Eis o primeiro e belo poema do novo livro de André Luiz Pinto, Ao léu:
I
A cidade comove, risível quanto
o mar qual o sentido da
palavra risível onde as casas
se amotinam sob a grossa poeira?
Onde minha mãe nascera
minha avó morrera
o subúrbio não se cansa de dizer
mais esquecido que o nordeste.
Escrever é proibido, artistas vivem
de pagode, bate aqui no peito
a ruína de quem cedo
aprendeu a ler e eu não devia.
Tudo isso contado junto
enquanto os vagões
desandam por entre os bairros
poderia ser Nova Iorque.
Madureira, matadouro de homens,
dos secos e molhados
nas praças e nos
congados, de nossas vítimas.
PINTO, André Luiz. Ao léu. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2007
29.6.07
24.6.07
Correspondência entre Paulo de Toledo e Antonio Cicero sobre a especificidade da poesia
Afinal tenho tempo de responder ao último comentário de Paulo de Toledo sobre a postagem de 21/05, “A poesia é um segredo dos deuses?”. O assunto é a especificidade da poesia. Como essa correspondência me parece muito interessante, resolvi recapitular abaixo os lances mais importantes dela (até agora) e postar, no final de tudo, a minha resposta – nada definitiva – de hoje.
23/05
Caro Antonio,
[...]
o que eu quis questionar [no comentário de 22/05] era se é possível dizer que há um "específico poético", i.e., haveria algo de único no discurso poético que realmente o diferenciaria do discurso prosaico? Afinal, se não basta dividir um texto em várias linhas para considerá-lo um poema, nem tampouco criar rimas no final de cada uma dessas linhas, então o que faz de um "conjunto de palavras" um poema?
Eu me arriscaria a tentar responder a essa questão da seguinte forma: a poesia é a única arte que consegue transformar signos convencionalizados (o signo verbal peirceano) em signos icônicos (aqueles que se relacionam com o seu objeto por meio de similaridades), criando uma relação de semelhança e, portanto, "necessária", "não-arbitrária", entre os signos que a compõem e o seu objeto.
Há também o inefável, o inexplicável, o intangível... Mas, quanto a esse aspecto da poesia, eu fico com Pessoa: "Sentir? Sinta quem lê!"
Abrações
Paulo de Toledo
23/05
Caro Paulo,
Acho que a iconicidade é uma característica importante de muitos poemas e de muitos componentes de diferentes poemas, mas não creio que seja a diferença específica, que determinaria a essência da poesia.
Você define o signo icônico como "aquele que se relaciona com seu objeto por meio da similaridade". Isso, porém, supõe uma diferença entre o poema e o seu objeto, que seria mais ou menos análoga à diferença entre o significante e o significado. Ora, penso que num poema, no limite, não se pode separar o significante do significado, o poema do seu objeto. É por isso que o poema não é parafraseável, isto é, que não se pode dizer em outras palavras o que um poema diz. Em última análise, parece-me que o poema é o objeto mesmo: o objeto verbal que vale por si, não por causa do que ele diz sobre outra coisa.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro AC,
o poema é, sim, algo não "parafraseável", mas exatamente porque os signos verbais (signos simbólicos, na nomenclatura peirceana) que o compõe (e que são signos convencionalizados, arbitrários), ao serem manejados pelo poeta, tornam-se signos icônicos (também segundo a definição de Peirce). E o signo icônico, diferentemente do signo simbólico/verbal, não admite paráfrase. Quando Dante se utiliza do número-conceito 3 para estruturar seu poema (terza rima, 3 cabeças do demônio, 3 "points": inferno, purgatório e paraíso etc.), este número transforma-se em um ícone do poema. Como diria o Décio Pignatari: ritmo é ícone. Portanto, quando lemos dois versos em que o esquema rímico e rítmico são iguais, há uma relação de similaridade entre eles e, consequentemente, há uma relação icônica entre os versos. As palavaras que os compõem deixam de ser meramente signos convencionalizados para se tornarem signos não-arbitrários, necessários.
Era mais ou menos isso que eu tentei dizer no outro comentário.
Abração
Paulo de Toledo
Hoje:
Caro Paulo,
Desculpe a demora da minha resposta. Deveu-se à viagem que fiz e, depois, a alguns problemas que tive que tentar resolver ao chegar, antes de me conceder o lazer para me dedicar a essas questões, que, no final das contas, são as que mais me interessam.
Como já lhe disse, acho que está certo considerar uma característica importante de muitos poemas a iconicidade de muitos dos seus signos. Entretanto, não creio que ela seja totalmente adequada para determinar o que é um poema. Em primeiro lugar, um poema não é composto apenas de signos icônicos. A maior parte dos signos de alguns – grandes – poemas não me parecem absolutamente icônicos. Tomemos, por exemplo, “Homenagem a Paul Klee”, do João Cabral:
Homenagem a Paul Klee
Nele houve o insano projeto
de envelhecer sem rotina;
e ele o viveu, despelando-se
de toda pele que o tinha.
Sem medo, lavava as mãos
do que até então vinha sendo:
de noite, saltava os muros,
saía a novos serenos.
Não vejo por que considerar icônicos os signos desse poema: a menos que se estenda tanto a noção de “ícone” que ela possa ser usada de praticamente tudo: e, consequentemente, não signifique nada em particular. Aliás, acho que você corre esse perigo quando, falando de ritmo ser ícone, diz que os esquemas rímicos e rítmicos já representam relações icônicas entre os versos. Parece-me que a relação icônica é semântica e não sintática. Você mesmo a considera uma “relação de semelhança e, portanto ‘necessária’, ‘não-arbitrária’, entre os signos que a compõem e o seu objeto”. Por exemplo, ritmo é ícone, sim, no poema “Caçar em vão”, de Armando Freitas Filho, que postei aqui em 28/05.
Entretanto, se, por exemplo, o esquema de rimas inteiramente convencional de um soneto petrarquiano não tiver nenhuma relação com o que está sendo dito, não terá sentido considerá-lo icônico. Nem toda relação paronomásica constitui um ícone porque nem sempre ela compõe a imagem ou o retrato de alguma coisa; nem sempre, através dela, o plano semântico se projeta no sintático ou o significado no significante, ou, para falar como o Décio, nem sempre o eixo de similaridade se projeta sobre o de contigüidade, o paradigma sobre o sintagma, ou o ícone sobre o símbolo.
Já o que você diz do esquema triádico da Commedia de Dante parece-me correto, pois evoca a trindade divina.
Mas além de achar que há poemas cujos signos não são mais icônicos do que os de outros tipos de discurso (o que significa que a iconicidade não é uma condição necessária para a poesia) acho que há outros discursos nada poéticos (por exemplo, o da publicidade) que usa signos icônicos pelo menos tão freqüente e intensamente quanto a poesia o faz (o que significa que a iconicidade não é condição suficiente para a poesia).
Em suma, tenho a impressão de que a iconicidade ainda não resolve o problema da especificidade da poesia.
Um abraço,
Antonio Cicero
23/05
Caro Antonio,
[...]
o que eu quis questionar [no comentário de 22/05] era se é possível dizer que há um "específico poético", i.e., haveria algo de único no discurso poético que realmente o diferenciaria do discurso prosaico? Afinal, se não basta dividir um texto em várias linhas para considerá-lo um poema, nem tampouco criar rimas no final de cada uma dessas linhas, então o que faz de um "conjunto de palavras" um poema?
Eu me arriscaria a tentar responder a essa questão da seguinte forma: a poesia é a única arte que consegue transformar signos convencionalizados (o signo verbal peirceano) em signos icônicos (aqueles que se relacionam com o seu objeto por meio de similaridades), criando uma relação de semelhança e, portanto, "necessária", "não-arbitrária", entre os signos que a compõem e o seu objeto.
Há também o inefável, o inexplicável, o intangível... Mas, quanto a esse aspecto da poesia, eu fico com Pessoa: "Sentir? Sinta quem lê!"
Abrações
Paulo de Toledo
23/05
Caro Paulo,
Acho que a iconicidade é uma característica importante de muitos poemas e de muitos componentes de diferentes poemas, mas não creio que seja a diferença específica, que determinaria a essência da poesia.
Você define o signo icônico como "aquele que se relaciona com seu objeto por meio da similaridade". Isso, porém, supõe uma diferença entre o poema e o seu objeto, que seria mais ou menos análoga à diferença entre o significante e o significado. Ora, penso que num poema, no limite, não se pode separar o significante do significado, o poema do seu objeto. É por isso que o poema não é parafraseável, isto é, que não se pode dizer em outras palavras o que um poema diz. Em última análise, parece-me que o poema é o objeto mesmo: o objeto verbal que vale por si, não por causa do que ele diz sobre outra coisa.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro AC,
o poema é, sim, algo não "parafraseável", mas exatamente porque os signos verbais (signos simbólicos, na nomenclatura peirceana) que o compõe (e que são signos convencionalizados, arbitrários), ao serem manejados pelo poeta, tornam-se signos icônicos (também segundo a definição de Peirce). E o signo icônico, diferentemente do signo simbólico/verbal, não admite paráfrase. Quando Dante se utiliza do número-conceito 3 para estruturar seu poema (terza rima, 3 cabeças do demônio, 3 "points": inferno, purgatório e paraíso etc.), este número transforma-se em um ícone do poema. Como diria o Décio Pignatari: ritmo é ícone. Portanto, quando lemos dois versos em que o esquema rímico e rítmico são iguais, há uma relação de similaridade entre eles e, consequentemente, há uma relação icônica entre os versos. As palavaras que os compõem deixam de ser meramente signos convencionalizados para se tornarem signos não-arbitrários, necessários.
