30.8.20

Manuel Bandeira: "O cacto"




O cacto


Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bonde, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a
                                                      [cidade de iluminação e energia:

– Era belo, áspero, intratável.






BANDEIRA, Manuel. "O cacto". In:______. 50 poemas escolhidos pelo autor. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

28.8.20

Guillaume Apollinaire: "Inscription qui se trouve sur le tombeau d'Apollinaire" / "Inscrição que se encontra sobre o seu túmulo"




Inscrição que se encontra
sobre o seu túmulo


Eu finalmente me afastei
De tudo o que há de natural
Posso morrer mas não pecar
E o que ninguém jamais tocou
Não só toquei como apalpei
Já perscrutei o que ninguém
Nunca sequer imaginou
E sopesei vezes sem conta
Até a vida imponderável
Se vou morrer, morro sorrindo






Incription qui se trouve
sur le tombeau d’Apollinaire


Je me suis enfin détaché
De toutes choses naturelles
Je peux enfin mourir mais non pêcher
Et ce qu’on n’a jamais touché
Je l’ai touché je l’ai palpé
Et j’ai scruté tout ce que nul
Ne peut en rien imaginer
Et j’ai soupesé maintes fois
Même la vie impondérable
Je peux mourir en souriant





APOLLINAIRE, Guillaume. "Inscription qui se trouve sur le tombeau d'Apollinaire" / "Inscrição que se encontra sobre seu túmulo". In: ASCHER, Nelson (trad. e org.). Poesia alheia; 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1998.

26.8.20

Alberto da Costa e Silva: "Soneto a Vermeer"




Soneto a Vermeer


De luto, a minha avó costura à máquina,
e gira um cata-vento em plena sala.
Vejo seu rosto, sombra que a janela
corrompe contra um pátio amarelado

de sol e de mosaicos. Sobre a mesa,
a tesoura, um esquadro, alguns retalhos
e a imóvel solidão. A minha avó,
com seus olhos azuis, o tempo acalma.

A minha avó é jovem, mansa e apenas
a limpidez de tudo. Sonho vê-la
no seu vestido negro, a gola branca,
contra o corpo de cão, negro, da máquina:

a roda, de perfil, parece imóvel
e a vida não se exila na beleza.




COSTA E SILVA, Alberto da. "Soneto a Vermeer". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.


23.8.20

Antonio Carlos Secchin: "Uma prosa súbita"




Uma prosa súbita

Se não for para arder,
   ser rosa no inverno de que serve?
     Eugénio de Andrade


Uma prosa súbita
para a rosa de neve:
às vezes é só um verso
onde a voz de Andrade ferve.
E perdura, apesar do inverno
armado na paisagem:
o que há pouco era flor
virou arte,
rosa em riste na beira do abismo
contra
o silêncio azul da tarde.




SECCHIN, Antonio Carlos. "Uma prosa súbita". In: REIS-SÁ, Jorge. Creio que foi o sorriso. Uma antologia. Porto: A casa dos ceifeiros, 2020.

21.8.20

Ramon Nunes Mello: "amor genuíno"




amor genuíno



perdoe
a rima
prefiro o amor
a paixão não tem
humor





MELLO, Ramon Nunes. "amor genuíno". In:_____. Há um mar no fundo de cada sonho. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora, 2016.

17.8.20

Rogério Batalha: "Bom mesmo"




Bom mesmo


bom mesmo é vagabundear ruas
ouvir o balbuciar das gentes
fitar uma flor perdida no baldio.

(até que o mar e sua franja de espuma
molhe seus pés cansados
e a dor tombe diante do inesperado salto).

bom mesmo é vagabundear astros
perfumar-se nos antros dos enamorados.

depois ir ao encontro das moscas
bater um papo com seus brejos
perder o norte e o sul
pescar do céu seu mel azul.

então, por na vasilha do dia
o à toa e o em vão das horas.




BATALHA, Rogério. "Bom mesmo". In:_____. Azul. Rio de Janeiro: Texto Território, 2016.


15.8.20

Caváfis: "Η αρχή των" / "Seu começo"




Seu começo

A satisfação de seu prazer ilícito
efetuou-se. Levantaram-se do leito,
e vestem-se às pressas, sem falar.
Saem em separado, furtivamente, da casa; e como
caminham um tanto apreensivos na rua, parecem
suspeitar que alguma coisa neles trai
em que espécie de leito há pouco se deitaram.

Mas como ganhou a vida do artista!
Amanhã, depois de amanhã ou após anos, serão escritos
os vigorosos versos cujo começo aqui ocorreu.





Η αρχή των

Η εκπλήρωσις της έκνομής των ηδονής
έγινεν. Απ’ το στρώμα σηκωθήκαν,
και βιαστικά ντύνονται χωρίς να μιλούν.
Βγαίνουνε χωριστά, κρυφά απ’ το σπίτι· και καθώς
βαδίζουνε κάπως ανήσυχα στον δρόμο, μοιάζει
σαν να υποψιάζονται που κάτι επάνω των προδίδει
σε τί είδους κλίνην έπεσαν προ ολίγου.

