26.9.10

Ruy Belo: "Gênese e desenvolvimento do poema"




Gênese e desenvolvimento do poema

Vozes vizinhas vindas da infância
através do sotaque de quem fala aqui ao lado
o sol inexorável sobre as águas
pressentimentos vindos com o vento
a velha fortaleza a vista da baía
a maré cheia a tarde as nuvens o azul
memória disto tudo noutro verão noutro lugar
e pelo meu olhar visivelmente vitimado
tudo possível pela mesa e pela esferográfica
pelo papel desculpa ó minha amiga pelo bar
a solidão assegurada pela multidão
a luz a hora as lérias o domingo
o cruzeiro de pedra o largo o automóvel
tudo isto não importa importam só
as mínimas e únicas palavras que me ficam
                                        disto tudo
e tudo isto fixam: «tempo suspenso» ou «mar
                                        imóvel»
ou «sinto-me bem» ou – que sei eu? – «alguém
                                        morreu»



BELO, Ruy. Transporte no tempo. Introdução de Fernando Pinto Amaral. Lisboa: Editorial Presença, 1997.

18 comentários:

  1. Prezado Cícero:

    Leio e curto muito seu blog, mas tem uma coisa que vem me incomodando cada vez mais. Antenadíssimo como você é, certamente soube que o Brasil, nosso país, está na lista dos 10 países com pior distribuição de renda no mundo, isto é, no planeta Terra. Pior que nós, só Camarões, Madagascar, África do Sul e Tailândia. A classificação é da ONU e não de nenhum instituto maluco da Venezuela, Cuba ou Coréia do Norte. Diante dessa barbárie absoluta, qual o sentido de qualquer discussão estética? Se lhe pergunto é porque não sei. Sei lá, acho que concordo com a opinião que diz que se não há justiça numa sociedade é melhor que ela queime até as fundações. Acho que tudo isso é absolutamente intolerável! Que país é esse? Quem somos nós (eu inclusive)que convivemos ano após ano com tudo isso como se fosse a coisa mais comum do mundo?

    Grande abraço!

    Felipe O. Fontoura

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  2. Amado Cicero,


    Um poema novo:

    "Equação de Clapeyron" - Para Lídia e Péricles.

    o amor não cabe na cabeça
    o amor não cabe na razão
    o amor não cabe em pensamento
    o amor não cabe nas sinapses
    o amor não cabe em coração
    o amor não cabe em batimento
    o amor não cabe... não se esqueça!
    o amor não cabe em folha ou lápis
    o amor esvai-se... (em si... silêncio!)



    Abração,
    A. Nunes.

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  3. Caro Felipe,

    As culturas se desenvolvem de modo desigual. Se, para fazer arte ou filosofia ou ciência, fosse preciso esperar que houvesse justiça social, estaríamos ainda nas cavernas. A própria ideia de justiça social é uma conquista que se desenvolveu muito antes de haver justiça social. Ora, sem essa ideia, nem se cogitaria de justiça social. Aliás, a própria ideia de justiça social tem um componente estético que se desenvolveu antes de haver justiça social. Portanto, se a humanidade fosse guiada pela ideia de que há prioridades absolutas tais que, antes de serem atendidas, nada deve ser feito, não haveria sequer história.

    Ademais, o Brasil não está estagnado. Cito as conclusões do estudo do Centro de Políticas Sociais (CPS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que compara julho de 2009 com julho de 2008:

    “O conjunto das classes A e B chegou a cair 0,5% entre julho do ano passado e julho deste ano, em contraste com o crescimento de 35,7% entre julho de 2003 e o mesmo mês do ano passado. Por outro lado, a classe C, cresceu 2,5% de julho do ano passado até julho de 2009, principalmente pela passagem de pessoas das classes mais baixas para a classe média. A classe C tinha crescido 23,1% entre os meses de julho de 2003 e 2008. [...] Entre 2003 e 2008, 27 milhões de pessoas - "meia França", salientou - foram incorporadas ao conjunto de classes A, B e C e 24 milhões deixaram a pobreza.”

    E cito Elio Gaspari (3/01/2010), que cita a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 1996 e 2002 (anos tucanos) e daí a de 2008(anos petistas). :

    “Em 1996, quando Fernando Henrique Cardoso tinha um ano de governo, 48,5% dos domicílios pobres tinham água encanada. Em 2002, ao fim do mandato tucano, a percentagem subiu para 59,6%. Uma diferença de 11,1 pontos percentuais. Em 2008, no mandato petista, chegou-se a 68,3% dos domicílios, com uma alta de 8,7 pontos.

