Agradeço ao poeta Adriano Nunes por me ter dedicado o seguinte belo ensaio:
Fluir – para Antonio
Cicero
Quando tocamos na
palavra “rio”, parece vir, de imediato, a imagem de Heráclito de Éfeso
(Ἡράκλειτος; 540-475 a.C.). Pois bem: em nossa língua, a portuguesa, a
palavra “rio” vem do latim vulgar rius, do latim rīvus ("riacho, pequeno
riacho"). Em espanhol também temos “río” e na língua francesa,
encontramos, por sua vez, “rivière”. No antigo francês, havia a palavra “ru”
pronunciada /ʁy/(ri, onde o “i” é fechado e tem pronúncia símile à letra ü
alemã), também significando “pequeno riacho”. Nem no português nem no espanhol,
temos alguma palavra que se assemelhe a “fluxo”, para definir e significar
“rio”, o que definiria intrinsecamente melhor o que um rio é.
Na língua francesa,
“rio” é usualmente e mais comumente designado por “rivière” cuja base
etimológica também é a latina rius. “Rivière” também existe na língua inglesa,
porém não significa “rio”, mas sim um colar de diamantes ou outras pedras
preciosas. Todavia, a língua de Baudelaire apresenta uma palavra, que tem um
uso menos comum, chamada “fleuve” (rio) originada, por sua vez, do latim
“fluvius”. Lembrem-se de que, no latim clássico, a letra “v” é pronunciada como
“u”, assim, a palavra soa “fluius”.
Vejam agora que
interessante: dizem que a língua alemã é a língua da filosofia por sua
capacidade de expressão máxima com as palavras, para dar sentido e significado
às coisas. Não é que “rio”, em alemão, é “Fluss”, palavra que vem do antigo
alemão “fluz” e que já chegou a ser Fluß (ortografia pré-1996)! Ainda, em
alemão, podemos encontrar a palavra “Strom” que significa córrego (rio
pequeno), corrente, corrente elétrica; eletricidade. Paremos, um pouco, aqui, para
não cairmos em um labirinto etimológico aparentemente sem fim!
Essas derivações foram
expostas para que percebamos as semelhanças linguísticas a fim de chegarmos a
Heráclito, especificamente a alguns fragmentos, como o Fragmento 12. Neste
fragmento, o filósofo grego diz “ποταμοῖσι τοῖσιν αὐτοῖσιν ἐμβαίνουσιν ἕτερα
καὶ ἕτερα ὕδατα ἐπιρρεῖ” (sobre aqueles que entram nos mesmos rios, sempre
diferentes águas fluem). No Fragmento 49a, há: ποταµοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐµϐαίνοµέν
τε καὶ οὐκ ἐµϐαίνοµεν, εἶµέν τε καὶ οὐκ εἶµέν (entramos e não entramos nos
mesmos rios, somos e não somos). E, por fim, o Fragmento 91: “ποταμῷ γὰρ οὐκ
ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷ καθ' Ἡράκλειτον οὐδὲ θνητῆς οὐσίας δὶς ἅψασθαι κατὰ
ἕξιν <τῆς αὐτῆς>· ἀλλ' ὀξύτητι καὶ τάχει μεταβολῆς] σκίδνησι καὶ πάλιν
συνάγει [(μᾶλλον δὲ οὐδὲ πάλιν οὐδ' ὕστερον, ἀλλ' ἅμα)] συνίσταται καὶ
ἀπολείπει καὶ πρόσεισι καὶ ἄπεισι” (Em um mesmo rio não se pode entrar duas
vezes, de acordo com Heráclito, nem é possível tocar substância mortal duas
vezes no que diz respeito ao seu estado. Mas, graças à rapidez e à força da
mudança, dispersa-se e reúne-se outra vez, (ou melhor, une-se e passa nem
novamente nem depois, mas simultaneamente) constitui-se e dissolve-se,
aproxima-se e segue.).
O que notamos é a
relação íntima entre “fluir” e “rio”, por isso, em alemão, a palavra “Fluss”
parece atender melhor ao significado de “rio” do que as palavras das línguas de
origem latina. Com o latim isso não pode ser atestado, já que há a palavra
fluvius que também se significa “rio”. E com o grego antigo, que se pode
afirmar? Na língua de Homero, “rio” é “ποταμός”, por isso temos em nossa língua
“hipopótamo” (cavalo do rio), entre outras palavras. A sua etimologia é mesmo
incerta. Mais comumente tenta-se explicá-la como relacionada a πῑ́πτω (cair).
