14.6.07

Inês Pedrosa: O lance do poema

Peço desculpas aos caríssimos frequentadores deste blog por não ter sido capaz, nos últimos dez dias, de fazer novas postagens ou de responder aos inúmeros comentários sobre o artigo “Poesia e filosofia”. É que, após pronunciar uma conferência em Lisboa, a convite da Fundação Gulbenkian, intitulada “Da atualidade do conceito de civilização”, fui ver amigos na França e na Bélgica, de modo que tanto me ficou escasso o tempo para escrever quanto precário o meu acesso à Internet. Espero, nos próximos dias, recuperar o tempo perdido.

Entrementes, reproduzo aqui, com muito orgulho, o artigo que a brilhante escritora portuguesa Inês Pedrosa publicou na sua coluna do jornal Expresso, de Lisboa, no dia 2 de junho.


Inês Pedrosa
O lance do poema

Pobres leitores deste rico Ocidente atulhado em bugigangas de papel disfarçadas de livros, tralha iletrada embrulhada em talha dourada: quereis saber quem sois? Quereis conhecer o fundo infinito do vosso ser sem fundo? Nos poetas o encontrareis. É para isso, e para vós, que eles trabalham. Não falo só nem particularmente dos fazedores de versos, pois há muito quem verseje sem que se veja um vero sopro que sério seja nesse versejar. Nem é de sério sisudo que falo, que os há empalados em dicionários e prontuários de arte, máquinas de regurgitar. Falo dos poetas convocados pela palavra, em prosa ou verso, ficção ou ensaio, não dos seus muitos e muito fáceis imitadores – aqueles costureiros do tempo que, com um retalho de real (uma frase de autocarro, uma linha de teoria, um alinhavo cinéfilo), mais um laivo de turismo virtual e um pó de humor de manual, fazem volume de estilistas – seja na versão compacta da feijoada paradigmática para triunfo académico ou na versão leve da salada histórica para consumo endémico.

O que é um poema? É algo para guardar. Essa foi a primeira coisa que aprendi com o brasileiro António Cícero, esplendoroso poeta
(também ensaísta, como é próprio dos poetas, sendo o ensaio a tempestade que prolonga o relâmpago do poema) da língua portuguesa – e das outras todas, porque a poesia é babélica. Só não dá por isto quem vive com o ouvido da alma curvado, por excesso de reverência para com a língua inglesa.

Explica-nos António Cícero no primeiro poema do seu livro «Guardar» ( edições Quasi, 2002): «Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não/ se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto/ é, iluminá-la ou ser por ela iluminado./(...) Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro/ Do que pássaros sem vôos./(...) Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar». A segunda coisa que aprendi com António Cícero foi a sair. O português do Brasil possui aliás o substantivo «saideira», que não existe em Portugal, este país que sabe exilar-se mas nunca soube sair. Os poemas contêm o dom de atraírem outros poemas, como ímans, e assim me acode de repente o poema daquela científica canção de Chico Buarque chamada «Trocando em Miúdos: «Eu bato o portão sem fazer alarde/ eu levo a carteira de identidade/ uma saideira, muita saudade (...)». No último poema de «A Cidade e os Livros» (edições Quasi, 2006), Cícero escreve: «Largar o cobertor, a cama, o / medo, o terço, o quarto, largar/ toda simbologia e religião; largar o/ espírito, largar a alma, abrir a/ porta principal e sair. Esta é/ a única vida e contém inimaginável/ beleza e dor. Já o sol,/ as cores da terra e o/ ar azul – o céu do dia – /mergulharam até a próxima aurora; a/ noite está radiante e Deus não/ existe nem faz falta. (...)». Os poemas de António Cícero são vertiginosos, sábios, simples e autênticos como espelhos. São também, muitas vezes, carnalmente eruditos, viajam pelo interior do tempo para mostrar a face actual, quotidiana, de Ícaro e Dédalo e Prometeu. No prefácio de «A Cidade e os Livros» José Miguel Wisnik sublinha: « Uma dicção clássica, grega e latina, capaz de odes e nênia, acha o ponto exato da ruína eternamente contemporânea». Wisnik é, além de arguto ensaísta, um inspiradíssimo músico – actuará no próximo dia 29 na Culturgest, em Lisboa, espectáculo que recomendo vivamente. António Cícero deu ontem uma lição acerca «Da actualidade do conceito de civilização», no ciclo «O Estado do Mundo» da Fundação Gulbenkian – o melhor da cultura brasileira começa a desembarcar regularmente em Portugal.