    Coisa parecida sucedeu com o avanço no saneamento. Durante o tucanato, os domicílios pobres com acesso à rede de esgoto chegaram a 41,4%, com uma expansão de 9,1 pontos percentuais. Nosso Guia melhorou a marca, levando-a para 52,4%, avançando 11,3 pontos.
    O acesso à luz elétrica passou de 79,9% em 1996 para 90,8% em 2002. Em 2008, havia luz em 96,2% dos domicílios pobres.

    Esses três indicadores refletem políticas públicas. Indo-se para itens que resultam do aumento da renda e do acesso ao crédito, o resultado é o mesmo.

    Durante o tucanato, os telefones em domicílios do andar de baixo pularam de 5,1% para 28,6%. Na gestão petista, chegaram a 64,8% das casas. Geladeira? 46,9% em 1996, 66,1% em 2002 e 80,1% em 2008.
    O indicador da coleta de lixo desestimula exaltações partidárias. A percentagem de domicílios pobres servidos pela coleta pulou de 36,9% em 1996 para 64,4% em 2008. Glória tucana ou petista? Nem uma nem outra. O lixo é um serviço municipal.

    Nunca antes na história deste país um governante se apropriou das boas realizações alheias e nunca antes na história deste país um partido político envergonhou-se de seus êxitos junto ao andar de baixo com a soberba do tucanato.”

    A estética é uma dimensão essencial da vida humana. Dizer que a discussão estética não tem sentido antes de se resolver o problema da distribuição de renda é que é barbárie tão séria quanto dizer que não se deve tentar curar o câncer antes de resolver o problema da distribuição de renda; ou, ao contrário, que não se deve pensar em resolver o problema de distribuição de renda antes de descobrir a cura do câncer. A verdade é que cada um de nós deve fazer o que pode, na sua área de competência.

    Abraço

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  4. Caro Cícero:

    Você e o Felipe me perdoem por pegar carona na discussão de vocês.

    Gosto muito do poeta latino Horácio, mas não dá para esquecer que ele viveu e produziu em um mundo brutalizada pela escravidão. Fez o melhor que pode, mas foi maculado por não ter esbravejado contra uma situação absurdamente injusta. O mesmo vale para o grande Aristóteles, que, mais culpado, justificou a escravidão do seu tempo. Ora, é impossível que esses dois gênios não tivessem claro que é errado escravizar outras pessoas. Conviviam com escravos, falavam com escravos, mantinham relações sexuais com escravos. Era impossível que não percebessem que os escravos eram, afinal de contas, seres humanos. Justificativas fajutas de que a escravidão era comum na época deles são isso mesmo: justificativas fajutas. Não é diferente conosco. Ora a pobreza está diminuindo no Brasil, mas a esse passo vamos precisar de mais 500 anos para o país ser minimante civilizado.

    Na Balada dos Enforcados, Villon diz algo assim: “irmãos humanos que depois de nós virão, não tenhais contra nós os corações endurecidos”, mas os que virão depois nos julgarão pela rapidez com que nós nos adaptamos a uma situação intoleravelmente injusta.

    Abraços para ti e para o preocupado Felipe.

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  5. Anônimo,

    Você acha que o mundo seria melhor se Horácio não tivesse escrito seus poemas? Ou que os filósofos não tivessem escrito seus tratados? Que não deviam ter feito isso num mundo em que existia a escravidão?

    Saiba que foi a partir de conceitos filosóficos que a escravidão acabou sendo condenada. E que, apesar de Aristóteles ter considerado normal a escravidão, a verdade é que, sem os conceitos que ele desenvolveu em seus tratados, teria sido muito mais difícil para outros pensadores, mais tarde, terem argumentos para atacar a escravidão. Ao contrário do que pretendem os cristãos, por exemplo, não há uma palavra contra a escravidão na Bíblia nem nos pais da Igreja.

    Você está inteiramente enganado quanto a ser óbvio que os escravos eram seres humanos. Lévi-Strauss mostrou que “a noção de humanidade a englobar, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana é de aparição muito tardia e de expansão limitada”. Condenar Horácio ou Aristóteles por pensar como todo o mundo de sua época é absurdo. Marx já dizia isso. E, uma vez que nunca ninguém conheceu uma situação totalmente justa, é simplesmente falso que “nos adaptamos” a uma situação injusta.
    E que história de 500 anos é essa? A situação da classe operária na Inglaterra do século 19 era pior do que a da classe operária brasileira de hoje, e foi mudada em menos de 100 anos. Não se pode prever o ritmo das evoluções históricas, mas tudo indica que a situação brasileira tende a mudar em poucas décadas, sem necessidade de “Revolução”.