Poderia também ser relacionada a πετάννῡμι (expandir), o que a tornaria
idêntica ao proto-germânico faþmaz (“abraçar”). Notem como os rios se expandem
e abraçam o mar! A palavra πετάννῡμι (expandir) vem do proto-indo-europeu peth₂-. Alguns cognatos incluem fæm (do inglês antigo) e do latim
“pateō”, “patulus”. Notem agora uma semelhança interessante: a palavra latina
“patulus” é um adjetivo cujo significado original compreendia “aberto”, “bem
aberto”, “escancarado”, ”espalhado, “estendido”. “Patulus” tem proximidade com
“ποταμός”, (/po.ta.mós/).
O poeta e filósofo
Antonio Cicero, em seu ensaio "Que é a poesia?" publicado na
"Ilustrada", da Folha de São Paulo, no dia 4 de outubro de 2008, ao
analisar o poema "O Rio", de Manuel Bandeira, diz, brilhantemente,
que “desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso
rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O
primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a
sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o
mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O
rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da
constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/
Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite"”
Assim tudo flui e, em
poesia, essa fluidez pode mesmo parecer e ser estática, num paradoxo que faz
com que a poesia, enquanto arte, seja, nos moldes kantianos, uma finalidade sem
fim e destituída de quaisquer interesses. Se pensarmos então que tudo muda e
que as mudanças podem, de algum modo, ser necessárias ou urgentes, não
poderemos esquecer os belos versos de Camões que parecem ser uma grande
filosofia: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/Muda-se o ser, muda-se a
confiança;/Todo o mundo é composto de mudança,”. Ora, mas Camões emprega
justamente uma forma fixa, o soneto decassílabo, para tratar do tema da
mudança!
Como esquecer também as
linhas belas do Sermão do Mandato (1643), de Vieira, quando após defender que
tudo muda e que “tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere,
tudo acaba”, conclui afirmando que “o amor perfeito, e que só merece o nome de
amor, vive imortal sobre a esfera da mudança, e não chegam lá as jurisdições do
tempo. Nem os anos o diminuem, nem os séculos o enfraquecem, nem as eternidades
o cansam.”. Ainda que ele se refira a um amor metafísico, sobre-humano, não nos
custa imaginar que o amor talvez fosse/seja a única coisa que escapasse/escape
às jurisdições do tempo in totum, por isso tanto Cristo, ao proclamar o amor
como o maior de tudo, quanto Immanuel Kant, ao afirmar categoricamente que a
humanidade é um fim em si mesmo, talvez estivessem a dizer-nos o quanto é
fundamental respeitar as diferenças e as igualdades, todas as pessoas, todas as
mudanças.
E mais: não à-toa, Kant
põe o tempo, em Kritik der reinen Vernunft como uma intuição pura, tratando-o
em sua Estética Transcendental, pois estética em seu significado grego original
quer dizer “sensação”. É preciso não só, portanto, o entendimento puro, mas
também a intuição sensível para que as mudanças não só sejam percebidas como
fenômenos, mas inteligivelmente compreendidas e explicadas. Deste modo, o sábio
alemão afirma que “o tempo é uma representação necessária que constitui o
fundamento de todas as intuições. Não se pode suprimir o próprio tempo em
relação aos fenômenos em geral, embora se possam perfeitamente abstrair os
fenômenos do tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele é possível
toda a realidade dos fenômenos.”.
Este percurso ensaístico
finda com a possibilidade de novos momentos, porque, sendo um acontecimento,
transcende e flui. Que rio ou mar poderiam ser mais imensos e ter tanta força com
as suas águas do que a Poesia? Se para Kant, nada pode suprimir o tempo por ser
uma condição necessária a priori, a poesia, astutamente, escapa às armadilhas
do tempo, como grandeza supratemporal, pois não apenas pode engendrá-lo como
excluí-lo das realidades fatuais.
Adriano Nunes
É sem dúvida um bom ensaio. Parabéns ao autor.
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