24.2.08

Capitalismo e ideologia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 23 de fevereiro de 2008.

Capitalismo e ideologia

NO MEU último artigo, chamei atenção para uma curiosa analogia entre o feudalismo e o "socialismo real", tal como este existiu, por exemplo, na União Soviética. No modo de produção feudal, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o catolicismo, fosse compartilhada por praticamente toda a sociedade.

Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa religião era, como se sabe, a Igreja.

Ora, também no modo de produção socialista, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o marxismo-leninismo, também acabasse por ser adotada por praticamente toda a sociedade.

Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa verdadeira religião laica era, como se sabe, o Partido Comunista, por meio do Estado, que monopolizava todas as instituições de ensino e de propaganda.

Observei também que o modo de produção capitalista, ao contrário, é capaz de funcionar sem necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior parte da sociedade. Sendo assim, ele é perfeitamente compatível com a liberdade de expressão, inclusive a liberdade de imprensa.

Pois bem, essas simples constatações -sobretudo a última- provocaram vários leitores a enviarem mensagens indignadas, principalmente ao meu e-mail e ao meu blog. Entretanto, todas me acusam de ter dito coisas que eu não disse. A indignação é, sem dúvida, pelo que eu realmente escrevi e, sem dúvida, exatamente pelo fato de ser incontestável; mas, já que não conseguiam contestá-lo, os ataques dos insatisfeitos se concentraram no que não escrevi nem penso. É o que se chama má-fé.

Acusaram-me, por exemplo, de ter dito que não há ideologia capitalista ou burguesa. Ora, penso, ao contrário, que há inúmeras ideologias burguesas. O que afirmei foi que nenhuma ideologia particular tem que ser compartilhada pela maior parte da sociedade para que a economia capitalista funcione.

Trata-se de algo evidente, que é suscetível de ser empiricamente verificado em inúmeros países capitalistas, inclusive no Brasil. Quem poderia negar que o Brasil (ou os Estados Unidos, ou a França...) é um país capitalista? Quem poderia negar que há, no Brasil (ou nesses outros países), liberdade de expressão?

Essa característica do capitalismo pode ser explicada pelo fato de que as motivações que orientam as ações dos seus agentes econômicos -em particular, dos capitalistas (por exemplo, o lucro e a ampliação do capital) e dos operários (por exemplo, o salário)- são basicamente materiais e reguladas principalmente pelo mercado impessoal, de modo que pouco importa para o funcionamento da economia que cada indivíduo tenha ideologias, filosofias, religiões, superstições, gostos, hábitos, vícios etc. diferentes de cada um dos outros indivíduos.

Segundo a famosa fórmula da "Fábula das Abelhas", de Mandeville (século 18), vícios privados (por exemplo, a cobiça) são capazes de produzir virtudes públicas (por exemplo, a prosperidade nacional).

É evidente que tal modo de pensar jamais poderia funcionar numa economia socialista planejada, em que, tendo em vista a "construção do socialismo (ou do comunismo)", torna-se necessário exaltar a virtude do altruísmo e a submissão do interesse individual ao coletivo.

Que admira, se, em tal situação, quem pensar por conta própria já esteja incorrendo no desvio do "individualismo pequeno-burguês"? Para evitá-lo, torna-se necessária a "reeducação" de todos segundo um único modelo: para isso, apela-se, por exemplo, às chamadas "revoluções culturais".

Lin Piao, um dos líderes da Revolução Cultural Chinesa, explicava que ela tinha como meta "eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista". É o totalitarismo em estado puro.

Estou longe de achar o capitalismo perfeito. Mas não se pode tentar superar os seus problemas sem, ao mesmo tempo, preservar, ampliar, universalizar e consolidar a sociedade aberta, o direito à livre expressão de pensamento, a maximização da liberdade individual, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. Vimos que o marxismo-leninismo é, em princípio e de fato, incompatível com essa exigência. Resta-nos ser radicalmente reformistas.

22 comentários:

  1. Texto absolutamente lúcido, A. Cícero. A questão não é assumir o papel de advogado do diabo, mas sim de constatar o caráter artificial do socialismo real, que se tornou um torniquete intolerável ao negligenciar algo fundamental da natureza humana, nunca menosprezado pelo sistema capitalista: o desejo (de ser, de ter, de transcender), que é a dor e a delícia de todo homem, apesar e além das categorias do bem e do mal.
    Abço.

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  2. Talvez os que colocaram em sua boca aquilo que você não disse sejam apenas críticos ferozes do capitalismo, que não estão habituados e ver alguém inteligente ressaltar possíveis pontos positivos nesse tipo de sistema. Mas o primeiro parágrafo de seu texto bota tudo no lugar e impede equívocos e divagações fora daquilo que foi realmente dito..

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  3. Falei no primeiro parágrafo por engano. Na verdade, é ao último que queria me referir. Desculpe a bagunça.

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  4. Prezado Antonio Cicero,

    ´Estou longe de achar o capitalismo perfeito. Mas não se pode tentar superar os seus problemas sem, ao mesmo tempo, preservar, ampliar, universalizar e consolidar a sociedade aberta, o direito à livre expressão de pensamento, a maximização da liberdade individual, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. ´ (sic)

    Respeito muito as suas opiniões e idéias, mas pergunto: Você já visitou algumas empresas onde não se pode ou podia ir ao banheiro? Que não se pode folhear um livro? Você já auferiu ao final do mês, após uma jornada de 14 ou 16 horas, sem contar ônibus, peruas etc, um salário de duzentos reais, e filhos com fome o aguardando? Não...não é ficção não... Concordo que esse personagem saiu da escola, e quem mandou ser burro, vagabundo... Só mesmo numa ficção... Como literatura...Outra coisa: liberdade de expressão sem ressonância seria, a seu ver, liberdade de expressão? Aqui em São Paulo, todos na praças têm liberdade de expressão para dizerem: vejam essas pústulas... dêem-me uma esmola... olhem pelo meu filho... É evidente que estou bem piegas nesse meu raciocínio, para não dizer anacrônico...E eu não gostaria de cotejar de novo com o socialismo como saída única plausível... Você acredita mesmo que o capitalismo que estamos observando ou as famosas work houses´´ são e foram exemplos de liberdade... E caio novamente na seguinte aporia: o capitalismo é bom sim, mas comparado com o quê... Comparado à escravidão, ao feudalismo ou às primevas sociedades tribais, ou ao mercantilismo?