Era mais ou menos isso que eu tentei dizer no outro comentário.
Abração
Paulo de Toledo
Hoje:
Caro Paulo,
Desculpe a demora da minha resposta. Deveu-se à viagem que fiz e, depois, a alguns problemas que tive que tentar resolver ao chegar, antes de me conceder o lazer para me dedicar a essas questões, que, no final das contas, são as que mais me interessam.
Como já lhe disse, acho que está certo considerar uma característica importante de muitos poemas a iconicidade de muitos dos seus signos. Entretanto, não creio que ela seja totalmente adequada para determinar o que é um poema. Em primeiro lugar, um poema não é composto apenas de signos icônicos. A maior parte dos signos de alguns – grandes – poemas não me parecem absolutamente icônicos. Tomemos, por exemplo, “Homenagem a Paul Klee”, do João Cabral:
Homenagem a Paul Klee
Nele houve o insano projeto
de envelhecer sem rotina;
e ele o viveu, despelando-se
de toda pele que o tinha.
Sem medo, lavava as mãos
do que até então vinha sendo:
de noite, saltava os muros,
saía a novos serenos.
Não vejo por que considerar icônicos os signos desse poema: a menos que se estenda tanto a noção de “ícone” que ela possa ser usada de praticamente tudo: e, consequentemente, não signifique nada em particular. Aliás, acho que você corre esse perigo quando, falando de ritmo ser ícone, diz que os esquemas rímicos e rítmicos já representam relações icônicas entre os versos. Parece-me que a relação icônica é semântica e não sintática. Você mesmo a considera uma “relação de semelhança e, portanto ‘necessária’, ‘não-arbitrária’, entre os signos que a compõem e o seu objeto”. Por exemplo, ritmo é ícone, sim, no poema “Caçar em vão”, de Armando Freitas Filho, que postei aqui em 28/05.
Entretanto, se, por exemplo, o esquema de rimas inteiramente convencional de um soneto petrarquiano não tiver nenhuma relação com o que está sendo dito, não terá sentido considerá-lo icônico. Nem toda relação paronomásica constitui um ícone porque nem sempre ela compõe a imagem ou o retrato de alguma coisa; nem sempre, através dela, o plano semântico se projeta no sintático ou o significado no significante, ou, para falar como o Décio, nem sempre o eixo de similaridade se projeta sobre o de contigüidade, o paradigma sobre o sintagma, ou o ícone sobre o símbolo.
Já o que você diz do esquema triádico da Commedia de Dante parece-me correto, pois evoca a trindade divina.
Mas além de achar que há poemas cujos signos não são mais icônicos do que os de outros tipos de discurso (o que significa que a iconicidade não é uma condição necessária para a poesia) acho que há outros discursos nada poéticos (por exemplo, o da publicidade) que usa signos icônicos pelo menos tão freqüente e intensamente quanto a poesia o faz (o que significa que a iconicidade não é condição suficiente para a poesia).
Em suma, tenho a impressão de que a iconicidade ainda não resolve o problema da especificidade da poesia.
Um abraço,
Antonio Cicero
21.6.07
Resposta a meu amigo Alberto Pucheu
Caro Alberto,
Em primeiro lugar, quero deixar claro que não estava pensando nos seus livros, ao escrever o artigo que você critica. Não que eu não pense neles: ao contrário, aprecio muito os textos que já li, tanto de "Pelo Colorido, para além do Cinzento", quanto de “A Fronteira Desguarnecida”. Creio que foram duas as razões pelas quais não pensei nos seus livros, ao criticar o que vejo como a tendência contemporânea a assimilar poesia e filosofia. A primeira é que, embora você de fato defenda teoricamente o “desguarnecimento” das fronteiras entre a poesia e a filosofia, a verdade é que não leio os seus textos poéticos como filosofia, mas como poesia mesmo, e como boa poesia; e leio os seus textos filosóficos como filosofia mesmo, e como filosofia bem escrita e pensada, embora eu nem sempre concorde com ela. Falo, é claro, dos textos que já li. O que eu tinha em mente era uma tendência que vem do Romantismo Alemão, passa por Nietzsche (que, no entanto, é um caso especial), Kierkegaard e Heidegger, e chega ao chamado pós-estruturalismo.
Quero esclarecer alguns pontos. O fato de que não penso ser produtivo, nem para a poesia nem para a filosofia, que elas confluam para uma única coisa não significa que eu creia que a poesia não possa usar para seus próprios fins as intuições, as concepções, as palavras ou mesmo os conceitos da filosofia, ou que um texto filosófico não possa ter momentos poéticos, ou até ser escrito em versos (embora esta última possibilidade me pareça francamente contraproducente). O que afirmo é que há uma diferença irredutível entre a finalidade da poesia e a da filosofia; ora, a finalidade de um objeto artificial enquanto artificial é a sua essência. Há, portanto, segundo penso, uma diferença essencial entre poesia e filosofia. Um dos modos que encontrei para exprimir essa diferença foi através dos conceitos de metadiscurso (o discurso que fala sobre outros discursos) e discurso-objeto (aquele sobre o qual outro discurso fala). A tese que sustento é que, enquanto a filosofia é um metadiscurso terminal (sobre o qual nenhum outro discurso, isto é, nenhum discurso não-filosófico é capaz de falar), a poesia é um discurso-objeto terminal (que não fala propriamente sobre nenhum outro discurso, nem sobre coisa alguma). Não vou me estender sobre esse assunto aqui, já que o fiz no artigo que você criticou. Sustento que essa diferença não deve ser esquecida ou menosprezada, nem pelo poeta, nem pelo filósofo, nem pelos seus leitores.
Sempre afirmei que um poeta pode usar todos os recursos de que disponha para produzir um poema: todo o seu intelecto, toda a sua sensibilidade, toda a sua intuição, toda a sua razão, toda a sua experiência, todo o seu vocabulário, todo o seu conhecimento, todo o seu senso de humor, toda a sua cultura. Por que não usaria também tudo o que sabe de filosofia? Eu jamais teria a veleidade de tentar estabelecer limites para as palavras ou os pensamentos abordáveis pela poesia. Entretanto, os elementos filosóficos que um poema contenha fazem parte de uma totalidade cujo sentido – quando se trata de um poema de verdade – jamais é, ele mesmo, meramente filosófico. Não se pode, por isso, julgar um poema enquanto poema a partir da filosofia que porventura contenha. Por que? Porque uma leitura que se contente com a filosofia de um poema seria uma leitura empobrecedora, do ponto de vista poético.
Assim, os poemas de Horácio, por exemplo, são obras primas enquanto poesia: pode-se dizer que se trata de poemas profundos, pois têm muitas dimensões, muitos níveis, apontam para muitas coisas, transformam-se a cada leitura que deles fazemos; mas, do ponto de vista estritamente filosófico, são de um epicurismo simplesmente banal. Em outras palavras, os poemas de Horácio são profundos, mas uma leitura estritamente filosófica deles seria superficial. Já o poema de Parmênides, por exemplo, é uma grande obra de filosofia, mas, considerado enquanto poesia, é fraco.
Analogamente, uma filosofia pode ser expressa em termos poéticos, mas, quando a julgamos enquanto filosofia, isso não tem o menor peso. Não importa, para a avaliação de Parmênides enquanto filósofo, que ele não seja tão bom poeta quanto Empédocles, por exemplo. Penso que quem tem razão é Aristóteles, que, referindo-se a Empédocles, comenta que “também os que expõem algo médico ou físico costumam ser assim chamados [de “poetas”]: mas nada há em comum entre Homero e Empédocles fora a métrica, razão pela qual é justo chamar um de poeta e o outro de fisiólogo, em vez de poeta” (Poética, 1447b17ss.).
Isso não quer dizer que Empédocles não tivesse, como já foi dito, mais méritos poéticos do que Parmênides, por exemplo. Ao contrário, Aristóteles mesmo os reconhece (Gigon fr.17). O que Aristóteles quer dizer é que, diferentemente do que ocorre com os poemas de Homero, o livro de Empédocles Sobre a natureza é importante por algo que nada tem a ver com a poesia – isto é, pela filosofia – e não pelos seus trechos poéticos: que o que neles realmente importa, que são as idéias filosóficas, podia ter sido exposto em outras palavras, em prosa.