Πλην του τεχνίτου πώς εκέρδισε η ζωή.
Αύριο, μεθαύριο, ή με τα χρόνια θα γραφούν
οι στίχ’ οι δυνατοί που εδώ ήταν η αρχή των.




CAVÁFIS, Constantinos. "Η αρχή των" / "Seu começo". In:_____. Poemas de K. Kaváfis. Trad. de Isis Borges Belchior da Fonseca. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

13.8.20

Moraes Moreira: "Cantoras do meu Brasil"




Cantoras do meu Brasil


Só peço que me aguardem
Quero o feitiço de Carmem

Na escuridão quem me salva
É a luz da estrela Dalva

Juro que já me senti
A irreverente Aracy

Sabendo o que é ser humilde
Choro que nem Ademilde

Às vezes ouço na minha
Vozes de Linda e Dircinha

Já tive muitos amores
Me pego sendo Dolores

Falar que sou, nem precisa
Romântica feito Maysa

Minha paixão se declara
Clara, Clara, Clara e Clara

Antes durante e após
Da geração espontânea
Na cena contemporânea
Posso soltar minha voz

Fazendo aqui meu perfil
Com ferramentas modernas
Homenageio as eternas
Cantoras do meu Brasil





MORAES MOREIRA. "Cantoras do meu Brasil". In:_____. Poeta não tem idade. Rio de Janeiro: Numa, 2016.

Contra o PL 3968, que quer prejudicar os compositores


"Mais uma vez, os direitos de compositores, intérpretes e músicos estão sendo ameaçados.
O direito autoral é a justa remuneração de milhares de profissionais da música.

Projetos de lei nunca deveriam ser discutidos às pressas, em meio a uma pandemia mundial. Todas as partes precisam ser ouvidas.
O Projeto de Lei 3968 é de 1997. Por que agora seria urgente? Isso não faz sentido."

 
“Diga não ao PL 3968”

Milton Nascimento


ARTIGO: A FALTA DE DIÁLOGO
Projeto na Câmara quer cortar remuneração de artistas sem ouvi-los

Por Gilberto Gil, do Rio
Originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo, no dia 12/08/2020
 
A falta de diálogo vem interditando a participação e o debate na sociedade brasileira. E vou buscar como exemplo um fato que envolve, neste momento, a música brasileira, um dos traços mais marcantes da nossa cultura. O cenário é o Congresso Nacional.
Em meio à maior angustia vivida pela saúde pública mundial e suas consequências econômicas e sociais, alguns políticos decidiram investir contra os direitos autorais que garantem a sobrevivência de compositores, músicos e cantores. Estamos falando de uma iniciativa recente, no Congresso, de um projeto que, se aprovado, impactará diretamente 400 mil pessoas e suas famílias.
Por meio das MPs 907 e 948, tentaram, recentemente, permitir que o setor hoteleiro deixasse de pagar os direitos autorais pela execução pública das obras musicais em quartos de hotéis. Ao setor hoteleiro, uniram-se vários outros setores, todos com o mesmo objetivo: não pagar pelo uso de obras musicais.
Não conseguiram, mas não desistiram. Em sessão remota prevista para breve, a Câmara poderá aprovar, sem ouvir os titulares de direitos autorais, um requerimento de urgência ao projeto de lei 3.968 de 1997, ao qual estão apensados mais de 50 outros projetos, todos buscando a isenção do pagamento da remuneração que autores, músicos e intérpretes têm o direito de receber pelo uso de suas obras musicais.
A questão aqui colocada é que a Constituição, a Lei Federal de Direitos Autorais e normas internacionais de proteção à propriedade intelectual garantem aos autores o domínio sobre suas obras e o devido pagamento pela execução pública de suas criações.
Em 2013, a sociedade abriu uma ampla discussão, que resultou em diversas mudanças na Lei de Direito Autoral.

"Se o Congresso agora entende que esta lei deve ser revista, nós, artistas e entidades que nos representam, estamos dispostos a discutir o assunto. Queremos e devemos ser convocados para essa discussão.