    Obs: nem de comunismo eu gosto...

    Grato e o meu profundo respeito...
    wilson

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  5. O filme Balzac e a costureirinha Chinesa retrata esses tais procedimentos de "reeducação" durante a Revolução Cultural na China no final dos anos 60, e depois passa para a época atual que o país atravessa. Claro que o filme é baseado em um romance, mas dá para ter uma noção. O diretor e autor do livro, Dai Sijie, vive na França. Em suma, gostei muito. Do filme e do seu artigo.

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  6. Leo,

    acho que sua interpretação está certa. Há pessoas que precisam acreditar que vivem no pior dos mundo possíveis, para se sentirem superiores a ele e aos outros que, segundo pensam, ainda não perceberam isso.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  7. Wilson,

    A situação que você descreve já existiu -- e muitíssimo pior -- na Inglaterra e nos Estados Unidos do séc. XIX. Lá as coisas mudaram para melhor, e eles continuam capitalistas. Por que não podem mudar para melhor aqui?

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  8. Concordo 100%. O capitalismo é como a democracia. É pior sistema, exceto por todos os outros.

    Não se deixe abater pelas críticas! Continuarei lendo-o na Folha!

    Abraço!

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  9. adoro pessoas com senso de humor. mesmo.

    as 'muitas ideologias' existentes no capitalismo é outra de suas "constatações" "incontestáveis"? mas se a ideologia se refere à classe dominante, como instrumento etc. ...?

    o ideal - geralmente - é conhecermos um conceito, quando resolvê-mos utilizá-lo.

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  10. Prezada Denise,

    Pelo jeito, você realmente está precisando das minhas aulas. Eu já disse que não gosto de me repetir, mas que fazer? Vou lhe dar uma ÚLTIMA CHANCE de entender. Par délicatesse j’ai perdu ma vie... De todo modo, esta será mesmo a última explicação que lhe dou sobre o conceito de ideologia. Preste atenção.

    Marx jamais elaborou uma teoria coerente da ideologia e, depois da maturidade, usou cada vez menos esse termo. Frequentemente ele a entendia a partir do conceito de alienação, de Hegel e Feuerbach, como uma inversão ou distorção idealista da realidade, a que chamava de "falsa consciência". Numa das suas últimas obras, Engels, em determinado momento, fala da ideologia como “uma vestimenta” dos interesses da burguesia. Aos poucos, com Kautsky, Bernstein e Lenine, por exemplo, torna-se insignificante ou desapareceu o sentido de “falsa consciência”, e a palavra “ideologia” passou a ser tomada (como o faço aqui) mais ou menos como UM CONJUNTO DE IDÉIAS QUE REFLETEM E RACIONALIZAM O INTERESSE MATERIAL DE DETERMINADA CLASSE SOCIAL. Observe que, sendo assim, o interesse material mesmo não pode ser ideológico, ou teríamos uma petição de princípio: a ideologia refletiria a própria ideologia, o que nada explicaria. O interesse material não deve, portanto, ser tomado como ideológico, mas como parte integrante das relações sociais de produção. Faz parte da definição do capitalista que ele seja aquele cujo interesse é aumentar o capital. Faz parte da definição do operário que ele seja aquele cujo interesse é vender a sua força de trabalho. Mesmo que uma pessoa seja, por exemplo, marxista-leninista, o interesse dela, enquanto capitalista, será aumentar o capital. Aliás, ao reconhecer esse interesse, o capitalista ainda não pratica nenhuma inversão ideológica.

    Não há uma, mas muitas ideologias burguesas porque não há um, mas muitos diferentes modos através dos quais a burguesia é capaz de refletir e racionalizar o seu interesse material: uns são, por exemplo, mais liberais, outros são mais conservadores; as idéias de Bush são completamente diferentes das de Clinton, por exemplo; há pelo menos dezenas, se não centenas, de diferentes teorias econômicas, sociológicas e políticas burguesas, que brigam umas com as outras. Quando dizemos que, na formação social em que a burguesia é a classe dominante, a ideologia burguesa tende a ser dominante, isso quer dizer simplesmente que, nessa formação social, o conjunto dessas ideologias burguesas tende a prevalecer, a ser mais representado, ensinado, divulgado, do que as ideologias de outras classes sociais. Entretanto, isso não impede que outras ideologias continuem a existir abertamente nessa formação social, inclusive ideologias incompatíveis com a burguesa. Assim são o marxismo-leninismo, o fundamentalismo islâmico, o situacionismo, o trotskismo, o anarquismo etc.

    De todo modo, para que o modo de produção capitalista funcione, não é necessário que nenhuma ideologia particular seja compartilhada por toda a sociedade. Tente entender por que isso é possível. É que, num país socialista, se cada indivíduo pensar de um modo, isso já representará um individualismo que porá em risco o socialismo. Num país capitalista, se cada indivíduo pensar de um modo diferente, então, mesmo que as ideologias burguesas, por alguma razão, passem a ser menos importantes – menos ensinadas e divulgadas – do que as ideologias anti-capitalistas, o fato em si de cada um pensar de um modo diferente já representará um individualismo que impedirá qualquer revolução socialista, de modo que o capitalismo continuará. Ora, o fato mesmo de cada um pensar de um modo, se ocorrer, será um fato, não uma ideologia.
    Faça um grupo de estudos sobre essas considerações.

    Atenciosamente,
    Antonio Cicero

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  11. Caro Antonio Cícero,

    Mais uma vez um polêmico texto. Vou colocar algumas observaões bem simples.

    Primeiramente, no segundo texto você diz algo sobre o primeiro que não está claro no primeiro: que a "abertura" no capitalismo subjetiva, o modo de produção, permite que ambas se correlacionam.