Alguns pensadores, como Lucrécio, podem ser apreciados ora como filósofos ora como poetas. São grande poesia, por exemplo os trechos de De rerum natura II.552 ss. ou III.832 ss., ou ainda o extraordinário
"Nequiquam, quoniam medio de fonte leporum
Surgit amari aliquit quod in ipsis floribus angat",
que resiste mal à tradução:
"Tudo é em vão pois em plena fonte da doçura
Surge algo amargo, alguma angústia em meio às flores".
(IV.1133).
Mas a verdade é que, em geral, os trechos poéticos de Lucrécio são, do ponto de vista da filosofia, fracos, e vice-versa.
Platão é evidentemente um grande escritor e um grande filósofo, mas não o considero um poeta. Os mais bem escritos dos seus diálogos o são porque têm uma função propedêutica. Eles querem seduzir os jovens bem dotados para a filosofia. É nesse sentido que competem com a poesia. Não que queiram ser poemas: ao contrário, a sua intenção é desviar o interesse dos jovens, da sofística e da poesia (que, para Platão, como transparece no diálogo “Sofista”, são praticamente a mesma coisa), para a filosofia. Geralmente, no começo de cada diálogo e, depois, em vários pontos dele, a sedução literária e erótica (no sentido carnal) cede sistematicamente lugar ao verdadeiro studium philosophandi, de modo que tanto os interlocutores de Sócrates quanto os leitores são conduzidos ao puro arrebatamento pela dialética e ao puro entusiasmo pela filosofia e pela busca da verdade.
Os verdadeiros personagens desses diálogos são a sofística, inclusive a poesia, de um lado, e a filosofia, de outro. É entre elas que se dão os embates. De certo modo, o sentido desses diálogos inclui, desde sempre, a expulsão dos poetas da Polis.
No “Fedro”, após atacar a escrita, Sócrates fala do logos que não é escrito em livros, mas na alma daquele que o aprende. Essa tese não é só do personagem platônico Sócrates, mas do próprio Platão que, falando enquanto Platão mesmo, na Carta VII – nada literária ou poética –, diz repetidamente que a verdadeira doutrina não pode ser escrita e que ele jamais pretendeu apresentá-la por escrito. Se é assim, então a função dos diálogos é apenas apontar para a verdadeira filosofia que, ágrafa, deve ser inscrita na alma. É a tese da escola de Tübingen.
“A escrita, Fedro”, diz Sócrates (275d4ss.), “tem essa qualidade esquisita, na verdade semelhante à da pintura. Pois as criaturas desta parecem estar vivas, mas se lhes indagares algo, silenciam solenemente. Assim são os escritos. Pensarias que falam com inteligência, mas se lhes perguntares, querendo entender as coisas que dizem, significam sempre as mesmas coisas. E uma vez escrito, todo discurso rola por toda parte, tanto entre os que o entendem quanto entre os que não se interessam por ele, e não sabe a quem deve falar e a quem não. E quando maltratado ou insultado, precisa sempre ser defendido pelo seu pai, pois ele próprio não é capaz de se defender”.
Observe que o que Sócrates diz aí dos escritos aplica-se somente aos discursos filosóficos. São esses que precisam ser defendidos pelos filósofos que os escreveram (ou pelos seus seguidores). Os discursos poéticos, ao contrário, não precisam – nem devem – ser defendidos pelos poetas que os compuseram.
De todo modo, o importante é que esses trechos deixam entrever a possibilidade de conceber um filósofo que simplesmente se cale e continue sendo um filósofo. Assim são alguns filósofos indianos. Ora, não chamaríamos de “poeta” alguém que não compusesse poemas. É que, enquanto a filosofia não se realiza plenamente nos discursos filosóficos, mas, ao contrário, estes são um caminho para aquela, a poesia se realiza plenamente nos discursos poéticos, que são os poemas. Mesmo etimologicamente isso é verdadeiro, pois, enquanto “filosofia” significa o puro amor à sabedoria, o que não implica fazer coisa alguma, “poesia” significa feitura, e o poema é o feito. Observe que, na Antiguidade, não se cunhou a palavra filosofema, análoga a poema. É que, enquanto o poema é a finalidade da poesia, a finalidade da filosofia – e dos textos filosóficos – é a própria filosofia.
Interessa-me agora um outro ponto. É que, no meu texto, eu havia dito que considero um erro, tanto para a poesia quanto para a filosofia, “ a vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra”. Você comenta que “no que concerne à construção de um pensamento filosófico ou poético, a partir de certo nível muito básico, falar em ‘erro’ me parece, desculpem-me o retorno da triste palavra, o único ‘erro’ possível de se cometer. Não se pode falar em ‘erro’ nem no que se refere à indiscenibilidade entre poesia e filosofia nem, tampouco, no que diz respeito ao caminho de diferenciação entre elas”.
Ora, se você acha que errei, ao dizer que é um erro a tentativa de confundir poesia e filosofia, por que não poderia eu achar que errado está quem tenta confundi-las? Quem afirma uma tese, implicitamente afirma a sua verdade; e afirmar a verdade de uma tese equivale a afirmar a falsidade da tese que a contradiz. Do mesmo modo, afirmar uma tese é, implicitamente, afirmar que ela está certa; e afirmar que ela está certa é afirmar que está errada a tese que a contradiz. Por isso, se penso que está certo dizer que a poesia e a filosofia não devem se confundir, não posso deixar de pensar que está errado quem pensa o oposto.
E aqui aproveito para tocar em mais uma diferença entre a poesia e a filosofia: é que a filosofia pretende afirmar verdades. Ora, afirmar a verdade de uma tese equivale a afirmar a falsidade da tese que a contradiz. Por isso, as teses filosóficas não são todas compatíveis umas com as outras: ao contrário, umas negam as outras. Não é possível acreditar simultaneamente em duas teses realmente contraditórias. O mesmo não ocorre com a poesia. Um poema pode ser inteiramente diferente do outro: pode até, do ponto de vista extra-poético, afirmar o oposto do que o outro afirma. Como observa Nelson Ascher no prefácio ao seu excelente Poesia alheia, um poema pode dizer que tudo muda no mundo e o outro, que não há nada de novo sob o sol. No entanto, podemos apreciar os dois – podemos acreditar nos dois – igualmente.
Pois bem, o meu texto, que você critica, não é poético, mas filosófico. Ele afirma, portanto, algumas coisas, que tem como verdadeiras e certas; consequentemente, considera falsas e erradas as teses opostas. Permita-me dizer que o fato de que você considere isso errado é, a meu ver, um dos erros a que a confusão teórica entre a poesia e a filosofia pode levar.
Finalmente, a sua tese de que, num texto filosófico “a inseparabilidade entre o pensamento e as palavras se faz tão presente quanto no poético” parece-me inteiramente insustentável. Basta lembrar o seguinte: artigos são escritos e aulas são dadas sobre a filosofia de Tales de Mileto, do qual, no entanto, não sobrou sequer um fragmento; há uma bibliografia imensa de obras sobre a filosofia de Sócrates: não me refiro ao personagem de Platão, mas ao ateniense de carne e osso, que jamais expôs sua filosofia por escrito; ora, nada nem de longe equivalente existe ou poderia existir sobre poeta algum do qual não tenha sobrevivido ao menos alguma coisa escrita.
Um grande abraço,
Antonio Cicero
Em primeiro lugar, quero deixar claro que não estava pensando nos seus livros, ao escrever o artigo que você critica. Não que eu não pense neles: ao contrário, aprecio muito os textos que já li, tanto de "Pelo Colorido, para além do Cinzento", quanto de “A Fronteira Desguarnecida”. Creio que foram duas as razões pelas quais não pensei nos seus livros, ao criticar o que vejo como a tendência contemporânea a assimilar poesia e filosofia. A primeira é que, embora você de fato defenda teoricamente o “desguarnecimento” das fronteiras entre a poesia e a filosofia, a verdade é que não leio os seus textos poéticos como filosofia, mas como poesia mesmo, e como boa poesia; e leio os seus textos filosóficos como filosofia mesmo, e como filosofia bem escrita e pensada, embora eu nem sempre concorde com ela. Falo, é claro, dos textos que já li. O que eu tinha em mente era uma tendência que vem do Romantismo Alemão, passa por Nietzsche (que, no entanto, é um caso especial), Kierkegaard e Heidegger, e chega ao chamado pós-estruturalismo.