    As “indignações” “revolucionárias”, produtos de ideologias que, desprezando o mundo real e a história real, querem substituí-las por fantasias, costumam levar a situações horrorosas, que atrasam os verdadeiros processos históricos de transformação.

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  6. Volver

    Olha, que enquanto a chuva cai
    Mansamente
    Seu olhar não me sai da mente
    E você, sem acreditar
    Vê o mundo passar
    Lentamente
    Sem essa
    A vida é mesmo assim
    Rompendo dentro de mim
    O colírio inverte o movimento,
    Num esforço, intenso
    Volver a lágrima, volver,
    Só é impossível te esquecer

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  7. Caro Cícero,

    Não tenho simpatia especial por Marx, mas as chamadas situações revolucionárias não são desejadas por muita gente, salvo por alguns lunáticos desprezíveis. As situações revolucionárias surgem porque uma minoria privilegiada se obstina absurdamente em se aferrar a seus privilégios.

    Dizem, e eu concordo, que teria sido melhor para a França de 1789 e a Rússia de 1917 terem evoluído naturalmente para estados democráticos, mas isso não se deu porque os privilegiados, ao contrário, por exemplo, da Inglaterra, não queriam ceder nada. Não cederam nada e perderam tudo, levando de passagem, a totalidade da sociedade em que exploravam brutalmente.

    Revoluções ocorrem porque os que estão por baixo, a gentalha, a patuléia, a turbamalta geralmente não possuem a paciência nem o refinamento dos filósofos estóicos.

    Quem terminou com a escravidão não foram os filósofos, nem os religiosos, que como você corretamente notou, que conviveram séculos com ela, mas um escocês chamado James Watt, que em 1769 patenteou a máquina a vapor, o que permitiu a substituição do trabalho humano pela máquina (síntese energética). Se dissermos que foram os filósofos que teorizaram para que esse invento pudesse um dia ser concretizado, cairemos em uma série de patéticos absurdos.

    Não me sinto à vontade para falar pelos cristãos, mas duvido que alguém possa provar que Jesus Cristo, na maneira que o conhecemos nos Evangelhos, fosse a favor da escravidão ou pelo menos conivente com ela. Até porque, afirma-se constantemente (Nietzsche entre eles), que foram justamente os escravos seus primeiros adeptos.

    Pobre Lévi-Strauss! Foi elevado por você a triste situação de ideólogo da escravidão. Logo ele que mostrou na “Ciência do Concreto”, as sutilezas do pensamento selvagem. Se um índio da Amazônia, digníssimo membro de uma sociedade ágrafa, é capaz de 17 procedimentos para descobrir o curare ou o timbó, é bem mais fácil a um filósofo grego e um poeta latino descobrirem que um escravo é um ser humano. Se não descobriram foi porque viviam felizes e cômodos em um mundo abjeto de escravidão.

    Não vá você, com as potentes armas forjadas pelo grande Claude, atirar a queima rouba no conceito de homem, porque vai atingir inevitavelmente o conceito de autor, que lhe é tão caro.

    Já faz muitas e muitas décadas que a situação do operariado brasileiro vai mudar em poucas décadas. Seu argumento é tão curioso como os dos escravocratas do II Império (José de Alencar entre eles) que diziam que os escravos brasileiros viviam melhor que os operários de Manchester. Talvez fosse o caso de reintroduzir a escravidão para melhorar a vida da classe operária.

    O Brasil é a 7ª maior economia do mundo (PIB de 1,797 bilhões de dólares), mas também está no grupo do dez países com a maior concentração de rendas do planeta (é o sétimo). Isso não lhe incomoda? Ou você é adepto da teoria do bolo que vai crescer crescer então será dividido?

    Essa nada honrosa posição de concentração obscena de renda permanece inalterada no Brasil durante as últimas décadas, oscilando sempre dentre as 10 últimas colocações. Me abstenho de fazer qualquer comentário. Os fatos brutos bastam.

