar-me, juntamente com o nosso sobrinho Gabriel, se eu iria ou não iria à locadora pegarmos alguns filmes, já que iria fechar. ´O que há de tão interessante nesse jornal?´ Quase que também ao ponto de citar-me aquela velha lalía: ´preferes o jornal à mim...`´E eu já com os ouvidos moucos pela derrota de meu timão para o nosso arquiinimigo. Mas é que perscrutava o sentido de tudo aquilo -- posto que gostei da matéria, sempre mui bem redigida... Mas, ao mesmo tempo, me perguntava: Por que poucos, dentre os poucos, e falo de intelectuais, respondem-me sobre o que digo sobre o PZ. Há invariavelmente um desdém adrede. Por quê? Por que sou periférico em todos os sentidos? Da periferia de Sampa e muito menos um scholar ou acadêmico? Por que abalo paradigmas universais e cauterizados desde os helenos? Por que digo nonsense? Mas como, se não me refutaram até hoje? Porque não há conhecedores de filosofia no Brasil? Porque preciso escrever um livro por uma grande editora... Por que preciso antes ser reconhecido lá fora para repercurtir aqui? Por que preciso alinhavar melhor os meus textos esparsos, que para mim são alvos? Porque não devemos nos precipitar no abismo todo um filosofar ou a mim mesmo e os que concordam em tese comigo? Mas vejo que deixaste um rastilho para as minha pegadas. Nesse espaço dá uma oportunidde de popularizar o que penso.
Por isso, mais uma vez, muito obrigado...
wilson luques costa
Caro Antônio,
ResponderExcluirTemos de volta a questão do "Fundamentalismo Iluminista", que, como você já mostrou, é uma concepção errônea. Parece que o que ocorreu no século XX, no que que se refere ao totalitarismo, ao contrário de ser uma crise provocada pela modernidade, foi a ascensão de ideologias que se apoderaram do vocabulário e de técnicas discursivas características da racionalidade para tentar legitimar-se, o que não significa que sejam propriamente racionais. Infelizmente parece que esse tipo de movimento não deixou de existir, como podemos ver nas atitudes de certos líderes e organizações.
Um abraço,
Lucas Nicolato
Caro Cicero,
ResponderExcluirAqui está bem clara aquela distinção que discutíamos na tua resposta ao Lucas Nicolato: entre a razão instrumental que não se submete à crítica e a que se submete.
Um abraço,
Héber Sales
Caro Héber,
ResponderExcluirÉ verdade. Os produtos da razão instrumental estão sujeitos a serem criticados pela própria razão. Não há maior sinal de irracionalidade do que blindar-se contra a crítica.
Abraço,
ACicero
Antonio Cícero,
ResponderExcluirAdoro o seu site e a forma como vc torna compreensível para os leigos a filosofia. Obrigado por dividir conosco seus pensamentos!
Tenho uma dúvida: por que quando se quer ofender alguém nos meios acadêmicos chama-se essa pessoa de "cartesiana"? Será que o pensamento de Descartes é tão ruim assim?
grato,
Edgard
Caro eddie,
ResponderExcluir"Cartesiano" adquiriu o sentido de racional e metódico, e o sentido pejorativo que pode ter é de "excessivamente racional e metódico". Entretanto, a verdade é que aquele que usa "cartesiano" pejorativamente é, na verdade, insuficientemente racional, pois não se pode ser excessivamente racional. No meu livro "O mundo desde o fim" eu defendo o ultra-cartesianismo.
Abraço,
Antonio Cicero
Prezado Cícero,
ResponderExcluirUma questão: se tudo ocorre assim, não seria uma separação meio virtual essa entre o moderno e o pré-moderno, visto que eles coexistem em nossas sociedades "modernas"? Por exemplo, no fim do texto: todo totalitarismo que impede uma crítica irrestrita e universal é pré-moderno. Parece-me que os totalitarismos não se resumiriam às repressões sob mão de ferro, hoje é perfeitamente possível imaginar um totalitarismo de consumo (articulado com economia, mídia e políticas de governo, como enxergamos agorinha no Brasil). Outro exemplo: se é pré-moderno interditar a liberdade de voz, também o é restringir a voz ativa sob o pretexto de que somos livres para dizer qualquer coisa. Se somos livres para dizer, deveríamos ser livres para ter voz, isto é, ter voz ativa. Nisso, o exemplo de Julian Assange é apenas o mais notável.
Em suma: parece muito importante levantar a atitude kantiana; mas levá-la a cabo não significaria ter que reconhecer que há duas definições de modernidade, uma kantiana, da "crítica do presente" ou "atitude de atualidade", e outra definição de uma modernidade cuja racionalidade aquela tão criticada? Visto que parece pouco coerente não chamar as conquistas tecnológicas de nossa época de "modernas", você parece estar lidando com duas definições de modernidade, não apenas uma. Ou não?
Prezado Catatau,
ResponderExcluirAcho uma confusão falar de "totalitarismo de consumo". Não me parece que, no Brasil, a crítica seja cerceada por qualquer tipo de totalitarismo, muito menos por um "totalitarismo de consumo".
A meu ver, é a mesma modernidade que se manifesta tanto na crítica quanto nas conquistas tecnológicas. A crítica e a tecnologia são produtos da razão crítica, que, no segundo caso, assume o aspecto de razão instrumental.
Bom dia,
ResponderExcluirSou leitor costumaz de seu interessantíssimo blog e gosto muito das suas críticas sobre a modernidade e as possibilidades infinitas que o pensamento moderno alcançou.
Estava lendo um texto de outro poeta que admiro muito, Fernando Pessoa, chamado "O caso da janela estreita" (aqui neste link http://arquivopessoa.net/textos/4334), em que discorre sobre os tipos de inteligência humana e acho pertinente correlacionar com o tema sobre a razão da modernidade. Dentre as inteligências desse texto, a do tipo crítica seria a superior, pois "nem possui a observação, que é a base da inteligência científica, nem o raciocínio, que é o fundamento da inteligência filosófica. " e "vive apenas de ver as falhas que as suas antecessores, por assim dizer, tiveram. Sobretudo vê as falhas da inteligência filosófica, que, por abstracta, é mais da natureza dela." Depois detalha as falhas da inteligência filosófica, "O defeito central da inteligência filosófica é objectivar-se, ou antes, objectivar o que não é senão o seu método, quer atribuindo às abstracções de que forçosamente se serve um carácter de «coisas», quer atribuindo ao decurso das coisas aquela regularidade, aquela lógica, aquela racionalidade, que são forçosamente pertença do raciocínio, mas não daquilo sobre o que se raciocina". Pois aquilo sobre o que se raciocina é derivado de uma rede complexa de preconceitos, não havendo, portanto, fatos. Depois, "Os raciocinadores dos séculos XVII e XVIII, sobretudo em França, que supunham que o homem procede racionalmente, erraram toda a psicologia que tinham com essa presunção racional, mas absurda. Isso, é claro, é o erro que citei na sua forma mais crassa. Mas esse erro tem formas mais subtis... Uma delas é a de supor que todo o procedimento pensado é necessariamente racional, em outras palavras, que toda a premeditação é lógica. (...)Quero dizer que o raciocinador nunca crê que a razão possa ser substancialmente irracional, que o raciocinador não admite o irracional como elemento positivo, e não simplesmente negativo (...)"
Acredita que haveria alguma combinação dos elementos do texto de Pessoa com as suas proposições sobre a razão da modernidade?
Abraços