Quero esclarecer alguns pontos. O fato de que não penso ser produtivo, nem para a poesia nem para a filosofia, que elas confluam para uma única coisa não significa que eu creia que a poesia não possa usar para seus próprios fins as intuições, as concepções, as palavras ou mesmo os conceitos da filosofia, ou que um texto filosófico não possa ter momentos poéticos, ou até ser escrito em versos (embora esta última possibilidade me pareça francamente contraproducente). O que afirmo é que há uma diferença irredutível entre a finalidade da poesia e a da filosofia; ora, a finalidade de um objeto artificial enquanto artificial é a sua essência. Há, portanto, segundo penso, uma diferença essencial entre poesia e filosofia. Um dos modos que encontrei para exprimir essa diferença foi através dos conceitos de metadiscurso (o discurso que fala sobre outros discursos) e discurso-objeto (aquele sobre o qual outro discurso fala). A tese que sustento é que, enquanto a filosofia é um metadiscurso terminal (sobre o qual nenhum outro discurso, isto é, nenhum discurso não-filosófico é capaz de falar), a poesia é um discurso-objeto terminal (que não fala propriamente sobre nenhum outro discurso, nem sobre coisa alguma). Não vou me estender sobre esse assunto aqui, já que o fiz no artigo que você criticou. Sustento que essa diferença não deve ser esquecida ou menosprezada, nem pelo poeta, nem pelo filósofo, nem pelos seus leitores.
Sempre afirmei que um poeta pode usar todos os recursos de que disponha para produzir um poema: todo o seu intelecto, toda a sua sensibilidade, toda a sua intuição, toda a sua razão, toda a sua experiência, todo o seu vocabulário, todo o seu conhecimento, todo o seu senso de humor, toda a sua cultura. Por que não usaria também tudo o que sabe de filosofia? Eu jamais teria a veleidade de tentar estabelecer limites para as palavras ou os pensamentos abordáveis pela poesia. Entretanto, os elementos filosóficos que um poema contenha fazem parte de uma totalidade cujo sentido – quando se trata de um poema de verdade – jamais é, ele mesmo, meramente filosófico. Não se pode, por isso, julgar um poema enquanto poema a partir da filosofia que porventura contenha. Por que? Porque uma leitura que se contente com a filosofia de um poema seria uma leitura empobrecedora, do ponto de vista poético.
Assim, os poemas de Horácio, por exemplo, são obras primas enquanto poesia: pode-se dizer que se trata de poemas profundos, pois têm muitas dimensões, muitos níveis, apontam para muitas coisas, transformam-se a cada leitura que deles fazemos; mas, do ponto de vista estritamente filosófico, são de um epicurismo simplesmente banal. Em outras palavras, os poemas de Horácio são profundos, mas uma leitura estritamente filosófica deles seria superficial. Já o poema de Parmênides, por exemplo, é uma grande obra de filosofia, mas, considerado enquanto poesia, é fraco.
Analogamente, uma filosofia pode ser expressa em termos poéticos, mas, quando a julgamos enquanto filosofia, isso não tem o menor peso. Não importa, para a avaliação de Parmênides enquanto filósofo, que ele não seja tão bom poeta quanto Empédocles, por exemplo. Penso que quem tem razão é Aristóteles, que, referindo-se a Empédocles, comenta que “também os que expõem algo médico ou físico costumam ser assim chamados [de “poetas”]: mas nada há em comum entre Homero e Empédocles fora a métrica, razão pela qual é justo chamar um de poeta e o outro de fisiólogo, em vez de poeta” (Poética, 1447b17ss.).
Isso não quer dizer que Empédocles não tivesse, como já foi dito, mais méritos poéticos do que Parmênides, por exemplo. Ao contrário, Aristóteles mesmo os reconhece (Gigon fr.17). O que Aristóteles quer dizer é que, diferentemente do que ocorre com os poemas de Homero, o livro de Empédocles Sobre a natureza é importante por algo que nada tem a ver com a poesia – isto é, pela filosofia – e não pelos seus trechos poéticos: que o que neles realmente importa, que são as idéias filosóficas, podia ter sido exposto em outras palavras, em prosa.
Alguns pensadores, como Lucrécio, podem ser apreciados ora como filósofos ora como poetas. São grande poesia, por exemplo os trechos de De rerum natura II.552 ss. ou III.832 ss., ou ainda o extraordinário
"Nequiquam, quoniam medio de fonte leporum
Surgit amari aliquit quod in ipsis floribus angat",
que resiste mal à tradução:
"Tudo é em vão pois em plena fonte da doçura
Surge algo amargo, alguma angústia em meio às flores".
(IV.1133).
Mas a verdade é que, em geral, os trechos poéticos de Lucrécio são, do ponto de vista da filosofia, fracos, e vice-versa.
Platão é evidentemente um grande escritor e um grande filósofo, mas não o considero um poeta. Os mais bem escritos dos seus diálogos o são porque têm uma função propedêutica. Eles querem seduzir os jovens bem dotados para a filosofia. É nesse sentido que competem com a poesia. Não que queiram ser poemas: ao contrário, a sua intenção é desviar o interesse dos jovens, da sofística e da poesia (que, para Platão, como transparece no diálogo “Sofista”, são praticamente a mesma coisa), para a filosofia. Geralmente, no começo de cada diálogo e, depois, em vários pontos dele, a sedução literária e erótica (no sentido carnal) cede sistematicamente lugar ao verdadeiro studium philosophandi, de modo que tanto os interlocutores de Sócrates quanto os leitores são conduzidos ao puro arrebatamento pela dialética e ao puro entusiasmo pela filosofia e pela busca da verdade.
Os verdadeiros personagens desses diálogos são a sofística, inclusive a poesia, de um lado, e a filosofia, de outro. É entre elas que se dão os embates. De certo modo, o sentido desses diálogos inclui, desde sempre, a expulsão dos poetas da Polis.
No “Fedro”, após atacar a escrita, Sócrates fala do logos que não é escrito em livros, mas na alma daquele que o aprende. Essa tese não é só do personagem platônico Sócrates, mas do próprio Platão que, falando enquanto Platão mesmo, na Carta VII – nada literária ou poética –, diz repetidamente que a verdadeira doutrina não pode ser escrita e que ele jamais pretendeu apresentá-la por escrito. Se é assim, então a função dos diálogos é apenas apontar para a verdadeira filosofia que, ágrafa, deve ser inscrita na alma. É a tese da escola de Tübingen.
“A escrita, Fedro”, diz Sócrates (275d4ss.), “tem essa qualidade esquisita, na verdade semelhante à da pintura. Pois as criaturas desta parecem estar vivas, mas se lhes indagares algo, silenciam solenemente. Assim são os escritos. Pensarias que falam com inteligência, mas se lhes perguntares, querendo entender as coisas que dizem, significam sempre as mesmas coisas. E uma vez escrito, todo discurso rola por toda parte, tanto entre os que o entendem quanto entre os que não se interessam por ele, e não sabe a quem deve falar e a quem não. E quando maltratado ou insultado, precisa sempre ser defendido pelo seu pai, pois ele próprio não é capaz de se defender”.
Observe que o que Sócrates diz aí dos escritos aplica-se somente aos discursos filosóficos. São esses que precisam ser defendidos pelos filósofos que os escreveram (ou pelos seus seguidores). Os discursos poéticos, ao contrário, não precisam – nem devem – ser defendidos pelos poetas que os compuseram.
De todo modo, o importante é que esses trechos deixam entrever a possibilidade de conceber um filósofo que simplesmente se cale e continue sendo um filósofo. Assim são alguns filósofos indianos. Ora, não chamaríamos de “poeta” alguém que não compusesse poemas. É que, enquanto a filosofia não se realiza plenamente nos discursos filosóficos, mas, ao contrário, estes são um caminho para aquela, a poesia se realiza plenamente nos discursos poéticos, que são os poemas. Mesmo etimologicamente isso é verdadeiro, pois, enquanto “filosofia” significa o puro amor à sabedoria, o que não implica fazer coisa alguma, “poesia” significa feitura, e o poema é o feito. Observe que, na Antiguidade, não se cunhou a palavra filosofema, análoga a poema. É que, enquanto o poema é a finalidade da poesia, a finalidade da filosofia – e dos textos filosóficos – é a própria filosofia.
Interessa-me agora um outro ponto. É que, no meu texto, eu havia dito que considero um erro, tanto para a poesia quanto para a filosofia, “ a vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra”. Você comenta que “no que concerne à construção de um pensamento filosófico ou poético, a partir de certo nível muito básico, falar em ‘erro’ me parece, desculpem-me o retorno da triste palavra, o único ‘erro’ possível de se cometer. Não se pode falar em ‘erro’ nem no que se refere à indiscenibilidade entre poesia e filosofia nem, tampouco, no que diz respeito ao caminho de diferenciação entre elas”.
Ora, se você acha que errei, ao dizer que é um erro a tentativa de confundir poesia e filosofia, por que não poderia eu achar que errado está quem tenta confundi-las? Quem afirma uma tese, implicitamente afirma a sua verdade; e afirmar a verdade de uma tese equivale a afirmar a falsidade da tese que a contradiz. Do mesmo modo, afirmar uma tese é, implicitamente, afirmar que ela está certa; e afirmar que ela está certa é afirmar que está errada a tese que a contradiz. Por isso, se penso que está certo dizer que a poesia e a filosofia não devem se confundir, não posso deixar de pensar que está errado quem pensa o oposto.