A terceira coisa que aprendi com António Cícero foi a reivindicar o direito ao juízo de valor, e, em particular, ao juízo estético. Na introdução ao seu prodigioso volume de ensaios «Finalidades sem Fim» (edições Quasi, 2007), Cícero esclarece que tais juízos são «uma exigência da própria poesia». Utilizo aqui o adjectivo «prodigioso» com toda a sua artilharia semântica: neste espaço não cabe o desossar de um livro de 300 páginas, pelo que o adjectivo serve de exortação a que corram a comprá-lo – mesmo que não vejam a utilidade da poesia (o livro também é sobre isso), ou da música, ou da pintura, ou sequer da filosofia. Cícero tem a arte de tornar claras as coisas obscuras e de caminhar, serenamente, contra as evidências, conduzindo-nos a descobrir que «muitas vezes o óbvio é meramente o impensado» (p. 91). O seu léxico é transparente e o seu espírito uma biblioteca de Alexandria. O primeiro e o terceiro ensaios do livro – «Poesia e Paisagens Urbanas» e «O Tropicalismo e a MPB» – oferecem-nos reflexões inteligentíssimas sobre o mito da vanguarda. O segundo e o quarto – «A falange de máscaras de Waly Salomão» e «Drummond e a modernidade», dão uma surra revigorante nos dogmatismos crípticos. Os outros, girando em torno desse diamante central intitulado «Poesia e Filosofia», são investigações tão minuciosas quanto surpreendentes sobre essa finalidade sem fim que, no trilho de Kant, Cícero persegue: a beleza.

7 comentários:

  1. Caro Antônio,

    É um grande prazer ver nova postagem em seu blog. E creio que a Inês acertou em cheio com esse artigo. O filósofo e poeta Antônio Cícero tem o domínio de duas artes complementares: a de extrair a simplicidade da aparente complexidade, e a de fazer nascer a profundidade do aparentemente simples.
    É impressionante a capacidade do poema "Guardar" em comover e inspirar reflexões sobre a poética. De fato, esse poema é um belo exemplo do que me referia sobre a "solidariedade" entre poesia e filosofia no comentário ao texto anterior. A existência do poema deve estimular a leitura, a discussão e a reescrita do problema filosófico em questão, como acontece nesse caso. Um texto pretensamente filósofico que tentasse dar fim a discussão através de recursos poéticos é que seria um erro. Apenas o raciocínio pode gerar consenso, objetividade. A função da poesia é outra.

    Aproveito para deixar um elogio a um outro exemplo, contido na sua obra, de profundidade sob aparente simplicidade. Refiro-me à letra da canção "Bagatelas", uma das mais belas que já ouvi, e, dentre as suas, a que mais admiro. A singeleza e a poesia presentes nessa letra tem a capacidade de encarnar perfeitamente aquilo a que ela mesma se refere, em uma das fusões mais belas entre significante, significado e referente. É, ainda, capaz de nos remeter a profundos questionamentos existenciais e sobre a própria razão de ser da poesia. Afinal, "a gente é louca ou lúcida quando quer que tudo vire música"?

    Um abraço,
    Lucas Nicolato

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  2. Está desculpado, poeta! Você é mesmo um escritor para ser lido, relido, pensado, curtido... sem pressa. Portanto não se preocupe com o tempo da postagem porque o que está aqui já me custará milênios de reflexão.
    Vou colocar um link do seu blog lá no Poesia Sim. Tudo bem?
    Há braços!
    Lau

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  3. Adorei a frase "Até a próxima aurora" , do seu poema "A cidade e os livros" , citado pela articulista.
    Abaixo , meu poema "Dois mundos":

    "Quando dois mundos opostos se atraem
    Há perigo de grandes choques, explosões letais.

    Após beijos amargos, sobram carnívoras feridas
    Os traumas (old friends), falsos enigmas
    A gaia íntima: mil sóis negros rodopiando
    [no porão da alma escurecida.

    Mas só se queria uma grande obra de arte
    O coração anti-poético que balançaste
    Vagante nas pistas das galáxias desconhecidas:
    Supernovas explodem e podem tomar novos rumos
    A terra treme, vulcões expelem gêiseres de fogo e blues.

    Quando dois seres opostos se atraem
    E traem-se num segundo
    Mil sóis alvos girando em galáxias conhecidas
    Dos teus cínicos olhos azuis."

    Um abç ,
    ERNANI MOURA BRITO
    Advogado/escritor - SJRio Preto /SP
    Blog: http:drernani.blig.ig.com.br

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  4. Agradeço tanto ao Lucas quanto ao Lau pelas generosíssimas palavras. Obrigado pelo link, Lau. Vou também colocar um aqui para o Poesia Sim.

    Antonio Cicero

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  5. Caríssimo Antonio Cícero, que alegria vê-lo juntar-se à blogosfera. Sua obra poética e ensaística -- muito especialmente esse verdadeiro tour de force que é O mundo desde o fim -- foram sempre uma grande inspiração. O texto de hoje na Folha sobre poesia e letras de canção é mais um presente impecável com que você nos brinda. Um abraço afetuoso,

    Idelber
    http://idelberavelar.com

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  6. Muito obrigado, Idelber. Fico contente com a sua avaliação, já que aprecio muito os seus textos de O Biscoito Fino e a Massa.

    Um grande abraço,
    Antonio Cicero

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  7. Olá, fazia tempo que não me encantava com um texto a ponto de buscar a fonte. Cheguei no seu blog e bisbilhotei os comentários dos seus amigos. Só quem é ótimo consegue cercar-se de gente ótima. Parabéns e muito obrigada.
    maria lucia solla

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