    Só um dos seus argumentos me seduziu de imediato. O que trata da necessidade vital da poesia de Horácio. Pois é essa grandiosa poesia que me faz pensar que a atividade poética pode ser algo mais do que se passa por poesia atualmente. Mas mesmo assim, teria sido melhor que Horácio tivesse sido poeta e indignado, porque a indignação é sempre salutar, mesmo quando elas provem de ideologias que desprezam o mundo real, já que esse mundo, e os que nele se comprazem, merece mesmo desprezo.

    Grande abraço!

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  8. curisosa esta discussão sobre arte x política, que é tema da bienal esse ano e que vem gerando polêmicas.
    cícero, qual o limite da arte?
    o gil vicente, cujas obras parecem que serão (ou foram) retiradas da bienal, foi cerceado na sua liberdade criativa? ou sua liberdade atentou contra a liberdade da sociedade?
    será que o corte no pescoço de lula, ou o revolver apontado para a cabeça de fhc não refletem algo estético que se encontra acima das questões jurídico-burocráticas?
    um abraço.

    (http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/09/bienal-defende-permanencia-de-obras-em-que-artista-ataca-fhc-e-lula.html)

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  9. Anônimo,

    Não distorça minhas palavras!

    1 – Eu não disse que os filósofos acabaram com a escravidão, mas que a filosofia nos deu conceitos – armas intelectuais – para atacar a escravidão. A constituição francesa de 1795 incluiu a abolição da escravidão na sua Declaração dos Direitos do Homem. Sabe-se que tanto a Revolução Francesa quanto essa Declaração foram influenciadas pelos filósofos iluministas.

    2 – Se você pensa que é “ideólogo da escravidão” aquele que reconhece explicitamente que “a noção de humanidade a englobar, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana é de aparição muito tardia e de expansão limitada”, então é você quem pensa – muito mal – que Lévi-Strauss é ideólogo da escravidão. E ele disse ainda que “essa atitude de pensamento em nome da qual rejeitam-se os ‘selvagens’ (ou todos os que são chamados de tais) para fora da humanidade é justamente a atitude mais marcante e mais distintiva dos próprios selvagens”. Ou seja, ele sabia que os “selvagens” tinham 17 procedimentos para descobrir o timbó, mas não consideravam quem pertencesse a outra etnia como pertencente à humanidade.

    Faça um esforço para pensar bem: ao condenar o filósofo grego e o poeta latino – que simplesmente se comportavam como a humanidade inteira do seu tempo – você está condenando a humanidade inteira. Será que tem a veleidade de pensar que, se vivesse nessa época, condená-los-ia e, com isso, salvar-se-ia?

    Pelo jeito, você não entendeu nada do que estou a dizer, se supõe que estou a atacar o conceito de “humanidade” de que fala Lévi-Strauss, quando estou precisamente a defendê-lo, como uma tardia, mas importantíssima, descoberta filosófica.

    3 – De novo, eu jamais disse que acho boa a concentração de renda brasileira. O que digo é que isso está em transformação. Devemos fazer o possível para acelerar essa transformação, que, aliás, já está a se acelerar há mais ou menos uma década.

    Dito isso, a verdade é que só por um extremo ressentimento travestido de moralismo pode alguém querer afirmar que, dada essa concentração de renda, o mundo real é desprezível. Ou que é imoral fazer arte, filosofia ou ciência, ou ser feliz em tal mundo.

    Dado que, sem arte, filosofia, ciência e alegria o mundo não teria melhorado, imagine como ele seria, se todos sempre tivessem pensado assim, desde a época da escravidão!

    Em suma, o mundo que você defende é infinitamente pior, mais triste e mais desprezível do que o mundo real.

    Mas estou a me repetir. Não tenho tempo para isso. Para mim, chega.

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  10. Antônio Cícero,

    Gosto muito do seu blog(adoro,amo muito poesia),mas durante alguns dias,venho lendo um "debate"entre você e um tal de "anônimo"...Faço uma pequena pergunta:cadê o comentário dele?Só tem a sua resposta.Logo na hora que eu estava esperando vê o que ele tinha a dizer...Parece que você ficou chateado ou eu estou enganada?
    Continue com o debate,nós(seus admiradores)gostamos muito de ver você falando.
    muitos beijos. Michele(SP)

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  11. Michele,

    obrigado por me alertar. Na minha cabeça, eu tinha publicado o comentário dele. Desculpe. Mas agora está lá.

    Abraço

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  12. maravilha, cícero. não dá pra "jogar cinzas na comida" e considerar a alegria uma coisa imoral ou obscena.