E aqui aproveito para tocar em mais uma diferença entre a poesia e a filosofia: é que a filosofia pretende afirmar verdades. Ora, afirmar a verdade de uma tese equivale a afirmar a falsidade da tese que a contradiz. Por isso, as teses filosóficas não são todas compatíveis umas com as outras: ao contrário, umas negam as outras. Não é possível acreditar simultaneamente em duas teses realmente contraditórias. O mesmo não ocorre com a poesia. Um poema pode ser inteiramente diferente do outro: pode até, do ponto de vista extra-poético, afirmar o oposto do que o outro afirma. Como observa Nelson Ascher no prefácio ao seu excelente Poesia alheia, um poema pode dizer que tudo muda no mundo e o outro, que não há nada de novo sob o sol. No entanto, podemos apreciar os dois – podemos acreditar nos dois – igualmente.
Pois bem, o meu texto, que você critica, não é poético, mas filosófico. Ele afirma, portanto, algumas coisas, que tem como verdadeiras e certas; consequentemente, considera falsas e erradas as teses opostas. Permita-me dizer que o fato de que você considere isso errado é, a meu ver, um dos erros a que a confusão teórica entre a poesia e a filosofia pode levar.
Finalmente, a sua tese de que, num texto filosófico “a inseparabilidade entre o pensamento e as palavras se faz tão presente quanto no poético” parece-me inteiramente insustentável. Basta lembrar o seguinte: artigos são escritos e aulas são dadas sobre a filosofia de Tales de Mileto, do qual, no entanto, não sobrou sequer um fragmento; há uma bibliografia imensa de obras sobre a filosofia de Sócrates: não me refiro ao personagem de Platão, mas ao ateniense de carne e osso, que jamais expôs sua filosofia por escrito; ora, nada nem de longe equivalente existe ou poderia existir sobre poeta algum do qual não tenha sobrevivido ao menos alguma coisa escrita.
Um grande abraço,
Antonio Cicero
19.6.07
Alberto Pucheu: Sobre "Poesia e filosofia" de Antonio Cicero
Alberto Pucheu me enviou o seguinte texto, em que faz sérias e interessantes objeções ao artigo que publiquei em 1º de junho, na minha coluna da Ilustrada. Logo publicarei a minha resposta.
Abrindo seu último texto publicado na Ilustrada, Antonio Cicero afirmou: “Existe, entre muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei mostrar algumas das razões pelas quais considero isso um erro, tanto para a poesia, quanto para a filosofia”.
Não apenas entre os contemporâneos se faz presente a realização rejeitada por Cicero, mas ela se coloca desde o começo, chegando até hoje, seja, como questão implícita para nós, nos poemas de Parmênides e Empédocles, explicitamente em Platão (apesar da exangue leitura da expulsão dos poetas), em Schlegel (“O que se pode fazer, enquanto filosofia e poesia estão separadas, está feito, perfeito e acabado; portanto, é tempo de unificar as duas”), em Novalis (“quanto mais poético, mais verdadeiro”), no Nietzsche desde quase menino (“No momento, arte e filosofia crescem, simultaneamente, em mim, de tal maneira que, aconteça o que acontecer, engendrarei, qualquer dia, um centauro”), em Euclides da Cunha (“o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano”), em Giorgio Agamben (“Por isso, sem dúvida, nem a poesia nem a filosofia, nem o verso nem a prosa poderão jamais realizar sozinhos seu empreendimento milenar. Apenas uma fala em que, em algum momento, a pura prosa da filosofia interviesse para quebrar o verso da fala poética, e em que o verso do poema sobreviesse para dobrar a prosa da filosofia, seria a verdadeira fala humana”)... À razão de Cicero, tais pensadores e muitos outros contemporâneos, por flagrarem ou criarem o desguarnecimento das fronteiras entre poesia e filosofia, “erraram”.
No que concerne à construção de um pensamento filosófico ou poético, a partir de certo nível muito básico, falar em “erro” me parece, desculpem-me o retorno da triste palavra, o único “erro” possível de se cometer. Não se pode falar em “erro” nem no que se refere à indiscernibilidade entre poesia e filosofia nem, tampouco, no que diz respeito ao caminho de diferenciação entre elas. Tais posições são experimentações criadas por uma tática que quer manifestar o que mais afeta cada um dos que se propõem a pensar tal questão. Negar uma das duas é negar a própria poesia e a filosofia como um todo, em suas múltiplas diretrizes. O fim de seu texto, que afirma “que esses dois pólos do pensamento não podem ser reduzidos um ao outro”, me faz pensar que Cicero pode estar brigando com um fantasma criado por si mesmo, porque, do lado dos que pleiteiam a possibilidade de miscigenações, nunca se tratou de querer “reduzir” a poesia à filosofia nem esta àquela. O que sempre se quer são alargamentos e desdobramentos imprevisíveis do pensamento e da escrita, nos quais, sem que se apaguem as diferenças, zonas de hibridismos são criadas.
Cicero deixa ver seu ponto de apoio: “Enquanto um poema não pode ser dito em outras palavras, aquilo que um artigo de filosofia diz pode perfeitamente ser expresso em outras palavras”. Falar de um texto filosófico com outras palavras é perder, necessariamente, seu modo de pensamento, já que, nele, a inseparabilidade entre o pensamento e as palavras se faz tão presente quanto no poético. Pelo menos desde Platão, sabe-se que a força de criação de qualquer pensamento respeitável recai na encruzilhada entre o que deve ser dito e o como deve ser dito, em que não se pode separar o assunto do modo de abordá-lo. O modo como o assunto se acomoda nos arranjos de palavras que criam um sentido turbinado é o primeiro passo exigido a qualquer pensamento para que se torne irredutível a um outro que lhe é alheio.
Por isso, nenhum comentador, ainda que possa ajudar na compreensão dele, esgota um grande texto original, que, insubstituível, permanece aberto à releitura que dele fazemos para redescobrirmos, nele, a cada vez, uma nova possibilidade. Quando grande, um texto diz o que tem a ser dito infinitamente melhor do que um secundário acerca dele; a não ser quando o secundário se torna tão grande quanto o primário, mas aí já é um outro grande texto filosófico também primário, que não fala apenas sobre o primeiro, mas por sobre ele, constituindo-se em outra obra grandiosa, irredutível também àquela, que não pode jamais ser substituído por outras palavras senão as com que existe.
Alberto Pucheu
Abrindo seu último texto publicado na Ilustrada, Antonio Cicero afirmou: “Existe, entre muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei mostrar algumas das razões pelas quais considero isso um erro, tanto para a poesia, quanto para a filosofia”.
Não apenas entre os contemporâneos se faz presente a realização rejeitada por Cicero, mas ela se coloca desde o começo, chegando até hoje, seja, como questão implícita para nós, nos poemas de Parmênides e Empédocles, explicitamente em Platão (apesar da exangue leitura da expulsão dos poetas), em Schlegel (“O que se pode fazer, enquanto filosofia e poesia estão separadas, está feito, perfeito e acabado; portanto, é tempo de unificar as duas”), em Novalis (“quanto mais poético, mais verdadeiro”), no Nietzsche desde quase menino (“No momento, arte e filosofia crescem, simultaneamente, em mim, de tal maneira que, aconteça o que acontecer, engendrarei, qualquer dia, um centauro”), em Euclides da Cunha (“o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano”), em Giorgio Agamben (“Por isso, sem dúvida, nem a poesia nem a filosofia, nem o verso nem a prosa poderão jamais realizar sozinhos seu empreendimento milenar. Apenas uma fala em que, em algum momento, a pura prosa da filosofia interviesse para quebrar o verso da fala poética, e em que o verso do poema sobreviesse para dobrar a prosa da filosofia, seria a verdadeira fala humana”)... À razão de Cicero, tais pensadores e muitos outros contemporâneos, por flagrarem ou criarem o desguarnecimento das fronteiras entre poesia e filosofia, “erraram”.
No que concerne à construção de um pensamento filosófico ou poético, a partir de certo nível muito básico, falar em “erro” me parece, desculpem-me o retorno da triste palavra, o único “erro” possível de se cometer. Não se pode falar em “erro” nem no que se refere à indiscernibilidade entre poesia e filosofia nem, tampouco, no que diz respeito ao caminho de diferenciação entre elas. Tais posições são experimentações criadas por uma tática que quer manifestar o que mais afeta cada um dos que se propõem a pensar tal questão. Negar uma das duas é negar a própria poesia e a filosofia como um todo, em suas múltiplas diretrizes. O fim de seu texto, que afirma “que esses dois pólos do pensamento não podem ser reduzidos um ao outro”, me faz pensar que Cicero pode estar brigando com um fantasma criado por si mesmo, porque, do lado dos que pleiteiam a possibilidade de miscigenações, nunca se tratou de querer “reduzir” a poesia à filosofia nem esta àquela. O que sempre se quer são alargamentos e desdobramentos imprevisíveis do pensamento e da escrita, nos quais, sem que se apaguem as diferenças, zonas de hibridismos são criadas.
