Publico a seguir o belo texto da conferência que a grande romancista portuguesa Inês Pedrosa pronunciou no festival literário Correntes d'Escritas
em 25 de fevereiro do corrente ano.
Tema da mesa: “Por que
não há nada em vez de tudo?”
O que é tudo?
O que é nada? O que é em vez de? Vivemos, como assinalou Milan
Kundera, no planeta da inexperiência: as nossas vidas são um rascunho contínuo,
que um dia acaba. Poucos conseguem verdadeiramente fazer da certeza da morte a
ciência da vida. Viver cada dia como se fosse o ultimo seria demasiado triste.
Mas viver cada dia como o dia único que de facto é far-nos-ia sentir muito mais
felizes do que, em geral, sabemos ser. A espécie humana é biologicamente desejante.
Lembro-me daquela criança que atroava o café com a sua birra. Perguntavam-lhe o que queria: um sumo, um refrigerante, um leite
com chocolate, uma água. A tudo a criança dizia que não, cada vez mais
desesperada. Acabou por se explicar, gritando: «Eu quero uma coisa que
não haja!».
Todos somos aquele menino filósofo.
Todos queremos uma coisa que não haja em vez das múltiplas coisas que existem.
E se tivéssemos tido a sorte genética da Nicole Kidman ou do Marcelo
Mastroianni? E se tivéssemos o talento e a riqueza de Tolstoi? E se eu tivesse
nascido homem num país rico? O “e se” é, por si só, um tesouro, se conseguirmos
apontá-lo para o futuro particular e não para o passado genérico: e se eu escrevesse um romance que
captasse o não-dito do meu tempo? E se
eu valorizasse o amor que tenho? E se
eu fizesse alguma coisa pelos que sofrem ao meu lado? E se eu me dedicasse a corrigir uma injustiça concreta? E se eu deitasse para o lixo todos os sentimentos
comparativos e me concentrasse em ser apenas, num superlativo solitário, o
melhor que posso ser?
Os estrangeiros em turismo dizem que nos
falta, demasiadas vezes, a capacidade de dar valor ao que há. Queixamo-nos
quando chove, porque está frio, e quando faz sol, porque o calor é excessivo.
Nunca estamos bem, e parece que esse apego ao mal-estar faz parte de nós. No
entanto, raras vezes nos ocorre aproveitar essa incomodidade permanente para ir
à procura de qualquer coisa que ainda não
haja. Imobilizamo-nos a olhar para o que há, nas mãos de outros – e tornamo-nos
estátuas falantes do ressentimento. Em alguns casos, esfolamo-nos niponicamente
a trabalhar para conseguir aumentar aquilo que há – é a isso que, em geral, se
chama ambição. E o que fazemos ao sonho das coisas que não há? Espero que nunca
cheguemos à anorexia onírica das japonesas solteiras que passam o ano a
trabalhar para gozarem a semana de férias a que têm direito nos bailes de
Janeiro em Viena de Áustria, nos braços ilusórios de fantasmáticos príncipes
loiros. Há agências de viagens em Tóquio especializadas nesta espécie de
sonho cinderélico, que faz as vezes de desejo. Escreveu Slavoj Zizek (em Bem-vindo ao Universo do Real!): «A
traição do desejo tem um nome: felicidade.»
Neste mundo em que o hedonismo se
tornou lei, as pessoas sentem-se culpadas quando não conseguem fruir o prazer –
e assim morre o desejo, motor da singularidade humana. Amália Rodrigues, que
sabia de desejo pelo menos tanto como Schopenhauer ou Barthes, sintetizou em
meia dúzia de versos este problema político central – porque o desejo é o
gatilho erótico de todas as revoluções, pessoais ou intercontinentais. Escreveu
Amália (e cito): «Já não temos fome,
mãe / mas já não temos também / o desejo de a não ter / Já não sabemos sonhar /
Já andamos a enganar / o desejo de morrer.»