    Bem, eu quero apenas fazer algumas objeções. Que liberdade é essa que existe no Brasil que ainda sim mantém uma grande mídia ditando padrões de beleza, que continua excluindo os negros de novelas, programas de auditório? Liberdade não é muito mais do que simplesmente poder falar o que quiser? Como explicamos diante de tal liberdade uma significativa maioria de pessoas passando fome? Como explicamos que a grande mídia tem distorcido fatos, a sel bel prazer? O apoio da Globo à ditadura militar? A distorcida repercurssão do caso Fidel?

    Terminei de ler O mundo desde o fim, e lá tem um belíssimo texto sobre leis de trânsito que captam de maneira diferente a questão de liberdade.

    Parece haver dois Cíceros: um no livro, mais crítico, mais antenado com as questões da indústria cultural, da liberdade individual, e outro da Folha, que confunde conceitos materiais.

    Qual é o que existe aí?


    Forte Abraço.

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  12. Caro ACicero,

    Acho que sua última resposta, à Denise, foi a mais clara de todas. Fazia falta, p.ex., a tal da falsa consciência.

    Mas eu queria comentar outra coisa. Você diz o seguinte:

    "Observe que, sendo assim, o interesse material mesmo não pode ser ideológico, ou teríamos uma petição de princípio: a ideologia refletiria a própria ideologia, o que nada explicaria."

    Pois eu acho que é exatamente isso o que acontece com Marx --e com todos os materialistas--, e é por isso que o considero ingênuo. No fundo, para ele, a superestrutura é ainda a matéria, só que idealizada, abstrata: a matéria que reflete a própria matéria, o que também não explica nada.

    Abraço,
    edg

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  13. Eder,
    Primeiro, não sei alguém dita os seus padrões de beleza, mas garanto que ninguém dita os meus.
    Segundo, além do problema das relações raciais ser amplamente discutido na imprensa, a própria Presidência da República tem uma Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial. Ademais, o Canal Futura, por exemplo – que também é mídia –, tem uma programação sobre questões raciais. Leia o excelente livro do Antônio Risério sobre relações raciais no Brasil.
    Terceiro, é verdade que há gente que passa fome, mas está longe de ser a maioria da população. Pense de forma dinâmica. As coisas estão andando. Segundo o IBGE, em três anos (2004 a 2006, 17 milhões de brasileiros deixaram a miséria para trás. Além disso, a renda per capita dos 50% mais pobres cresceu 32% mais do que a dos 10% mais ricos. Claro que ainda há muitíssimo a fazer, mas o que vale é que muito está sendo feito e, se formos radicalmente reformistas, é possível fazer mais.
    Quarto, a ditadura militar acabou há décadas.
    Quinto, na semana passada um algo dirigente cubano declarou, com orgulho, que há um ano ninguém é preso por delito de opinião em Cuba. Isso significa reconhecer que, antes disso, as pessoas eram presas por delito de opinião. Além disso, ele não disse que os que foram presos antes seriam soltos. Ora, não há presos por delito de opinião no Brasil.
    Sexto, você mesmo tem me enviado artigos, em geral publicados em revistas como Caros Amigos, que atacam a grande mídia e divulgam fatos que alegam terem sido omitidos por esta. Se não houvesse liberdade, tais revistas nem existiriam. Não existem em Cuba, nem na China. A diferença é grande.
    Sétimo, não é verdade que eu tenha uma posição no meu livro e outra no jornal. Talvez meu maior defeito seja ser sistematicamente coerente.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  14. Caro ACicero,
    Confrontando-se o trecho citado de sua resposta à Denise -- "[o]bserve que, sendo assim, o interesse material mesmo não pode ser ideológico, ou teríamos uma petição de princípio: a ideologia refletiria a própria ideologia, o que nada explicaria" --, com uma passagem de seu primeiro artigo -- “[a]inda que cada indivíduo pense e aja de uma maneira diferente de todos os outros, o capitalismo é capaz de prosperar, desde que seja observado de modo geral um mínimo de leis e regras formais de convivência” --, é-se levado à seguinte questão: como se pode ter certeza de que essas leis e regras mínimas sejam mesmo kantianamente formais e não, justamente, o reflexo ideológico do interesse material? -- Essa sua concepção de interesse material parece ser compatível com o marxismo, afinal se trata de um tipo de materialismo. Mas, exegese à parte, não vejo como possam existir interesses puramente materiais, não-ideológicos: como se identifica o mínimo necessário -- válido para todos os lugares e tempos -- para a sobrevivência humana?
    Abraço,
    edg

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  15. Caro Edson Gil,

    Quanto à primeira questão:
    O que digo é que “o capitalismo É CAPAZ DE PROSPERAR, desde que seja observado de modo geral um mínimo de leis e regras formais de convivência”. Não estou dizendo que no capitalismo sempre se observa apenas esse mínimo de regras. É claro que há muitas regras e leis além desse mínimo. E é claro que o mínimo mesmo varia de formação social a formação social. Aqui se trata do mínimo de regras para que a ECONOMIA funcione. Não digo que esse mínimo seja suficiente para a produção e a manutenção de uma sociedade de seres humanos livres. Não estou defendendo esse mínimo, estou apenas descrevendo uma das características que distinguem o capitalismo de outros modos de produção. Não se trata ainda de Kant. Mas é claro que, se o capitalismo não tivesse essa característica, a filosofia do direito de Kant seria inconcebível. Ela não seria concebível em formações sociais dominadas por outros modos de produção.

    Quanto à segunda:
    Não sou marxista. Eu estava explicando a Denise que, PARA MARX, o interesse material não pode ser ideológico. Mas não é difícil entender isso. O interesse material universal – que existe em todas as sociedades – é a sobrevivência. É o princípio do conatus, de Spinoza: “Unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur”: Cada coisa, no que depende de si, se esforça por continuar em seu ser”. É evidente que este interesse não é ideológico.

    O que alguns questionam é se o interesse particular do capitalista é ideológico. Como mostrei, não pode ser, para Marx, a menos que ele cometa uma petição de princípio. Mas é fácil ver por que o interesse do capitalista não é, para ele, ideológico.