Cicero deixa ver seu ponto de apoio: “Enquanto um poema não pode ser dito em outras palavras, aquilo que um artigo de filosofia diz pode perfeitamente ser expresso em outras palavras”. Falar de um texto filosófico com outras palavras é perder, necessariamente, seu modo de pensamento, já que, nele, a inseparabilidade entre o pensamento e as palavras se faz tão presente quanto no poético. Pelo menos desde Platão, sabe-se que a força de criação de qualquer pensamento respeitável recai na encruzilhada entre o que deve ser dito e o como deve ser dito, em que não se pode separar o assunto do modo de abordá-lo. O modo como o assunto se acomoda nos arranjos de palavras que criam um sentido turbinado é o primeiro passo exigido a qualquer pensamento para que se torne irredutível a um outro que lhe é alheio.
Por isso, nenhum comentador, ainda que possa ajudar na compreensão dele, esgota um grande texto original, que, insubstituível, permanece aberto à releitura que dele fazemos para redescobrirmos, nele, a cada vez, uma nova possibilidade. Quando grande, um texto diz o que tem a ser dito infinitamente melhor do que um secundário acerca dele; a não ser quando o secundário se torna tão grande quanto o primário, mas aí já é um outro grande texto filosófico também primário, que não fala apenas sobre o primeiro, mas por sobre ele, constituindo-se em outra obra grandiosa, irredutível também àquela, que não pode jamais ser substituído por outras palavras senão as com que existe.
Alberto Pucheu
17.6.07
Letra de canção e poesia
Publiquei o seguinte texto na minha coluna da Ilustrada, na Folha de São Paulo, sábado, 16 de Junho de 2007:
Letra de canção e poesia
COMO ESCREVO poemas e letras de canções, freqüentemente perguntam-me se acho que as letras de canções são poemas. A expressão "letra de canção" já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra "letra" remete à escrita. O que se quer saber é se a letra, separada da canção, constitui um poema escrito.
"Letra de canção é poema?" Essa formulação é inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar a priori quais são as formas lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?
Neste ponto, parece-me inevitável introduzir um juízo de valor. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é um bom poema. Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente precisa, pois pode estar a indagar duas coisas distintas: 1) Se uma letra de canção é necessariamente um bom poema; e 2) Se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.
Quanto à primeira pergunta, é evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema. Mas talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema. Ora, também a essa pergunta a resposta é negativa. Quem já não teve a experiência, em relação a uma letra de canção, de se emocionar com ela ao escutá-la cantada e depois considerá-la insípida, ao lê-la no papel, sem acompanhamento musical?
Não é difícil entender a razão disso. Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza quando é lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural. Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque não é feita para ser lida, mas ouvida, de modo que as questões que preocupam o letrista dizem respeito à prosódia isto é, à adaptação da letra à melodia, e ao diálogo daquela com a harmonia, o ritmo, o tom, o colorido da peça musical em questão: dizem respeito, isto é, não ao texto escrito, mas à ligação orgânica do discurso oral com a música da canção.
Mas isso, em última análise, ainda não é tudo. A letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e ouvida. Ora, como Luiz Tatit mostra em seu belíssimo livro "O Cancionista", "no mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica". Será sem dúvida por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não entendemos. E Tatit observa que, para João Gilberto, por exemplo, "o texto ideal é levemente dessemantizado, quase um pretexto para se percorrer os contornos melódicos dizendo alguma coisa (afinal, a voz, por ser voz, deve sempre dizer alguma coisa)". Em suma, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema.
A resposta para a segunda pergunta, por outro lado -isto é, se uma letra de canção é possivelmente um bom poema- é evidentemente positiva. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita. Ora, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são enumerados entre os maiores que já foram feitos. Além disso, nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.
Para dizer a verdade, o que nos intriga hoje é que haja tantos grandes poemas entre as letras gregas e provençais e tão poucos entre as modernas. Entretanto, a leitura do livro "Letra Só", de Caetano Veloso -que contém tantos grandes poemas que são também letras de canções-, fez-me pensar melhor sobre essa questão. Para o punhado de poemas de Safo, por exemplo, que nos chegaram, dentre os quais meia dúzia de obras-primas, quantos milhares de letras de canções não tiveram que ser escritos e esquecidos na Grécia antiga?
Letra de canção e poesia
COMO ESCREVO poemas e letras de canções, freqüentemente perguntam-me se acho que as letras de canções são poemas. A expressão "letra de canção" já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra "letra" remete à escrita. O que se quer saber é se a letra, separada da canção, constitui um poema escrito.
"Letra de canção é poema?" Essa formulação é inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar a priori quais são as formas lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?
Neste ponto, parece-me inevitável introduzir um juízo de valor. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é um bom poema. Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente precisa, pois pode estar a indagar duas coisas distintas: 1) Se uma letra de canção é necessariamente um bom poema; e 2) Se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.
Quanto à primeira pergunta, é evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema. Mas talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema. Ora, também a essa pergunta a resposta é negativa. Quem já não teve a experiência, em relação a uma letra de canção, de se emocionar com ela ao escutá-la cantada e depois considerá-la insípida, ao lê-la no papel, sem acompanhamento musical?
Não é difícil entender a razão disso. Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza quando é lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural. Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque não é feita para ser lida, mas ouvida, de modo que as questões que preocupam o letrista dizem respeito à prosódia isto é, à adaptação da letra à melodia, e ao diálogo daquela com a harmonia, o ritmo, o tom, o colorido da peça musical em questão: dizem respeito, isto é, não ao texto escrito, mas à ligação orgânica do discurso oral com a música da canção.
Mas isso, em última análise, ainda não é tudo. A letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e ouvida. Ora, como Luiz Tatit mostra em seu belíssimo livro "O Cancionista", "no mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica". Será sem dúvida por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não entendemos. E Tatit observa que, para João Gilberto, por exemplo, "o texto ideal é levemente dessemantizado, quase um pretexto para se percorrer os contornos melódicos dizendo alguma coisa (afinal, a voz, por ser voz, deve sempre dizer alguma coisa)". Em suma, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema.
A resposta para a segunda pergunta, por outro lado -isto é, se uma letra de canção é possivelmente um bom poema- é evidentemente positiva. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita. Ora, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são enumerados entre os maiores que já foram feitos. Além disso, nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.
Para dizer a verdade, o que nos intriga hoje é que haja tantos grandes poemas entre as letras gregas e provençais e tão poucos entre as modernas. Entretanto, a leitura do livro "Letra Só", de Caetano Veloso -que contém tantos grandes poemas que são também letras de canções-, fez-me pensar melhor sobre essa questão. Para o punhado de poemas de Safo, por exemplo, que nos chegaram, dentre os quais meia dúzia de obras-primas, quantos milhares de letras de canções não tiveram que ser escritos e esquecidos na Grécia antiga?
14.6.07
Inês Pedrosa: O lance do poema
Peço desculpas aos caríssimos frequentadores deste blog por não ter sido capaz, nos últimos dez dias, de fazer novas postagens ou de responder aos inúmeros comentários sobre o artigo “Poesia e filosofia”. É que, após pronunciar uma conferência em Lisboa, a convite da Fundação Gulbenkian, intitulada “Da atualidade do conceito de civilização”, fui ver amigos na França e na Bélgica, de modo que tanto me ficou escasso o tempo para escrever quanto precário o meu acesso à Internet. Espero, nos próximos dias, recuperar o tempo perdido.
Entrementes, reproduzo aqui, com muito orgulho, o artigo que a brilhante escritora portuguesa Inês Pedrosa publicou na sua coluna do jornal Expresso, de Lisboa, no dia 2 de junho.
Inês Pedrosa
O lance do poema
Pobres leitores deste rico Ocidente atulhado em bugigangas de papel disfarçadas de livros, tralha iletrada embrulhada em talha dourada: quereis saber quem sois? Quereis conhecer o fundo infinito do vosso ser sem fundo? Nos poetas o encontrareis. É para isso, e para vós, que eles trabalham. Não falo só nem particularmente dos fazedores de versos, pois há muito quem verseje sem que se veja um vero sopro que sério seja nesse versejar. Nem é de sério sisudo que falo, que os há empalados em dicionários e prontuários de arte, máquinas de regurgitar. Falo dos poetas convocados pela palavra, em prosa ou verso, ficção ou ensaio, não dos seus muitos e muito fáceis imitadores – aqueles costureiros do tempo que, com um retalho de real (uma frase de autocarro, uma linha de teoria, um alinhavo cinéfilo), mais um laivo de turismo virtual e um pó de humor de manual, fazem volume de estilistas – seja na versão compacta da feijoada paradigmática para triunfo académico ou na versão leve da salada histórica para consumo endémico.