Não concordamos —é importante que se diga— nem com o momento nem com a forma com que essa revisão está sendo proposta, pressupondo, de boa-fé, que a intenção do Congresso é, de fato, avançar nessa questão.
É um contrassenso que essa questão seja levada ao Congresso, de afogadilho, sem o contraditório e o confronto de opiniões, sem que todos os segmentos envolvidos se sentem à mesa.
Perguntamos: para onde foi o diálogo? A democracia pressupõe a participação de todos na definição dos processos políticos. Ouvir todas as partes interessadas nas questões que lhes dizem respeito é a norma do jogo democrático.
É descabido e desumano que isso ocorra em meio a um momento inédito de pandemia, quando milhões de brasileiros sofrem com incertezas em relação à sua saúde, convivem indefesos e impotentes com a morte diária de pessoas vitimadas por uma doença ainda não totalmente conhecida e enxergam um futuro econômico incerto.
Além de descabido e desumano, é traiçoeiro sacar de um projeto de 1997, anterior a uma lei que foi votada e aprovado em 2013. Todo esse movimento em falso para beneficiar interesses econômicos em detrimento da sobrevivência de milhares de trabalhadores. Sim, artista é trabalhador. Não podemos esquecer desse aspecto fundamental na discussão que precisa ser feita.
A indústria da música é uma parte importante da economia criativa do Brasil, e no meio da crise buscou se reinventar. Munidos de uma tecnologia da comunicação cada vez mais sem fronteiras, os artistas apostaram nas lives para chegar ao seu público. E tem sido assim nesses tempos em que não podemos nos abraçar, encontrar as pessoas que amamos nem nos divertir com segurança.
Portanto, a música está na contramão das medidas que tentam tolher a capacidade criativa dos artistas, impondo-lhes num momento tão difícil maiores restrições econômicas. Temos esperanças de que nenhuma medida nesse sentido —uma afronta ao Estado democrático de Direito— será aprovada sem que os artistas sejam chamados ao palco de debates para expor sua opinião na defesa dos seus direitos.
Evitar o debate, além de não democrático, pode soar como intolerância, palavra tão utilizada ultimamente no que tange às relações humanas e políticas e que deve estar longe, também, das questões que envolvam a cultura —essa dimensão simbólica que nos caracteriza e nos liberta, tão preciosa na construção de nossas identidades como povo e nação.

11.8.20

#TodosPelaMúsica #DireitosAutorais #NãoAoPL3968/1997



O Projeto de Lei 3.968/97 que tramita pela Câmara em caráter de urgência tenta isentar órgãos públicos e outras entidades do pagamento dos direitos autorais pelas obras musicais utilizadas. Para que a música exista da maneira que você escuta hoje, foi necessário trabalho duro e de muitas pessoas envolvidas. Estes profissionais, assim como qualquer outro, merecem ter seu trabalho remunerado. Se você paga para utilizar um serviço ou adquirir um produto, então por que não pagaria pela música?





10.8.20

Marcial: Epigrama 1.24




Epigrama 1.24

Veja, Deciano, aquele homem despenteado,
Cenho cerrado, que até incute medo,
E que só fala dos varões de antigamente:
Casou-se ontem, acredite: ele era a noiva.




MARCIAL. Epigrama 24. In: PIGNATARI, Décio. 31 poetas 214 poemas: do Rigveda e Safo a Apollinaire. 2ª Ed. Campinas: Unicamp, 2007.






Epigramma I.XXIV 

Aspicis incomptis illum, Deciane, capillis,     
Cuius et ipse times triste supercilium, 
Qui loquitur Curios adsertoresque Camillos?     
Nolito fronti credere: nupsit heri. 




MARTIALIS, M. Val. Epigramma XXIV. In:_____. Epigrammata. Org. por W.M. Lindsay. Oxford: Oxford U. Press, 1922.











8.8.20

Sophia de Mello Breyner Andresen: "25 de Abril"




25 de Abril


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo




ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "25 de Abril". In: REIS-SÁ, Jorge. Creio que foi o sorriso, uma antologia. Braga: Publito, 2020. 

4.8.20

Antonio Cicero: "Consegui"





Consegui

eis o que consegui:
tudo estava partido e então
juntei tudo em ti
toda minha fortuna
quase nada tudo muitas coisas
numa
só:
eu quis correr esse risco antes de virar
pó:
juntar tudo em ti:
toda joia todo pen drive todo cisco
tudo o que ganhei tudo o que perdi
meu corpo minha cabeça meu livro meu disco meu pânico meu tônico
meu endereço
eletrônico
meu número meu nome meu endereço
físico
meu túmulo meu berço
aquela aurora este crepúsculo
o mar o sol a noite a ilha
o meu opúsculo
meu futuro meu passado meu presente
meio aqui
e meio ausente

meu continente meu conteúdo
e além de todo o mundo
também tudo o que é imundo tudo
o medo e a esperança
algo que fica
algo que dança
o que sei o que ignoro
o que rio
e o que choro
toda paixão
todo meu ser
todo meu não
tudo estava perdido e aí
juntei tudo
em ti





CICERO, Antonio. "Consegui". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

1.8.20

Haroldo de Campos: "ideocabograma"



ideocabograma




pound attention !

joyce a minute !

  finnegans wait !

  don’t go beckett !

  arnoholzwege :

  i’m cummings !



  mallaimé

. . .





CAMPOS, Haroldo de. "ideocabograma". In:_____. Crisantempo: no espaço curvo nasce um.  São Paulo: Perspectiva, 2004.