    É que esse interesse faz parte do ser do capitalista. A fórmula geral da circulação de mercadoria é Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria: M-D-M. Já a fórmula geral do capital é D-M-D’, onde D’ é maior do que D. O dinheiro é capital quando é transformado em mercadoria, TENDO EM VISTA a obtenção de uma quantidade maior de dinheiro, que é o lucro. Logo, o capitalista é capitalista quando transforma o seu dinheiro em mercadoria, TENDO EM VISTA a obtenção do lucro. Pode-se portanto dizer que, por definição, o capitalista é aquele que transforma o seu dinheiro em mercadoria, INTERESSADO no lucro. Não é uma questão de ideologia: faz parte de ser capitalista estar interessado no lucro. As ideologias vêm “vestir”, como diz Engels, esse interesse.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  16. Caro ACicero,

    AC: O que digo é que “o capitalismo É CAPAZ DE PROSPERAR, desde que seja observado de modo geral um mínimo de leis e regras formais de convivência”. Não estou dizendo que no capitalismo sempre se observa apenas esse mínimo de regras. É claro que há muitas regras e leis além desse mínimo. E é claro que o mínimo mesmo varia de formação social a formação social.

    EDG: Se varia segundo a formação social, então não se trata de um mínimo puramente formal.

    AC: Aqui se trata do mínimo de regras para que a ECONOMIA funcione. Não digo que esse mínimo seja suficiente para a produção e a manutenção de uma sociedade de seres humanos livres. Não estou defendendo esse mínimo, estou apenas descrevendo uma das características que distinguem o capitalismo de outros modos de produção.

    EDG: Compreendo a sua posição por assim dizer fenomenológica, mas o que está em questão é se o capitalismo necessita ou não de mais do que um mínimo de regras e leis formais, ou seja, se o capitalismo é mesmo capaz de prosperar sem impor à sociedade em geral regras e leis baseadas em interesses ideológicos.

    AC: Não se trata ainda de Kant. Mas é claro que, se o capitalismo não tivesse essa característica, a filosofia do direito de Kant seria inconcebível. Ela não seria concebível em formações sociais dominadas por outros modos de produção.

    EDG: Aqui me parece que você deu uma escorregada no marxismo... Ou será que você queria dizer “dominante” em vez de “concebível”?

    AC: Não sou marxista. Eu estava explicando à Denise que, PARA MARX, o interesse material não pode ser ideológico.

    EDG: Eu entendi, tanto que falei em exegese.

    AC: Mas não é difícil entender isso. O interesse material universal – que existe em todas as sociedades – é a sobrevivência. É o princípio do conatus, de Spinoza: “Unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur”: Cada coisa, no que depende de si, se esforça por continuar em seu ser”. É evidente que este interesse não é ideológico.

    EDG: Justamente quanto a esse ponto é que não estou de acordo: não existe um interesse material universal. Aliás, a locução “material universal” é uma contradição em termos, uma vez que a matéria não é universal. Como disse no último comentário, é muito difícil senão impossível determinar quais são as necessidades mínimas do ser humano, independentemente de tempo ou lugar. Se todo mundo fosse como Gandhi, p.ex., esse mínimo seria muitíssimo menor – praticamente uma cabra – do que o necessário para manter a máquina capitalista em movimento.

    AC: O que alguns questionam é se o interesse particular do capitalista é ideológico. Como mostrei, não pode ser, para Marx, a menos que ele cometa uma petição de princípio. Mas é fácil ver por que o interesse do capitalista não é, para ele, ideológico.

    EDG: ACicero, acho que ainda não me fiz entender. Eu não estou interessado na teoria marxista, até porque esta é ingênua: se a ideologia é a matéria refletida, então a discussão acerca do estatuto material ou ideológico do que quer que seja é absolutamente ociosa. Interessa-me a coisa mesma, e, nesse caso, não consigo conceber nenhum tipo de interesse que não seja em alguma medida também ideológico.

    AC: É que esse interesse faz parte do ser do capitalista.

    EDG: Não sei se o Sidartha ainda está acompanhando o debate, mas essa sua afirmação, apoiada numa citação de Spinoza, deve tê-lo deixado satisfeito: você não havia garantido que o capitalismo não era uma substância?

    AC: A fórmula geral da circulação de mercadoria é Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria: M-D-M. Já a fórmula geral do capital é D-M-D’, onde D’ é maior do que D. O dinheiro é capital quando é transformado em mercadoria, TENDO EM VISTA a obtenção de uma quantidade maior de dinheiro, que é o lucro. Logo, o capitalista é capitalista quando transforma o seu dinheiro em mercadoria, TENDO EM VISTA a obtenção do lucro. Pode-se portanto dizer que, por definição, o capitalista é aquele que transforma o seu dinheiro em mercadoria, INTERESSADO no lucro. Não é uma questão de ideologia: faz parte de ser capitalista estar interessado no lucro. As ideologias vêm “vestir”, como diz Engels, esse interesse.

    EDG: É claro que ser capitalista implica necessariamente visar ao lucro, mas isso não explica absolutamente nada. Antes se trata de uma mera tautologia [“por definição”, como você mesmo diz]: no conceito do sujeito [capitalista] já está “contido” o conceito do predicado [interesse (lucro)]. De modo que, para os marxistas, o juízo “o capitalista é aquele que se interessa pelo lucro” é um juízo analítico.
    Mas, como disse, não me interessa aqui a validade do argumento marxista, e sim o valor de verdade de suas premissas. Para mim é falso que 1) o capital, o capitalista e o capitalismo sejam substâncias, sujeitos de propriedades essenciais e 2) que o interesse (lucro) do capitalista não seja ideológico e, finalmente, 3) que o capitalismo seja capaz de prosperar sem impor uma ideologia mínima à sociedade em geral.

    Abraço,
    edg

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  17. Caro Edson Gil,

    Do seu comentário, só concordo com uma coisa. É o que você diz logo no começo: se o mínimo de leis e regras de convivência necessárias para o capitalismo for formal, ele não pode – ao contrário do que eu havia escrito – variar segundo a formação social. Você tem razão. Eu disse o contrário por um lapso, ocasionado pelo fato de que, pouco antes, eu havia explicado a alguém que, para Marx, o mínimo de mercadorias suficientes para reproduzir a vida de um operário e de sua família não é um absoluto, mas varia de sociedade para sociedade, segundo vários fatores, como o clima, os hábitos, a moral etc. Ora, o mínimo de leis e regras de convivência nada tem a ver com o mínimo de mercadorias suficientes para reproduzir a vida de um operário e sua família.

