Publiquei o seguinte texto na minha coluna da Ilustrada, na Folha de São Paulo, sábado, 16 de Junho de 2007:
Letra de canção e poesia
COMO ESCREVO poemas e letras de canções, freqüentemente perguntam-me se acho que as letras de canções são poemas. A expressão "letra de canção" já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra "letra" remete à escrita. O que se quer saber é se a letra, separada da canção, constitui um poema escrito.
"Letra de canção é poema?" Essa formulação é inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar a priori quais são as formas lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?
Neste ponto, parece-me inevitável introduzir um juízo de valor. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é um bom poema. Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente precisa, pois pode estar a indagar duas coisas distintas: 1) Se uma letra de canção é necessariamente um bom poema; e 2) Se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.
Quanto à primeira pergunta, é evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema. Mas talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema. Ora, também a essa pergunta a resposta é negativa. Quem já não teve a experiência, em relação a uma letra de canção, de se emocionar com ela ao escutá-la cantada e depois considerá-la insípida, ao lê-la no papel, sem acompanhamento musical?
Não é difícil entender a razão disso. Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza quando é lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural. Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque não é feita para ser lida, mas ouvida, de modo que as questões que preocupam o letrista dizem respeito à prosódia isto é, à adaptação da letra à melodia, e ao diálogo daquela com a harmonia, o ritmo, o tom, o colorido da peça musical em questão: dizem respeito, isto é, não ao texto escrito, mas à ligação orgânica do discurso oral com a música da canção.
Mas isso, em última análise, ainda não é tudo. A letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e ouvida. Ora, como Luiz Tatit mostra em seu belíssimo livro "O Cancionista", "no mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica". Será sem dúvida por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não entendemos. E Tatit observa que, para João Gilberto, por exemplo, "o texto ideal é levemente dessemantizado, quase um pretexto para se percorrer os contornos melódicos dizendo alguma coisa (afinal, a voz, por ser voz, deve sempre dizer alguma coisa)". Em suma, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema.
A resposta para a segunda pergunta, por outro lado -isto é, se uma letra de canção é possivelmente um bom poema- é evidentemente positiva. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita. Ora, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são enumerados entre os maiores que já foram feitos. Além disso, nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.
Para dizer a verdade, o que nos intriga hoje é que haja tantos grandes poemas entre as letras gregas e provençais e tão poucos entre as modernas. Entretanto, a leitura do livro "Letra Só", de Caetano Veloso -que contém tantos grandes poemas que são também letras de canções-, fez-me pensar melhor sobre essa questão. Para o punhado de poemas de Safo, por exemplo, que nos chegaram, dentre os quais meia dúzia de obras-primas, quantos milhares de letras de canções não tiveram que ser escritos e esquecidos na Grécia antiga?
A.Cícero,
ResponderExcluirGosto do que vc escreve. Deparei com sua coluna na Folha deu vontade levar para o blog.
Está lá no PERPLEXOINSIDE como uma homenagem pessoal.
Caminhei com tuas palavras e concluí que pensamos igual ou bem próximo disso.
Fique com um abraço.
ainda bem que há quem roube bons poemas para fazer canções (sem a marina ainda haveria muita pérola escondida nas tuas gavetas e nós, coitados, não saberíamos de nada..)
ResponderExcluir"letra só" é um livro de excelentes canções, algumas das quais poemas do
m u n d o i n t e i r o;
"veneno antimonotonia" é um semi-reverso, uma colecção de excelentes poemas, alguns dos quais, canções geniais..(eucanaã ferraz é uma espécie em vias de extinção enquanto arqueólogo de todaApoesia : )
abraço,
filipa
Filipa,
ResponderExcluirestava com esperança de que você comparecesse à minha conferência na Gulbenkian, no dia 1º de junho, e fiquei triste de não a ver. Só não liguei porque esqueci de levar a minha agenda e estava sem o número de telefone.
Beijo,
ACicero
Caro Cícero,
ResponderExcluirExcelente texto. Sempre me irritei com (pseudo)críticos musicais que inistem em escrever seus arrazoados de péssima qualidade, 'isolando' as letras das canções. Esquecem o ritmo, a melodia, a ênfase em sílabas, a sonoridade das palavras, como você bem comentou. E daí, dá-lhe pau no Djavan, no Brown, no A.Antunes...
Não moro no Brasil há 22 anos. Fiquei aliviada com a menção de Caetano Veloso enquanto poeta. Acrescentaria outros nomes da MPB sem pejo, mas o artigo é seu, não meu.
ResponderExcluirEm inglês, indubitavelmente, Bob Dylan é um grande letrista/poeta, como queira. Jim Morrison foi outro.
Foi o Professor Avelar quem indicou seu blog. Vou marcá-lo para futuras leituras.
cicero,
ResponderExcluirmil desculpas - eu queria ter ido, mas estava em reperage no minho. peço um favor: por que não "postar" o texto da palestra aqui? tenho a certeza que não seria só eu a agradecer..
abraço,
filipa
Excelente texto, Cícero. Pessoalmente, acredito que um músico, quando faz a letra, não pensa q está fazendo um poema. Em relação a um comentário feito,Arnaldo Antunes possivelmente seria um caso a parte. Efetivamente, ele é músico e poeta. Coisas separadas. Assim como vc. Como vc? Bem, como vc faz? Suas letras são poemas? Inverno, cantada pela Calcanhotto, passa essa impressão. Um belo poema. Ao mesmo tempo, não acredito nesse lance de isolar a letra da canção e tratá-la como poema. Acho q Caetano ou Bob Dylan, por exemplo, são grandes letristas, talvez sejam parte de uma outra espécie de poetas. Os poetas dentro da música, os poetas musicais. Os que só fazem poemas se há uma melodia. Não sei se está claro. Mas Caetano não publica na condição de poeta. Ele pode pensar como tal, mas seu ofício é contruído para a elevação de um cancioneiro. É um poeta da música, não é um poeta da poesia. Estranho isso. Talvez fosse melhor perguntar a ele.
ResponderExcluirPousei aqui através do blog do Héber Sales. E que prazer ler este texto tão interessante, que aborda o tema da criação poética paralelamente à musical. Aproveitarei para linkar teu endereço, para facilitar visitas futuras. Abraços alados!
ResponderExcluirObrigado, Analuka. Seja bem vinda. Abraços alados!
ResponderExcluirACicero
Caro Cicero,
ResponderExcluirretomei essa tua coluna lá no POESIA HOJE. Há muita gente blogando sobre assunto agora, por causa do filme Palavra (En)cantada:
http://www.poesiahoje.com/2009/05/letra-de-cancao-e-poesia.html
Abraços,
Héber