22.2.08

Camões: Tanto de meu estado me acho incerto

Publico a seguir um clássico soneto de Camões. “Um clássico é um clássico”, diz Ezra Pound, “não porque se conforme a certas regras estruturais, ou porque se adéqüe a certas definições (das quais o seu autor, bem provavelmente, jamais ouviu falar). É clássico por causa de certo frescor eterno e irreprimível”. Esqueça-se o leitor de que se encontra ante um clássico, e mesmo ante um soneto, e o leia como se fosse pela primeira vez, e como se tivesse sido escrito ontem. Pronuncie-o em voz baixa e lenta. Deixe entrar cada verso, cada palavra, cada sílaba, cada letra com todo o seu peso ou a sua leveza em seu ouvido, pausando de acordo com as sugestões do verso. Passe por cima do que não entender imediatamente. Leia-o todo. Depois o releia várias vezes, para compreender e apreciar cada vez mais: para fazê-lo seu.


Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

De: CAMÕES, Luís de. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1981, p.117.

20 comentários:

  1. Caro Antonio,

    Dificil exercício esse, de ler como se fosse a primeira vez. Acolher o poema como se fosse nosso, e esquecer seu passado, sua história: o que é ou deixa de ser, quem o fez, que outros o desfrutaram antes.
    É preciso amor para ler dessa forma. E amar nunca é fácil.

    um abraço,
    lucas

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  2. Prezado Antonio Cicero,

    Camões é Camões. É belo. Mas tem pé quebrado. E se se faz o uso de uma forma, há que se seguir, na minha opinião. Não quero pensar como diria Millôr, como aquele que se regozija com pés quebrados. De maneira alguma. Mas que os há, há... Ou eu realmente não compreendo nada de versificação. Aliás não entendo mesmo...rs...

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  3. Adendo: um ´por que´não seria separado?

    Quanto ao último post, refiro-me ao primeiro verso: a não ser que se separe assim : ´me-u´

    Estou pensando na regra de nossa língua portuguesa...
    grato
    wilson

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  4. Caro Wilson,

    O poema não tem pé quebrado. O primeiro verso se escande assim, com sinalefa de me^a e de cho^in, sem nenhuma forçação: para mim, é assim mesmo que se pronuncia:

    Tan-to-de-meu-es-ta-do-me^a-cho^in-certo

    O “porque” é a grafia lusitana.

    Abraço,
    ACicero

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  5. Prezado Antônio Cícero.
    O soneto é brilhante até no fecho de ouro, que só se dá na última palavra do poema.
    Quando lemos "Senhora", ficam explicados todos os versos anteriores, e até as palavras do próprio último verso.
    Só fiquei na dúvida quanto à vírgula no segundo verso, entre o "Que" e o "em".
    Um grande abraço,
    João Renato.

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  6. Prezado Antonio Cicero,

    Grato pelo retorno. Evidentemente que tento embasar-me num outro tipo de versificação. No que tange a certas vocalizações. Mas tudo ok. E poesia, como arte, pode nos levar a certas regras particulares. Mas você, como poeta que é, deve compreender o que digo. Porque senão volveríamos a Oswald de Andrade e outros. O que penso é que - como diria Wittgenstein - precisamos compreender as regras do jogo para bem jogá-lo. E quanto ao ´porque´ - evidentemente que me posicionei com o referencial de nossa língua portuguesa - e seria muito engraçado traduzir o português de Portugal para o portugês do Brasil. Mas que é possível é... Mas tomo a palavra de um colega falecido e ´poeta´Vicente Cechelero: ´não importa, o importante é que é belo...´

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  7. Caro João Renato,

    Obrigado por me chamar atenção para essa gralha. Não sei como a vígula foi parar aí. Vou corrigir.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  8. Caro Marcone,
    um verso de pé quebrado é um verso que quebra a norma métrica do poema. Por exemplo, o soneto de Camões é decassilábico; se um dos seus versos não tivesse dez silabas, seria considerado "de pé quebrado".

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  9. Caríssimo,

    Que prazer é voltar a ler o Acontecimentos e encontrar um poema tão belo e bem feito. Todo debate sobre versificação é um plus. A propósito, Said Ali me fez ver como Camões é um mestre nessa coisa de nos fazer colocar o ritmo acima da métrica mecanizada.

    Grande abraço,

    Héber

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  10. Caro Antônio Cícero,
    fiz a experiência com meu filho de 4 anos. Terminou de ler e perguntou se foi o Vinícius de Moraes quem escreveu (ele acha que Vinícius é o autor de todas as poesias do mundo...rs). Falei que era do Camões, e ele disse: -Que nome engraçado! Ele é gente?
    Abço!

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  11. Caro Héber,

    Obrigado. Que bom você falar do Said Ali, com quem também aprendi muito!

    Abraço,
    ACicero

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  12. Caro Homo Antiquus,

    Adorei a história do seu filho. "Ele é gente?" é o maravilhoso.

    Abraço,
    ACicero

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  13. Caro Antonio Cicero,

    Me desculpa, mas fiquei curioso e gostaria de saber quem é Said Ali.

    Abraço,
    Carlos Eduardo

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  14. Caro Carlos Eduardo,

    Said Ali foi um grande linguista. Escreveu, entre muitas outras coisas, um excelente livro sobre "Versificação portuguesa", publicado pela Edusp.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  15. Caro Antonio Cícero,

    É realmente de uma beleza clássica e tão de hoje este soneto. Não me lembrava ou não conhecia e vi você lendo-o na ótimo programa-entrevista com a Adriana Calcanhoto.
    Estive em Lisboa, no Mosteiro dos Jerônimos, e vi algo que me tocou. Na entrada, do lado esquerdo, está o túmulo de Vasco da Gama, o homem que conquistou o mar salgado de lágrimas de Portugal. E do lado direito, o túmulo de Camões, o que contou a história. Me emocionou a escolha de colocarem lado a lado o que fez e o que contou a história.
    Abraço

    Cesar Cardoso

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  16. qual o esquema de riamas encontrado nesse soneto de Camões?

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  17. qual o esquema de riamas encontrado nesse soneto de Camões?

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  18. O esquema de rimas é: abba, abba, cde, cde.

    Abraço

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