    Fora esse ponto, acho que você comete vários equívocos.

    Considere o seu comentário à seguinte explicação minha:

    “AC: Mas não é difícil entender isso. O interesse material universal – que existe em todas as sociedades – é a sobrevivência. É o princípio do conatus, de Spinoza: “Unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur”: Cada coisa, no que depende de si, se esforça por continuar em seu ser”. É evidente que este interesse não é ideológico.”

    “EDG: Justamente quanto a esse ponto é que não estou de acordo: não existe um interesse material universal. Aliás, a locução “material universal” é uma contradição em termos, uma vez que a matéria não é universal. Como disse no último comentário, é muito difícil senão impossível determinar quais são as necessidades mínimas do ser humano, independentemente de tempo ou lugar. Se todo mundo fosse como Gandhi, p.ex., esse mínimo seria muitíssimo menor – praticamente uma cabra – do que o necessário para manter a máquina capitalista em movimento.”

    Há dois equívocos na sua objeção:

    1) de acordo com você, “a locução ‘material universal’ é uma contradição em termos, uma vez que a matéria não é universal”. Ora, independentemente do fato de que Marx não usa a palavra “matéria” no sentido de Aristóteles, que é aquele em que você a está usando, o fato é que, na locução em questão, o adjetivo “universal” qualifica o substantivo “INTERESSE material” e não “material”. Esse interesse, como expliquei, é o que Spinoza chama de “conatus”.

    2): sua observação de que “é muito difícil senão impossível determinar quais são as necessidades mínimas do ser humano” são simplesmente irrelevantes aqui. Só interessa o fato de que o conatus seja universal.

    Adiante, você diz:

    “EDG: Eu não estou interessado na teoria marxista, até porque esta é ingênua: se a ideologia é a matéria refletida, então a discussão acerca do estatuto material ou ideológico do que quer que seja é absolutamente ociosa. Interessa-me a coisa mesma, e, nesse caso, não consigo conceber nenhum tipo de interesse que não seja em alguma medida também ideológico.”

    Outro equívoco:

    3) Acontece que, embora você, ostensivamente, esteja usando a palavra “ideologia” num sentido completamente diferente daquele em que o uso aqui, você não definiu esse termo. Antes disso, vale a definição convencionada, que foi a que eu dei. Segundo ela, a ideologia é concebida como “um conjunto de idéias que refletem e racionalizam o interesse material de determinada classe social”. Sendo assim, como eu disse, esse próprio interesse material não pode ser tomado como ideologia sem que se incorra numa petitio principii.

    Outro equívoco:

    4) Você supõe que quando digo que o interesse faz parte do ser do capitalista, estou tomando o capitalismo como uma substância. Aqui você está simplesmente brincando com as palavras, aproveitando a ambivalência da palavra “ser”, pois sabe perfeitamente que defini o capital como a relação D-M-D’, de modo que o capitalista não passa do agente dessa relação, isto é, o capitalista é aquele que transforma o seu dinheiro em mercadoria, TENDO EM VISTA a obtenção do lucro: o que, evidentemente pode ser expresso como: o capitalista é aquele que transforma o seu dinheiro em mercadoria, interessado no lucro.

    Para terminar:

    No seu resumo, você diz que não aceita:

    (1) que o capital, o capitalista e o capitalismo sejam substâncias, sujeitos de propriedades essenciais.

    Ora, como acabo de dizer, tampouco eu aceitaria isso. O capital, o capitalista e o capitalismo são determinadas estruturas de relações.

    (2) que o interesse (lucro) do capitalista não seja ideológico

    Ora, no sentido em que temos usado a palavra “ideologia”, já demonstrei que o interesse e o lucro não podem ser ideológicos. Você nem refutou eficazmente essa demonstração, nem apresentou uma definição alternativa de “ideologia”, que fosse compatível com a sua tese.

    (3) que o capitalismo seja capaz de prosperar sem impor uma ideologia mínima à sociedade em geral.

    Ora, considero que isso ficou demonstrado pelo meu artigo e pelo final da minha última resposta a Denise.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  18. Caro ACicero,

    AC: ... para Marx, o mínimo de mercadorias suficientes para reproduzir a vida de um operário e de sua família não é um absoluto, mas varia de sociedade para sociedade, segundo vários fatores, como o clima, os hábitos, a moral etc.

    EDG: Excetuando-se o clima e outros fatores naturais, os demais fatores são todos ideológicos ou permeados por alguma ideologia [moral, religião, valores, tradição etc.]. E isso vale para todos, operários e capitalistas.

    AC: Ora, o mínimo de leis e regras de convivência nada tem a ver com o mínimo de mercadorias suficientes para reproduzir a vida de um operário e sua família.

    EDG: Não creio que a existência de um mínimo de leis e regras de convivência não influa nos tais interesses materiais de quem quer que seja. Uma dessas regras é, sem dúvida, o salário. Mas não existe um salário mínimo “absoluto”. À variação do valor do salário corresponde a variação mais ou menos proporcional do nível de exigências “mínimas” para a sobrevivência do operário.
    Meu pai lavava os pés para ir à escola, pois não tinha sapato. Mas nunca passou fome. Hoje nem mendigo anda descalço, se não quiser.
    Conheci alguns operários que tinham emigrado para outro país, mais desenvolvido, porque lá tinham mais de 60 canais de TV, carro etc.

    AC: Fora esse ponto, acho que você comete vários equívocos.

    EDG: Eu não teria nenhum escrúpulo em conceder isso a você, creia-me. Mas simplesmente não enxergo esses equívocos que você aponta.

    AC: 1) de acordo com você, “a locução ‘material universal’ é uma contradição em termos, uma vez que a matéria não é universal”. Ora, independentemente do fato de que Marx não usa a palavra “matéria” no sentido de Aristóteles, que é aquele em que você a está usando, o fato é que, na locução em questão, o adjetivo “universal” qualifica o substantivo “INTERESSE material” e não “material”.

