21.1.19

Adriano Nunes: "Fluir"



Agradeço ao poeta Adriano Nunes por me ter dedicado o seguinte belo ensaio:




Fluir – para Antonio Cicero
Quando tocamos na palavra “rio”, parece vir, de imediato, a imagem de Heráclito de Éfeso (Ἡράκλειτος;  540-475 a.C.). Pois bem: em nossa língua, a portuguesa, a palavra “rio” vem do latim vulgar rius, do latim rīvus ("riacho, pequeno riacho"). Em espanhol também temos “río” e na língua francesa, encontramos, por sua vez, “rivière”. No antigo francês, havia a palavra “ru” pronunciada /ʁy/(ri, onde o “i” é fechado e tem pronúncia símile à letra ü alemã), também significando “pequeno riacho”. Nem no português nem no espanhol, temos alguma palavra que se assemelhe a “fluxo”, para definir e significar “rio”, o que definiria intrinsecamente melhor o que um rio é.
Na língua francesa, “rio” é usualmente e mais comumente designado por “rivière” cuja base etimológica também é a latina rius. “Rivière” também existe na língua inglesa, porém não significa “rio”, mas sim um colar de diamantes ou outras pedras preciosas. Todavia, a língua de Baudelaire apresenta uma palavra, que tem um uso menos comum, chamada “fleuve” (rio) originada, por sua vez, do latim “fluvius”. Lembrem-se de que, no latim clássico, a letra “v” é pronunciada como “u”, assim, a palavra soa “fluius”.
Vejam agora que interessante: dizem que a língua alemã é a língua da filosofia por sua capacidade de expressão máxima com as palavras, para dar sentido e significado às coisas. Não é que “rio”, em alemão, é “Fluss”, palavra que vem do antigo alemão “fluz” e que já chegou a ser Fluß (ortografia pré-1996)! Ainda, em alemão, podemos encontrar a palavra “Strom” que significa córrego (rio pequeno), corrente, corrente elétrica; eletricidade. Paremos, um pouco, aqui, para não cairmos em um labirinto etimológico aparentemente sem fim!
Essas derivações foram expostas para que percebamos as semelhanças linguísticas a fim de chegarmos a Heráclito, especificamente a alguns fragmentos, como o Fragmento 12. Neste fragmento, o filósofo grego diz “ποταμοῖσι τοῖσιν αὐτοῖσιν ἐμβαίνουσιν ἕτερα καὶ ἕτερα ὕδατα ἐπιρρεῖ” (sobre aqueles que entram nos mesmos rios, sempre diferentes águas fluem). No Fragmento 49a, há: ποταµοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐµϐαίνοµέν τε καὶ οὐκ ἐµϐαίνοµεν, εἶµέν τε καὶ οὐκ εἶµέν (entramos e não entramos nos mesmos rios, somos e não somos). E, por fim, o Fragmento 91: “ποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷ καθ' Ἡράκλειτον οὐδὲ θνητῆς οὐσίας δὶς ἅψασθαι κατὰ ἕξιν <τῆς αὐτῆς>· ἀλλ' ὀξύτητι καὶ τάχει μεταβολῆς] σκίδνησι καὶ πάλιν συνάγει [(μᾶλλον δὲ οὐδὲ πάλιν οὐδ' ὕστερον, ἀλλ' ἅμα)] συνίσταται καὶ ἀπολείπει καὶ πρόσεισι καὶ ἄπεισι” (Em um mesmo rio não se pode entrar duas vezes, de acordo com Heráclito, nem é possível tocar substância mortal duas vezes no que diz respeito ao seu estado. Mas, graças à rapidez e à força da mudança, dispersa-se e reúne-se outra vez, (ou melhor, une-se e passa nem novamente nem depois, mas simultaneamente) constitui-se e dissolve-se, aproxima-se e segue.).
O que notamos é a relação íntima entre “fluir” e “rio”, por isso, em alemão, a palavra “Fluss” parece atender melhor ao significado de “rio” do que as palavras das línguas de origem latina. Com o latim isso não pode ser atestado, já que há a palavra fluvius que também se significa “rio”. E com o grego antigo, que se pode afirmar? Na língua de Homero, “rio” é “ποταμός”, por isso temos em nossa língua “hipopótamo” (cavalo do rio), entre outras palavras. A sua etimologia é mesmo incerta. Mais comumente tenta-se explicá-la como relacionada a