Os condenados dos campos da morte do
nazismo reuniam-se nas infectas e geladas latrinas para sussurrarem uns aos
outros textos literários. Não tinham nada a não ser esse tudo das palavras que
os arredavam – mais uma hora, mais um dia – do desespero da desumanização
radical. Não só não é bárbaro escrever poesia depois do Holocausto, ao contrário
do que afirmou Theodor Adorno, como é cada vez mais necessário escrever e ler,
ter o atrevimento de pensar tudo o tempo todo, para que não renasçam das cinzas
novas formulações dessa barbárie.
O genocídio organizado como indústria
que o nazismo promoveu é ontologicamente incomparável. Significa isto que não
tem equivalências, porque fazer com que uma coisa seja equivalente a outra é
integrá-la, aceitá-la como possível dentro de um determinado sistema,
normalizá-la. Dizer, como disse corajosamente Hannah Arendt, que os
totalitarismos se afirmam através da banalização do mal não é a mesma coisa do
que instituir o mal como facto banal. Temos de aprender a distinguir, pensar
cada situação no seu específico contexto para não nos deixarmos cair nas areias
movediças da indignação indiferenciada. É dessas areias que nascem os monstros
que anestesiam e paralisam os indignados genéricos, arrastando-os para a
resignação diante do mal. A intolerância que hoje sentimos rugir resulta de uma
submissão à tolerância. Quando consideramos a mutilação genital feminina ou a
amputação da mão de um ladrão como actos culturalmente justificados, isto é,
quando nos abstemos de agir contra a existência desses actos, resguardando-nos
sob o simpático guarda-chuva da tolerância, estamos a permitir a sua
continuidade, ou seja, a favorecer o princípio da intolerância. O ensaio mais
fulgurante que conheço sobre estas questões comparativas, fundamentais para a
compreensão do estado do mundo, é o ensaio de Antonio Cicero intitulado Da Atualidade do Conceito de Civilização,
onde o filósofo afirma, e cito: «a civilização está em maior grau presente onde
os direitos civis sejam formalmente reconhecidos e materialmente respeitados, e
na medida em que o sejam.» A razão humana, a luz do cogito de Descartes, que se
identifica com a própria capacidade de duvidar é, diz-nos Antonio Cicero, o
grande fundamento civilizacional – do qual continuamos tão distantes hoje, com
a nossa intolerável tolerância, como há cinco séculos, com o seu reverso, a
intolerável intolerância dos nossos antepassados. Ousemos olhar para lá do
nosso cercado e pensar todas as coisas como se nunca tivessem sido pensadas –
só a esta acção despojada e genuinamente empenhada se pode chamar pensamento.
Ousemos sair do regime tenebrosamente confortável do «tudo é relativo e nada
podemos fazer» para esta outra pergunta: entre o tudo e o nada, que são a vida
e a morte, o que posso eu fazer? «Chegamos
ao ponto de nos alegrarmos com uma liberdade que nasce do estéril, que vem do
destruído», escreveu Ignacio de Loyola Brandão, na terrível distopia de Não Verás País Nenhum, um fantástico
romance do qual a realidade se aproxima sinuosa e festivamente.
A criança que grita para que a deixem
querer uma coisa que não haja é a musa de todos os livros, a musa de todos os
desejos que circulam em nós, pedindo apenas a graça de continuar em movimento,
para lá da infantil desilusão das felicidades alcançadas. Essa coisa que nos
fascina porque não há pode ser um átomo ou o transporte molecular, um romance,
uma música, uma pintura – mas frequentemente é apenas e só a coisa que há ou
julgamos haver na mão, na cabeça, na casa dos outros. Quando confinamos o
absoluto do sonho ao relativo da comparação, ele deixa de ser viagem
interestelar e torna-se casebre prisional. Imagino um mundo de sonhos
incomparáveis, onde as estrelas fossem elementos do céu e não adereços da
crítica literária jornalística, a ambição uma corrida de cada um com os seus
íntimos e inalienáveis sonhos, e o sucesso a capacidade de descobrir o novo
dentro do velho conhecido, isto é, a mais perfeita das artes e aquela em que
nos temos mostrado mais imperfeitos – o amor.
Inês Pedrosa