    “O sofrimento (...)
    não acende um halo
    em volta de tua cabeça
    (...)
    A dor
    te iguala a ratos e baratas
    que também de dentro dos esgotos
    espiam o sol
    e no seu corpo nojento
    de entre fezes
    querem estar contentes."
    (gullar)

    o desprezo ao mundo real e à vida é de fato das coisas mais desprezíveis que podem existir (nietzsche tinha razão).
    o anônimo me pareceu morbidamente niilista. o subtexto que me ficou foi: "então é isso, pessoal, deitem e morram!"
    porque as revoluções são desprezíveis, a arte ou o pensamento produzidos por "escravocratas" são desprezíveis, a melhora - ainda que insuficiente - nas condições de vida das classes mais baixas são desprezíveis, o homem e a vida são desprezíveis.
    fica difícil não supor que o anônimo, vendo-se pairar de forma exclusiva por sobre toda injustiça e má literatura, se sente o máximo.
    não dá pra merdificar todas as coisas sem sujar o próprio brim de merda.
    garanto que ele sentiu muito prazer (neste mundo real mesmo, e que outro?) quando postou seu "eruditíssimo" comentário - e portanto, se formos fiéis a sua lógica, mereceria todo o nosso... desprezo.

    ps - há algo, porém, de que discordo. aristóteles pode, sim, ser condenado por não haver condenado a escravidão. isso não é ser a-histórico ou "condenar a humanidade inteira de seu tempo". entender a mentalidade de uma época não me impede de condenar - mesmo num gênio maior - algumas condutas. aristóteles também sofria de humanidade e cometeu muitos equívocos (intelectuais -música das esferas, geocentrismo, por exemplo - e morais). obviamente, é muito mais imoral e asqueroso ser escravagista hoje do que na antiguidade clássica, mas um homem como aristóteles, tão original e brilhante, que pensou tantas coisas para além dos homens de seu tempo, poderia, sim, ter pensado para além da visão helenocêntrica e reconhecido a humanidade comum a todos os homens...
    isso não significa dizer que aristóteles era um crápula ou um hipócrita; isso só me prova que ninguém é irrestritamente admirável!

    concordo com que, via de regra, os homens são homens de seu tempo. se vivesse naquela época - eu, que não sou nenhum aristóteles - se não fosse escravo, acharia completamente normal e aceitável a escravidão.
    mas esta é a eterna prerrogativa dos contemporâneos: julgar os mortos.
    (nossos tataranetos possivelmente nos acharão lamentáveis quando virem como lidávamos com nossas crianças de rua...)
    sou um sujeito de meu tempo e por isso posso julgar aristóteles: pois, embora seja infinitamente pior do que ele em quase todos os sentidos, minha época - no que tange ao assunto escravidão - é muito melhor que a dele.

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  13. ( ah que alivio, seu ciço ! tava aqui lendo atentamente e nem ousei pensar em censura e pensée unique quand nao vi os comentarios do "anonimo" ! isso teria partido mon coeur...)

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  14. “Se podemos ser felizes, cada instante é pago pelo sofrimento de inúmeras criaturas humanas ou animais. A cultura atual é o resultado de um passado pavoroso. Se olharmos bem tudo o que sucedeu a homens inocentes, veremos que por esse progresso pagou-se caro. A nossa alegria, a nossa felicidade, devemos todos associar à tristeza, à consciência de que dividimos uma culpa”, Horkheimer, 1970.

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  15. Meus pêsames, anônimo. Mas nada me fará pedir desculpas por ser feliz. Peça desculpas você, por querer que todos sejam infelizes.

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  16. Mesmo em sociedades menos injustas existe infelicidade. Na Suíça ou na Suécia, as pessoas se apaixonam e não são correspondidas, as pessoas morrem, são doentes crônicos, sofrem azares.

    Aqui, no muito injusto Brasil, além desse tipo de infelicidade, existe outra, a infelicidade produzida pelo sistema social arcaico e explorador.

    Mesmo se você for uma pessoa totalmente insensível à infelicidade alheia, possa, por exemplo, ser feliz como escriturário ariano em um campo de extermínio nazista, aqui, no Brasil, a sua felicidade boçal será atingida pela infelicidade alheia e você ficará infeliz.

    Alguns exemplos: você está indo para Búzios e na Avenida Brasil seu carro para em um engarrafamento e é assaltado por um indivíduo que achou melhor ser ladrão a ganhar salário mínimo (ele sabe fazer conta). Tiros são ouvidos. Você vê a cabeça de seu acompanhante molhada de sangue no seu colo. Você continua feliz?