πῑ́πτω (cair). Poderia também ser relacionada a πετάννῡμι (expandir), o que a tornaria idêntica ao proto-germânico faþmaz (“abraçar”). Notem como os rios se expandem e abraçam o mar! A palavra πετάννῡμι (expandir) vem do proto-indo-europeu peth-. Alguns cognatos incluem fæm (do inglês antigo) e do latim “pateō”, “patulus”. Notem agora uma semelhança interessante: a palavra latina “patulus” é um adjetivo cujo significado original compreendia “aberto”, “bem aberto”, “escancarado”, ”espalhado, “estendido”. “Patulus” tem proximidade com “ποταμός”, (/po.ta.mós/).
O poeta e filósofo Antonio Cicero, em seu ensaio "Que é a poesia?" publicado na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no dia 4 de outubro de 2008, ao analisar o poema "O Rio", de Manuel Bandeira, diz, brilhantemente, que “desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite"”
Assim tudo flui e, em poesia, essa fluidez pode mesmo parecer e ser estática, num paradoxo que faz com que a poesia, enquanto arte, seja, nos moldes kantianos, uma finalidade sem fim e destituída de quaisquer interesses. Se pensarmos então que tudo muda e que as mudanças podem, de algum modo, ser necessárias ou urgentes, não poderemos esquecer os belos versos de Camões que parecem ser uma grande filosofia: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/Muda-se o ser, muda-se a confiança;/Todo o mundo é composto de mudança,”. Ora, mas Camões emprega justamente uma forma fixa, o soneto decassílabo, para tratar do tema da mudança!
Como esquecer também as linhas belas do Sermão do Mandato (1643), de Vieira, quando após defender que tudo muda e que “tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba”, conclui afirmando que “o amor perfeito, e que só merece o nome de amor, vive imortal sobre a esfera da mudança, e não chegam lá as jurisdições do tempo. Nem os anos o diminuem, nem os séculos o enfraquecem, nem as eternidades o cansam.”. Ainda que ele se refira a um amor metafísico, sobre-humano, não nos custa imaginar que o amor talvez fosse/seja a única coisa que escapasse/escape às jurisdições do tempo in totum, por isso tanto Cristo, ao proclamar o amor como o maior de tudo, quanto Immanuel Kant, ao afirmar categoricamente que a humanidade é um fim em si mesmo, talvez estivessem a dizer-nos o quanto é fundamental respeitar as diferenças e as igualdades, todas as pessoas, todas as mudanças.
E mais: não à-toa, Kant põe o tempo, em Kritik der reinen Vernunft como uma intuição pura, tratando-o em sua Estética Transcendental, pois estética em seu significado grego original quer dizer “sensação”. É preciso não só, portanto, o entendimento puro, mas também a intuição sensível para que as mudanças não só sejam percebidas como fenômenos, mas inteligivelmente compreendidas e explicadas. Deste modo, o sábio alemão afirma que “o tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. Não se pode suprimir o próprio tempo em relação aos fenômenos em geral, embora se possam perfeitamente abstrair os fenômenos do tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele é possível toda a realidade dos fenômenos.”.
Este percurso ensaístico finda com a possibilidade de novos momentos, porque, sendo um acontecimento, transcende e flui. Que rio ou mar poderiam ser mais imensos e ter tanta força com as suas águas do que a Poesia? Se para Kant, nada pode suprimir o tempo por ser uma condição necessária a priori, a poesia, astutamente, escapa às armadilhas do tempo, como grandeza supratemporal, pois não apenas pode engendrá-lo como excluí-lo das realidades fatuais.
Adriano Nunes

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