O que é um poema? É algo para guardar. Essa foi a primeira coisa que aprendi com o brasileiro António Cícero, esplendoroso poeta
(também ensaísta, como é próprio dos poetas, sendo o ensaio a tempestade que prolonga o relâmpago do poema) da língua portuguesa – e das outras todas, porque a poesia é babélica. Só não dá por isto quem vive com o ouvido da alma curvado, por excesso de reverência para com a língua inglesa.
Explica-nos António Cícero no primeiro poema do seu livro «Guardar» ( edições Quasi, 2002): «Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não/ se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto/ é, iluminá-la ou ser por ela iluminado./(...) Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro/ Do que pássaros sem vôos./(...) Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar». A segunda coisa que aprendi com António Cícero foi a sair. O português do Brasil possui aliás o substantivo «saideira», que não existe em Portugal, este país que sabe exilar-se mas nunca soube sair. Os poemas contêm o dom de atraírem outros poemas, como ímans, e assim me acode de repente o poema daquela científica canção de Chico Buarque chamada «Trocando em Miúdos: «Eu bato o portão sem fazer alarde/ eu levo a carteira de identidade/ uma saideira, muita saudade (...)». No último poema de «A Cidade e os Livros» (edições Quasi, 2006), Cícero escreve: «Largar o cobertor, a cama, o / medo, o terço, o quarto, largar/ toda simbologia e religião; largar o/ espírito, largar a alma, abrir a/ porta principal e sair. Esta é/ a única vida e contém inimaginável/ beleza e dor. Já o sol,/ as cores da terra e o/ ar azul – o céu do dia – /mergulharam até a próxima aurora; a/ noite está radiante e Deus não/ existe nem faz falta. (...)». Os poemas de António Cícero são vertiginosos, sábios, simples e autênticos como espelhos. São também, muitas vezes, carnalmente eruditos, viajam pelo interior do tempo para mostrar a face actual, quotidiana, de Ícaro e Dédalo e Prometeu. No prefácio de «A Cidade e os Livros» José Miguel Wisnik sublinha: « Uma dicção clássica, grega e latina, capaz de odes e nênia, acha o ponto exato da ruína eternamente contemporânea». Wisnik é, além de arguto ensaísta, um inspiradíssimo músico – actuará no próximo dia 29 na Culturgest, em Lisboa, espectáculo que recomendo vivamente. António Cícero deu ontem uma lição acerca «Da actualidade do conceito de civilização», no ciclo «O Estado do Mundo» da Fundação Gulbenkian – o melhor da cultura brasileira começa a desembarcar regularmente em Portugal.
A terceira coisa que aprendi com António Cícero foi a reivindicar o direito ao juízo de valor, e, em particular, ao juízo estético. Na introdução ao seu prodigioso volume de ensaios «Finalidades sem Fim» (edições Quasi, 2007), Cícero esclarece que tais juízos são «uma exigência da própria poesia». Utilizo aqui o adjectivo «prodigioso» com toda a sua artilharia semântica: neste espaço não cabe o desossar de um livro de 300 páginas, pelo que o adjectivo serve de exortação a que corram a comprá-lo – mesmo que não vejam a utilidade da poesia (o livro também é sobre isso), ou da música, ou da pintura, ou sequer da filosofia. Cícero tem a arte de tornar claras as coisas obscuras e de caminhar, serenamente, contra as evidências, conduzindo-nos a descobrir que «muitas vezes o óbvio é meramente o impensado» (p. 91). O seu léxico é transparente e o seu espírito uma biblioteca de Alexandria. O primeiro e o terceiro ensaios do livro – «Poesia e Paisagens Urbanas» e «O Tropicalismo e a MPB» – oferecem-nos reflexões inteligentíssimas sobre o mito da vanguarda. O segundo e o quarto – «A falange de máscaras de Waly Salomão» e «Drummond e a modernidade», dão uma surra revigorante nos dogmatismos crípticos. Os outros, girando em torno desse diamante central intitulado «Poesia e Filosofia», são investigações tão minuciosas quanto surpreendentes sobre essa finalidade sem fim que, no trilho de Kant, Cícero persegue: a beleza.
Entrementes, reproduzo aqui, com muito orgulho, o artigo que a brilhante escritora portuguesa Inês Pedrosa publicou na sua coluna do jornal Expresso, de Lisboa, no dia 2 de junho.
Inês Pedrosa
O lance do poema
Pobres leitores deste rico Ocidente atulhado em bugigangas de papel disfarçadas de livros, tralha iletrada embrulhada em talha dourada: quereis saber quem sois? Quereis conhecer o fundo infinito do vosso ser sem fundo? Nos poetas o encontrareis. É para isso, e para vós, que eles trabalham. Não falo só nem particularmente dos fazedores de versos, pois há muito quem verseje sem que se veja um vero sopro que sério seja nesse versejar. Nem é de sério sisudo que falo, que os há empalados em dicionários e prontuários de arte, máquinas de regurgitar. Falo dos poetas convocados pela palavra, em prosa ou verso, ficção ou ensaio, não dos seus muitos e muito fáceis imitadores – aqueles costureiros do tempo que, com um retalho de real (uma frase de autocarro, uma linha de teoria, um alinhavo cinéfilo), mais um laivo de turismo virtual e um pó de humor de manual, fazem volume de estilistas – seja na versão compacta da feijoada paradigmática para triunfo académico ou na versão leve da salada histórica para consumo endémico.
O que é um poema? É algo para guardar. Essa foi a primeira coisa que aprendi com o brasileiro António Cícero, esplendoroso poeta
(também ensaísta, como é próprio dos poetas, sendo o ensaio a tempestade que prolonga o relâmpago do poema) da língua portuguesa – e das outras todas, porque a poesia é babélica. Só não dá por isto quem vive com o ouvido da alma curvado, por excesso de reverência para com a língua inglesa.
Explica-nos António Cícero no primeiro poema do seu livro «Guardar» ( edições Quasi, 2002): «Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não/ se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto/ é, iluminá-la ou ser por ela iluminado./(...) Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro/ Do que pássaros sem vôos./(...) Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar». A segunda coisa que aprendi com António Cícero foi a sair. O português do Brasil possui aliás o substantivo «saideira», que não existe em Portugal, este país que sabe exilar-se mas nunca soube sair. Os poemas contêm o dom de atraírem outros poemas, como ímans, e assim me acode de repente o poema daquela científica canção de Chico Buarque chamada «Trocando em Miúdos: «Eu bato o portão sem fazer alarde/ eu levo a carteira de identidade/ uma saideira, muita saudade (...)». No último poema de «A Cidade e os Livros» (edições Quasi, 2006), Cícero escreve: «Largar o cobertor, a cama, o / medo, o terço, o quarto, largar/ toda simbologia e religião; largar o/ espírito, largar a alma, abrir a/ porta principal e sair. Esta é/ a única vida e contém inimaginável/ beleza e dor. Já o sol,/ as cores da terra e o/ ar azul – o céu do dia – /mergulharam até a próxima aurora; a/ noite está radiante e Deus não/ existe nem faz falta. (...)». Os poemas de António Cícero são vertiginosos, sábios, simples e autênticos como espelhos. São também, muitas vezes, carnalmente eruditos, viajam pelo interior do tempo para mostrar a face actual, quotidiana, de Ícaro e Dédalo e Prometeu. No prefácio de «A Cidade e os Livros» José Miguel Wisnik sublinha: « Uma dicção clássica, grega e latina, capaz de odes e nênia, acha o ponto exato da ruína eternamente contemporânea». Wisnik é, além de arguto ensaísta, um inspiradíssimo músico – actuará no próximo dia 29 na Culturgest, em Lisboa, espectáculo que recomendo vivamente. António Cícero deu ontem uma lição acerca «Da actualidade do conceito de civilização», no ciclo «O Estado do Mundo» da Fundação Gulbenkian – o melhor da cultura brasileira começa a desembarcar regularmente em Portugal.
A terceira coisa que aprendi com António Cícero foi a reivindicar o direito ao juízo de valor, e, em particular, ao juízo estético. Na introdução ao seu prodigioso volume de ensaios «Finalidades sem Fim» (edições Quasi, 2007), Cícero esclarece que tais juízos são «uma exigência da própria poesia». Utilizo aqui o adjectivo «prodigioso» com toda a sua artilharia semântica: neste espaço não cabe o desossar de um livro de 300 páginas, pelo que o adjectivo serve de exortação a que corram a comprá-lo – mesmo que não vejam a utilidade da poesia (o livro também é sobre isso), ou da música, ou da pintura, ou sequer da filosofia. Cícero tem a arte de tornar claras as coisas obscuras e de caminhar, serenamente, contra as evidências, conduzindo-nos a descobrir que «muitas vezes o óbvio é meramente o impensado» (p. 91). O seu léxico é transparente e o seu espírito uma biblioteca de Alexandria. O primeiro e o terceiro ensaios do livro – «Poesia e Paisagens Urbanas» e «O Tropicalismo e a MPB» – oferecem-nos reflexões inteligentíssimas sobre o mito da vanguarda. O segundo e o quarto – «A falange de máscaras de Waly Salomão» e «Drummond e a modernidade», dão uma surra revigorante nos dogmatismos crípticos. Os outros, girando em torno desse diamante central intitulado «Poesia e Filosofia», são investigações tão minuciosas quanto surpreendentes sobre essa finalidade sem fim que, no trilho de Kant, Cícero persegue: a beleza.
