Medusa
Cortei a cabeça da
Medusa
por inveja. Quis eu
mesmo o olhar
sem olhos que vê e se
recusa
a ser visto e desse
modo faz
das demais pessoas
pedras: pedras
sim, preciosas, da
mais pura água,
onde o olhar mergulha até
a medula,
diáfanas,
translúcidas, cegas.
Refleti muito, antes.
Na verdade
estes meus olhos
provêm de carne
de mulher, não do
nada imortal
da divindade. Como
encarar
com eles a Górgona? Mas mal
pensando assim,
lembrei ser mortal
ela também: e seu pai
é um deus
do mar mas eu sou
filho de Zeus.
Mesmo assim não quis
enfrentá-la olhos
nos olhos. Peguei
emprestado o espelho
da minha irmã e
adentrei o cômodo
da Medusa de soslaio,
vendotudo por reflexos: o seu corpo
em terceiro plano,
atrás de heróis
de pedra e dos meus
olhos esconsos
em primeiríssimo. Eis
o corte
da lâmina especular:
do lado
de cá eu, sem corpo,
a olhar; do outro
lado eu, olho olhado,
olho enviesado
e rosto e corpo entre
muitos corpos,
um dos quais o dela.
A mesma lâmina
decapitou-a também:
do lado
de cá guardo seu
olhar e faina;
e lá jaz seu vulto
desalmado.
Mas nada é tão
simples. Do pescoço
cortado nasceu um
cavalo de asas
(é que o deus do mar
a engravidara)
e mergulhou no
horizonte em fogo
crepuscular. Contam
que, no monte
Hélicon, seu coice abriu uma
fonte.
A ser não sendo, de
madrugada
levanto com sede
dessa água.
CICERO, Antonio. "Medusa". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.
Prezadíssimo Cícero, acabei de ver sua bela palestra sobre "O contemporâneo e o moderno", no "Colóquio sobre o contemporâneo: o fim, o resto, o começo". Você poderia me dizer se foi publicado em algum lugar? Obrigadíssimo e Feliz Ano Novo!
ResponderExcluirPrezado Sandro,
ResponderExcluirpeço-lhe desculpas pela demora a postar e a responder ao seu comentário. O que ocorre é que me encontro em viagem, fora do Brasil, e com pouco tempo para acessar a Internet.
Quanto à sua pergunta, creio que essa conferência -- ou parte dela -- foi publicada sim, mas somente poderei lhe dar uma resposta definitiva quando retornar ao Brasil, no dia 10 de janeiro.
Abraço,
Antonio Cicero
Tudo bem, Cícero. Muito obrigado!
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