    EDG: Se pelo menos se tratasse aí de um adjetivo e de um advérbio... mas só há um substantivo e nenhum verbo. Ora, mesmo acrescentando o substantivo à locução, a minha afirmação continua mantendo o mesmo sentido: “a locução ‘interesse material universal’ é uma contradição em termos, uma vez que o interesse material, isto é, a matéria, não é universal”. Se eu tivesse dito que a locução “preto branco” é uma contradição em termos, você decerto não objetaria que o branco aí não se refere a preto mas a cavalo, p. ex.

    AC: Esse interesse, como expliquei, é o que Spinoza chama de “conatus”.

    EDG: Spinoza utiliza o termo conatus em pelo menos três sentidos, ora se referindo ao corpo [conação], ora à mente [volição], ora a ambos [apetite]. Sinceramente, não sei o que esse conceito metafísico pode ajudar no entendimento de uma questão de economia política, embora Adorno e Horkheimer recorram a uma das formulações spinozianas do conatus para caracterizar a sociedade moderna [“Conatus sese conservandi primum et unicum virtutis est fundamentum”]. Como quer que seja, com a idéia de conatus, Spinoza parece apontar para o primeiro princípio da termodinâmica [na verdade, ele não fala de conservação, mas de aumento de energia], desconhecendo, porém, o segundo princípio. O princípio da entropia diz que toda e qualquer forma organizada tende à indiferenciação e à exaustão. Mas o sistema capitalista, como você mesmo mostra com a fórmula do capital, repõe energia para resistir a esse processo de dissolução [entropia negativa]. Ora, a relação entre input e output do sistema capitalista e a quantidade de energia absorvida por esse sistema não depende apenas de meios técnicos e econômicos mas também da eficiência da organização [burocracia (Weber)], isto é: o conatus capitalista não pode ser considerado uma mera inércia ou instinto, e sim, no mínimo, um apetite, quando não já uma vontade. E é claro que a ideologia tem tudo que ver com apetites e vontades.

    AC: 2): sua observação de que “é muito difícil senão impossível determinar quais são as necessidades mínimas do ser humano” são simplesmente irrelevantes aqui. Só interessa o fato de que o conatus seja universal.

    EDG: Você sabe muito bem que Spinoza só pode aplicar o princípio do conatus a todas as coisas porque estas não passam de modos finitos de Deus. [Taí talvez uma dica pra entender como a marxista Chauí pode ser também uma spinozista...] De qualquer forma, o conatus do capitalista não se reduz a interesses materiais.

    AC: 3) Acontece que, embora você, ostensivamente, esteja usando a palavra “ideologia” num sentido completamente diferente daquele em que o uso aqui, você não definiu esse termo. Antes disso, vale a definição convencionada, que foi a que eu dei. Segundo ela, a ideologia é concebida como “um conjunto de idéias que refletem e racionalizam o interesse material de determinada classe social”. Sendo assim, como eu disse, esse próprio interesse material não pode ser tomado como ideologia sem que se incorra numa petitio principii.

    EDG: Não foi o que eu disse quando falei em tautologia? Eu aceitei o seu conceito de ideologia, embora não concorde com ele. Para mim, da mesma forma que não há uma visão de mundo pré-moderna, também não há uma ideologia pré-moderna. O catolicismo não foi a ideologia do feudalismo, p.ex.

    AC: 4) Você supõe que quando digo que o interesse faz parte do ser do capitalista, estou tomando o capitalismo como uma substância. Aqui você está simplesmente brincando com as palavras, aproveitando a ambivalência da palavra “ser”, pois sabe perfeitamente que defini o capital como a relação D-M-D’, de modo que o capitalista não passa do agente dessa relação, isto é, o capitalista é aquele que transforma o seu dinheiro em mercadoria, TENDO EM VISTA a obtenção do lucro: o que, evidentemente pode ser expresso como: o capitalista é aquele que transforma o seu dinheiro em mercadoria, interessado no lucro.

    EDG: Desculpe-me, mas estava falando sério. Foi você que trouxe Spinoza para o seu lado e que substantivou o verbo ser quando disse “que esse interesse [material] faz parte do ser do capitalista”. Se, em vez disso, tivesse dito “do ser capitalista” talvez eu não tivesse insistido na interpretação metafísica da sua tese.

    AC: ... no sentido em que temos usado a palavra “ideologia”, já demonstrei que o interesse e o lucro não podem ser ideológicos. Você nem refutou eficazmente essa demonstração, nem apresentou uma definição alternativa de “ideologia”, que fosse compatível com a sua tese.

    EDG: Você insiste em basear a sua argumentação numa definição nominal, incorrendo numa tautologia: como a ideologia é o reflexo racional [justificação, racionalização] de interesses materiais, estes interesses não podem ser eles mesmos ideológicos. Eu aceito a sua definição de ideologia, desde que por interesse material não se entenda interesse puramente material, destituído de toda e qualquer marca de ideologia. Para mim, todo interesse já é em alguma medida ideológico. Apenas os animais são capazes de interesses puramente materiais, mas, propriamente falando, animais não têm interesses e sim instinto. Mas o homem não tem é instinto, pelo menos não como o dos animais. Se até os nossos instintos são refletidos, racionalizados, elevados ou rebaixados -- somos capazes de excesso para mais e para menos --, como é que se pode falar de interesses puramente materiais? O capitalismo é um sistema tão contingente quanto outro qualquer. As necessidades de um agente do capital não são nem necessárias nem universais.

    AC: ... Ora, considero que isso [que o capitalismo seja capaz de prosperar sem impor uma ideologia mínima à sociedade em geral] ficou demonstrado pelo meu artigo e pelo final da minha última resposta a Denise.

    EDG: Sinto muito, mas não concordo.

    Abraço,
    edg

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  19. Caro Edson Gil,

    AC: ... para Marx, o mínimo de mercadorias suficientes para reproduzir a vida de um operário e de sua família não é um absoluto, mas varia de sociedade para sociedade, segundo vários fatores, como o clima, os hábitos, a moral etc.

    EDG: Excetuando-se o clima e outros fatores naturais, os demais fatores são todos ideológicos ou permeados por alguma ideologia [moral, religião, valores, tradição etc.]. E isso vale para todos, operários e capitalistas.