    O caixa do mercado, o garçom, a balconista da farmácia todos estão à beira de um ataque de nervos. Você também estaria se morasse em Gramacho e ficasse três horas de pé dentro de uma condução cheia para chegar ao trabalho.

    Já imaginou se você ou um dos seus amigos estivesse passando no dia do tiroteio em frente ao Hotel Continental, no meio da guerra civil brasileira? Talvez você não estivesse tão feliz agora.

    A cavalar injustiça social brasileira produz infelicidade em doses industriais. Essa infelicidade transborda para o cotidiano de toda a sociedade. Devemos mudar esse estado de coisas, se não for por solidariedade, por mais puro egoísmo. Ficou claro agora? Passar muito bem.

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  17. Anônimo,

    Quem nega que exista infelicidade? Talvez, a rigor, não se deva dizer que uma pessoa “seja”, mas que “esteja” feliz.

    E quem nega que o estado de coisas no Brasil deva ser melhorado?

    Dito (ou melhor, repetido) isso, pergunto-me se você sabe mesmo o que está dizendo quando afirma que “mesmo se você for uma pessoa totalmente insensível à infelicidade alheia, possa, por exemplo, ser feliz como escriturário ariano em um campo de extermínio nazista, aqui, no Brasil, a sua felicidade boçal será atingida pela infelicidade alheia e você ficará infeliz”?

    Você já pensou no que essa frase -- ela sim, infeliz -- implica? Para mim é inacreditável que você ache que tem o direito de insultar praticamente todos os brasileiros, afirmando que uma pessoa que seja ou esteja feliz no Brasil equivalha a um escriturário que, trabalhando num campo de concentração, seja feliz. Ou seja, para você, nenhum brasileiro tem o direito de ser ou estar feliz porque todos os brasileiros equivalem a funcionários de campos de concentração. Para você, todo brasileiro que for feliz é um boçal.

    E, na verdade, como a situação dos países como a Suécia, que você cita como diferente do Brasil, não era nada melhor do que a do Brasil há duzentos anos, então é preciso dizer que, segundo você, até o século XIX, todos os seres humanos felizes equivaliam a boçais funcionários de campos de concentração.

    E, em última análise, como, ainda hoje, existe injustiça social na maior parte do mundo, então, para você, todas as pessoas felizes do mundo – mesmo os suecos – equivalem a boçais funcionários de campos de concentração.

    É óbvio que você sim, é profundamente infeliz. Mas duvido que o seja pelas razões que alega. Aconselha-se análise em tais casos.

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  18. Prezado Cícero:

    Agradeço a publicação dos meus comentários, sobretudo do último. Ele agora está aí, aberto a interpretação dos possíveis leitores. Que eles julguem quem está com a razão no nosso pequeno e confuso debate.

    Não digo que você “distorceu minhas palavras”. Você projetou sobre o que escrevi suas outras leituras, vivências, medos, esperanças, preconceitos, etc. Isso é natural e assim farão os outros leitores que se derem ao trabalho de ler o que escrevi. Obviamente é o que também faço quando leio seus textos.

    Não custa repetir que ninguém tem autoridade total sobre a interpretação de um texto, nem mesmo seu autor. Leitura é um ato de extrema criatividade. É por isso que as ditaduras sempre começam por queimar e censurar livros, e em nosso tempo, censurar a Internet.

    Agradeço também o conselho para que eu faça análise. Leitor entusiasta de Freud (muito mais do que de Marx), nunca me furtaria a análise. Basta que eu pense no ambiente supercivilizado, culto e urbano da bucólica Rua Goethe 66 (mais um 6 seria a “marca da besta”...), em Botafogo, para que o meu coração se aqueça de imediato.

    Com entusiasmo, digo “sim” a análise. Lamento muito que ela não esteja aberta a um número maior de pessoas, principalmente das classes populares, que certamente se beneficiariam com ela, como de resto qualquer pessoa. Democratizar a análise é uma das maneiras de ampliar o arco da felicidade. Lá em Delfos já estava escrito: “Conhece-te a ti mesmo”. Continua valendo.

    Surpreendeu-me bastante a sua visão da psicologia e psicanálise. Acho que você comprou uma briga feia com seus amigos analistas, gente bem sutil, que sabe ler nas entrelinhas. Inclua também aqueles que fazem análise. 110 anos depois da publicação de “A Interpretação dos Sonhos”, muita gente ainda pensa como você. Devemos ter paciência, diria Freud.

    Saudações!

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