2.6.07
Poesia e Filosofia
O seguinte artigo foi publicado sábado, 1º de junho, na minha coluna da Folha de São Paulo:
Poesia e filosofia
Assim são os poemas: objetos de palavras, com seus sentidos, sons, referentes, ritmos, ecos
EXISTE, ENTRE muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei mostrar algumas das razões pelas quais considero isso um erro, tanto para a poesia, quanto para a filosofia.
Um poema quer, em primeiro lugar, ser uma obra como qualquer outra obra de arte. Pensemos num dos quadros em que Rembrandt retrata um velho. O velho é um dos elementos do quadro. Não podemos mais saber se o retrato lhe é fiel; não sabemos sequer se esse velho realmente existiu.
Tudo somado, o que realmente conta é o que Rembrandt fez, não só com o velho, mas com os demais objetos retratados, e com as luzes, as sombras, as cores, as linhas, os planos, os volumes etc. O quadro solicitará de nós a imaginação, a memória, o intelecto, a emoção, a cultura, a sensibilidade, talvez até o humor. Todas essas coisas brincarão umas com as outras no nosso espírito. No final, o quadro não é sobre o velho, embora o velho faça parte de tudo o que o quadro é.
No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o quadro é aquilo sobre o qual nós pensaremos e falaremos. Longe de existir para falar sobre um objeto, o quadro existe para ser um objeto sobre o qual e a partir do qual nós pensaremos e falaremos.
Pois bem, assim são os poemas: objetos de palavras, com todos os seus sentidos, seus referentes, seus sons, seus ritmos, suas sugestões, seus ecos. À primeira vista, eles nos falam, por exemplo, sobre uma pedra que havia no meio do caminho. Mas eles não são, no fundo, feitos para falar sobre pedras ou sobre coisa alguma. Ao contrário: como os quadros, eles são feitos para que nós pensemos sobre eles, e para que pensemos a partir deles com todas as nossas faculdades, e até com nossos corpos.
Nada mais longe disso do que a filosofia. Se o poema não quer ser um pensamento sobre objeto algum, mas quer ser um objeto do pensamento, a filosofia quer ser o pensamento da totalidade dos objetos, sem ser objeto de pensamento algum: a não ser do próprio pensamento filosófico, isto é, da filosofia mesma.
Enquanto o valor do poema não é dado pelo que fale sobre coisa alguma, pois a sua função, enquanto poema, não é falar sobre coisa alguma, o valor do discurso filosófico está no que fala sobre as coisas, mesmo quando a coisa de que fala seja a própria filosofia.
Enquanto um poema, sendo um objeto, não pode ser dito em outras palavras sem passar a ser outro objeto, isto é, outro poema, aquilo que um artigo de filosofia diz pode perfeitamente ser expresso em outras palavras: tanto assim, que falamos da filosofia de Sócrates, sem que suas palavras tenham sobrevivido.
Os discursos sobre um texto poético se multiplicam justamente porque o que ele diz não pode ser separado das palavras com que o diz, de modo que todas as demais palavras com as quais tentamos exprimi-lo ou explicá-lo resultam sempre insuficientes. Já os discursos -eles mesmos filosóficos- sobre um texto filosófico se multiplicam porque o que este tenciona dizer não é inteiramente expresso pelas palavras com que o diz, de modo que sempre pode e deve ser expresso e explicado melhor por outras palavras.
As grandes intuições filosóficas são poucas, e aqueles que as têm são grandes pensadores. São essas intuições que procuramos capturar quando voltamos aos textos originais e primários, ainda que textos posteriores e secundários já os tenham explicado melhor, no todo ou em alguns dos seus aspectos. É que não voltamos àqueles textos como a um poema que sabemos ser insubstituível e do qual cada uma das nossas leituras é sempre inadequada ou insuficiente, mas, ao contrário, voltamos a eles como a um texto que é ele mesmo inadequado ao que tenciona dizer, mas que, embora inadequado, é de todo modo o texto de um grande pensador, isto é, de alguém que supomos ter ido muito longe em pensamento, ainda mais longe do que aquilo que conseguiu exprimir por escrito e do que aquilo que, inadequadamente expresso por escrito, foi mais bem explicado por outros. Relemos tais textos como indicações, indícios ou sintomas de algo que eles mesmos não chegaram a exprimir adequadamente.
São essas algumas das razões pelas quais penso que esses dois pólos do pensamento, a poesia e a filosofia, não podem ser reduzidos um ao outro.
Poesia e filosofia
Assim são os poemas: objetos de palavras, com seus sentidos, sons, referentes, ritmos, ecos
EXISTE, ENTRE muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei mostrar algumas das razões pelas quais considero isso um erro, tanto para a poesia, quanto para a filosofia.
Um poema quer, em primeiro lugar, ser uma obra como qualquer outra obra de arte. Pensemos num dos quadros em que Rembrandt retrata um velho. O velho é um dos elementos do quadro. Não podemos mais saber se o retrato lhe é fiel; não sabemos sequer se esse velho realmente existiu.
Tudo somado, o que realmente conta é o que Rembrandt fez, não só com o velho, mas com os demais objetos retratados, e com as luzes, as sombras, as cores, as linhas, os planos, os volumes etc. O quadro solicitará de nós a imaginação, a memória, o intelecto, a emoção, a cultura, a sensibilidade, talvez até o humor. Todas essas coisas brincarão umas com as outras no nosso espírito. No final, o quadro não é sobre o velho, embora o velho faça parte de tudo o que o quadro é.
No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o quadro é aquilo sobre o qual nós pensaremos e falaremos. Longe de existir para falar sobre um objeto, o quadro existe para ser um objeto sobre o qual e a partir do qual nós pensaremos e falaremos.
Pois bem, assim são os poemas: objetos de palavras, com todos os seus sentidos, seus referentes, seus sons, seus ritmos, suas sugestões, seus ecos. À primeira vista, eles nos falam, por exemplo, sobre uma pedra que havia no meio do caminho. Mas eles não são, no fundo, feitos para falar sobre pedras ou sobre coisa alguma. Ao contrário: como os quadros, eles são feitos para que nós pensemos sobre eles, e para que pensemos a partir deles com todas as nossas faculdades, e até com nossos corpos.
Nada mais longe disso do que a filosofia. Se o poema não quer ser um pensamento sobre objeto algum, mas quer ser um objeto do pensamento, a filosofia quer ser o pensamento da totalidade dos objetos, sem ser objeto de pensamento algum: a não ser do próprio pensamento filosófico, isto é, da filosofia mesma.
Enquanto o valor do poema não é dado pelo que fale sobre coisa alguma, pois a sua função, enquanto poema, não é falar sobre coisa alguma, o valor do discurso filosófico está no que fala sobre as coisas, mesmo quando a coisa de que fala seja a própria filosofia.
Enquanto um poema, sendo um objeto, não pode ser dito em outras palavras sem passar a ser outro objeto, isto é, outro poema, aquilo que um artigo de filosofia diz pode perfeitamente ser expresso em outras palavras: tanto assim, que falamos da filosofia de Sócrates, sem que suas palavras tenham sobrevivido.
Os discursos sobre um texto poético se multiplicam justamente porque o que ele diz não pode ser separado das palavras com que o diz, de modo que todas as demais palavras com as quais tentamos exprimi-lo ou explicá-lo resultam sempre insuficientes. Já os discursos -eles mesmos filosóficos- sobre um texto filosófico se multiplicam porque o que este tenciona dizer não é inteiramente expresso pelas palavras com que o diz, de modo que sempre pode e deve ser expresso e explicado melhor por outras palavras.
As grandes intuições filosóficas são poucas, e aqueles que as têm são grandes pensadores. São essas intuições que procuramos capturar quando voltamos aos textos originais e primários, ainda que textos posteriores e secundários já os tenham explicado melhor, no todo ou em alguns dos seus aspectos. É que não voltamos àqueles textos como a um poema que sabemos ser insubstituível e do qual cada uma das nossas leituras é sempre inadequada ou insuficiente, mas, ao contrário, voltamos a eles como a um texto que é ele mesmo inadequado ao que tenciona dizer, mas que, embora inadequado, é de todo modo o texto de um grande pensador, isto é, de alguém que supomos ter ido muito longe em pensamento, ainda mais longe do que aquilo que conseguiu exprimir por escrito e do que aquilo que, inadequadamente expresso por escrito, foi mais bem explicado por outros. Relemos tais textos como indicações, indícios ou sintomas de algo que eles mesmos não chegaram a exprimir adequadamente.
São essas algumas das razões pelas quais penso que esses dois pólos do pensamento, a poesia e a filosofia, não podem ser reduzidos um ao outro.