    AC: Aqui se trata do mínimo de mercadorias suficientes para reproduzir a vida de um operário e de sua família. Realmente, neste caso, fatores ideológicos entram em jogo. Mas atenção: esses fatores ideológicos não são necessariamente a “ideologia burguesa”. Quando se instaura o capitalismo na China, por exemplo, no começo do século XX, o que determina o “mínimo” são os fatores dominantes nessa época na China, onde não havia ideologia burguesa ainda. Se um inglês implanta uma fábrica na China, por exemplo, não é a ideologia dele, inglesa, que vai determinar o mínimo de mercadorias necessárias para sustentar um trabalhador, mas as condições existentes na China pré-capitalista.
    AC: Ora, o mínimo de leis e regras de convivência nada tem a ver com o mínimo de mercadorias suficientes para reproduzir a vida de um operário e sua família.

    EDG: Não creio que a existência de um mínimo de leis e regras de convivência não influa nos tais interesses materiais de quem quer que seja. Uma dessas regras é, sem dúvida, o salário.

    AC: Não, o salário não é uma dessas regras. As regras mínimas de convivência são aquelas – Hobbesianas – que impedem que o homem seja o lobo do homem, que impedem que eles destruam uns aos outros: que não se matem, que não se escravizem uns aos outros, que não se roubem etc. A EXISTÊNCIA do salário mínimo pode ser derivada dessas regras, mas não, evidentemente, o valor mesmo do salário mínimo.
    EG: Mas não existe um salário mínimo “absoluto”. À variação do valor do salário corresponde a variação mais ou menos proporcional do nível de exigências “mínimas” para a sobrevivência do operário.
    Meu pai lavava os pés para ir à escola, pois não tinha sapato. Mas nunca passou fome. Hoje nem mendigo anda descalço, se não quiser.
    Conheci alguns operários que tinham emigrado para outro país, mais desenvolvido, porque lá tinham mais de 60 canais de TV, carro etc.


    AC: O valor do salário varia, como eu disse.
    AC: 1) de acordo com você, “a locução ‘material universal’ é uma contradição em termos, uma vez que a matéria não é universal”. Ora, independentemente do fato de que Marx não usa a palavra “matéria” no sentido de Aristóteles, que é aquele em que você a está usando, o fato é que, na locução em questão, o adjetivo “universal” qualifica o substantivo “INTERESSE material” e não “material”.

    EDG: Se pelo menos se tratasse aí de um adjetivo e de um advérbio... mas só há um substantivo e nenhum verbo. Ora, mesmo acrescentando o substantivo à locução, a minha afirmação continua mantendo o mesmo sentido: “a locução ‘interesse material universal’ é uma contradição em termos, uma vez que o interesse material, isto é, a matéria, não é universal”. Se eu tivesse dito que a locução “preto branco” é uma contradição em termos, você decerto não objetaria que o branco aí não se refere a preto mas a cavalo, p. ex.


    AC: Édson, você está levando isto para uma discussão bizantina. Sou obrigado a explicar coisas elementares. Como eu disse, o interesse material universal corresponde simplesmente ao “conatus”, de Spinoza, que expliquei como o princípio de que “cada coisa, no que depende de si, esforça-se por continuar em seu ser”. No caso do ser humano, isso significa, concretamente, que ele se esforça por – ou tem interesse em – sobreviver, “ganhar a vida”, “ganhar o pão” etc., antes de poder se dedicar aos seus interesses espirituais. Trata-se, portanto, por um lado, de interesses materiais e, por outro, de interesses universais, pois atingem a todos os homens.
    Pois bem, a partir dessas considerações elementares, você criou a seguinte grande confusão:
    EDG: Spinoza utiliza o termo conatus em pelo menos três sentidos, ora se referindo ao corpo [conação], ora à mente [volição], ora a ambos [apetite]. Sinceramente, não sei o que esse conceito metafísico pode ajudar no entendimento de uma questão de economia política, embora Adorno e Horkheimer recorram a uma das formulações spinozianas do conatus para caracterizar a sociedade moderna [“Conatus sese conservandi primum et unicum virtutis est fundamentum”]. Como quer que seja, com a idéia de conatus, Spinoza parece apontar para o primeiro princípio da termodinâmica [na verdade, ele não fala de conservação, mas de aumento de energia], desconhecendo, porém, o segundo princípio. O princípio da entropia diz que toda e qualquer forma organizada tende à indiferenciação e à exaustão. Mas o sistema capitalista, como você mesmo mostra com a fórmula do capital, repõe energia para resistir a esse processo de dissolução [entropia negativa]. Ora, a relação entre input e output do sistema capitalista e a quantidade de energia absorvida por esse sistema não depende apenas de meios técnicos e econômicos mas também da eficiência da organização [burocracia (Weber)], isto é: o conatus capitalista não pode ser considerado uma mera inércia ou instinto, e sim, no mínimo, um apetite, quando não já uma vontade. E é claro que a ideologia tem tudo que ver com apetites e vontades.
    AC: Ora, tudo isso é irrelevante, simplesmente porque eu já havia definido o sentido em que entendo o conatus, que é o mais corriqueiro, entre estudiosos de Spinoza, e que repito: “cada coisa, no que depende de si, esforça-se por continuar em seu ser”.
    AC: 2): sua observação de que “é muito difícil senão impossível determinar quais são as necessidades mínimas do ser humano” são simplesmente irrelevantes aqui. Só interessa o fato de que o conatus seja universal.

    EDG: Você sabe muito bem que Spinoza só pode aplicar o princípio do conatus a todas as coisas porque estas não passam de modos finitos de Deus. [Taí talvez uma dica pra entender como a marxista Chauí pode ser também uma spinozista...] De qualquer forma, o conatus do capitalista não se reduz a interesses materiais.


    AC: Aqui há muita confusão, mas me restrinjo à última: “o conatus do capitalista não se reduz a interesses materiais”. Simplesmente não devemos confundir o interesse material universal, do qual estávamos falando, com o interesse particular do capitalista.
    AC: 3) Acontece que, embora você, ostensivamente, esteja usando a palavra “ideologia” num sentido completamente diferente daquele em que o uso aqui, você não definiu esse termo. Antes disso, vale a definição convencionada, que foi a que eu dei. Segundo ela, a ideologia é concebida como “um conjunto de idéias que refletem e racionalizam o interesse material de determinada classe social”. Sendo assim, como eu disse, esse próprio interesse material não pode ser tomado como ideologia sem que se incorra numa petitio principii.

    EDG: Não foi o que eu disse quando falei em tautologia? Eu aceitei o seu conceito de ideologia, embora não concorde com ele. Para mim, da mesma forma que não há uma visão de mundo pré-moderna, também não há uma ideologia pré-moderna. O catolicismo não foi a ideologia do feudalismo, p.ex.


    AC: Se você aceitou, mesmo disputandi gratia, o conceito de ideologia, você tem que aceitar o que dele se segue.
    AC: ... no sentido em que temos usado a palavra “ideologia”, já demonstrei que o interesse e o lucro não podem ser ideológicos. Você nem refutou eficazmente essa demonstração, nem apresentou uma definição alternativa de “ideologia”, que fosse compatível com a sua tese.

    EDG: Você insiste em basear a sua argumentação numa definição nominal, incorrendo numa tautologia: como a ideologia é o reflexo racional [justificação, racionalização] de interesses materiais, estes interesses não podem ser eles mesmos ideológicos.

    AC: Simplesmente não há saída para esse impasse.
    Eu aceito a sua definição de ideologia, desde que por interesse material não se entenda interesse puramente material, destituído de toda e qualquer marca de ideologia. Para mim, todo interesse já é em alguma medida ideológico. Apenas os animais são capazes de interesses puramente materiais, mas, propriamente falando, animais não têm interesses e sim instinto. Mas o homem não tem é instinto, pelo menos não como o dos animais. Se até os nossos instintos são refletidos, racionalizados, elevados ou rebaixados -- somos capazes de excesso para mais e para menos --, como é que se pode falar de interesses puramente materiais?
    AC: Duas confusões. Primeiro: mesmo tendo aceito a definição que dei da ideologia, você pensa que todo pensamento, toda intenção, toda consciência já é ideologia ou ideológica. Nem tudo, para Marx, é ideologia. A linguagem e a ciência, por exemplo, não são ideológicos. A razão não é ideológica.
    Segundo: a palavra “interesse” deve ser entendida em seu sentido etimológico: inter-esse: estar entre, ou estar presente. “O lucro interessa ao capitalista” quer dizer: “o lucro está presente ao capitalista” (enquanto capitalista).
    EDG: O capitalismo é um sistema tão contingente quanto outro qualquer. As necessidades de um agente do capital não são nem necessárias nem universais.
    AC: Jamais pretendi outra coisa. As necessidades de um agente do capital são as necessidades de um agente do capital: não dizem respeito a quem não se coloque como um agente do capital. Desde, porém, que você se coloque como um agente do capital, elas são necessidades suas: ou você deixa de ser um agente do capital. Isso, independentemente de você ser um marxista, um budista, um muçulmano etc.: independentemente da sua ideologia.

    Abraço,
    ACicero

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  20. Caro ACicero,

    Não quero dar a última palavra, mas me permita encerrar a minha participação neste tópico ratificando alguns pontos de meu argumento.

    O que você chama de interesse material é já uma [im]posição ideológica. Ter de “ganhar a vida” etc. não implica de modo algum a necessidade de vender força de trabalho, gerar lucro e ser alienado dos produtos do próprio trabalho.

    Do mesmo modo, a separação entre interesse material e espiritual também já é ideológica. Como se o “trabalho”, por menor ou mais bruto que seja, tivesse necessariamente de ser destituído de toda dimensão transcendente.

    Essas teses ideológicas, sem as quais o capitalismo não seria possível, tornaram-se uma espécie de segunda natureza para o homem moderno. Sobre esse “conatus capitalista” é claro que se pode vestir qualquer outra ideologia, inclusive religosa, mas apenas como sobretudo, adereço ou maquilagem.

    Muitíssimo obrigado pela atenção e pela incrível disposição para o debate!

    Abraço,
    edg

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  21. Caro Edson Gil,

    Também garanto que não é no interesse de ter a última palavra que gostaria de fazer algumas observações. Sei que nem o que vou dizer nem o que você disse encerra a questão, que poderia se prolongar indefinida e inutilmente, mas acho que, realmente, o assunto está se tornando cansativo. Só lamento não me ter conseguido fazer entender, ou não ter conseguido entender o seu ponto de vista.
    Só resta:
    1) reiterar que, se definirmos “ideologia” do modo em que a defini, não é possível pensar que o interesse material seja ideológico;
    2) observar que “ganhar a vida” é um interesse material que Marx pensa se aplicar a qualquer modo de produção, não apenas ao capitalista;
    3) observar que vender força de trabalho, gerar lucro e ser alienado dos produtos do próprio trabalho são características estruturais do sistema capitalista, isto é, pertencem à sua base econômica, e não à sua ideologia;
    4) observar que, para Marx, a separação entre interesse material e interesse espiritual é metodológica. Trata-se, de fato, de uma abstração, mais fácil de ser realizada pelo economista quando ele conhece o regime capitalista. É que, neste, essa separação se dá na realidade. Ao operário, destituído dos instrumentos de produção, não lhe resta senão vender a sua força de trabalho, para poder sustentar a sua família. O trabalho alienado que ele cumpre está praticamente destituído de qualquer dimensão espiritual. Dada essa situação, torna-se fácil abstrair trabalho espiritual de trabalho material (assim como valor de uso de valor de troca, trabalho concreto de trabalho abstrato etc.), e essas abstrações lhe permitem perceber, por um lado, traços comuns e, por outro lado, diferenças, entre diferentes modos de produção.
    5) Não creio que as ideologias, religiões etc. sejam meros adereços ou maquilagem, para aqueles que as representam; mas acho melhor ficar por aqui: não desenvolver esta observação nem seguir discutindo esse assunto...

    Obrigado eu pela sua contribuição.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  22. O capitalismo necessita sim de ideologias para continuar funcionando. É praticamente feito de ideologias. E se a liberdade de expressão for um pouco ferida para o bem estar comum de todos não vejo mal nenhum nisso.

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