Leiam, a seguir, o belo ensaio escrito
pelo Professor Wilberth Salgueiro sobre meu poema "Presente". Esse
ensaio foi publicado em Curitiba, no jornal literário Rascunho, nº
198, no corrente mês.
Sob a pele das
palavras | Wilberth Salgueiro
PRESENTE, DE
ANTONIO CICERO
Por que não me deitar sobre este
gramado, se o consente o tempo,
e há um cheiro de flores e verde
e um céu azul por firmamento
e a brisa displicentemente
acaricia-me os cabelos?
E por que não, por um momento,
nem me lembrar que há sofrimento
de um lado e de outro e atrás e à frente
e, ouvindo os pássaros ao vento
sem mais nem menos, de repente,
antes que a idade breve leve
cabelos sonhos devaneios,
dar a mim mesmo este presente?
No início do imprescindível livro Na sala de aula, Antonio
Candido oferece um simples e, ao que parece, esquecido conselho: ALer infatigavelmente o texto analisado é a
regra de ouro do analista. A multiplicação das leituras suscita intuições, que
são o combustível neste oficio. Theodor Adorno chamaria a isso de primazia do objeto: é a
dedicação concentrada àquilo que nos ocupa, envolve, seduz. Seguindo a regra, o
leitor do poema Presente de Antonio Cicero, após idas e
vindas, perceberia tratar‑se de um soneto (sem as divisões estróficas
tradicionais), de versos octossilábicos, com todas as catorze rimas em lei,
composto por apenas dois períodos, ambos interrogativos, e em que o título
coincide com a ambivalente palavra final: presente. Tendo tal estrutura em
vista, o leitor aventura‑se além.
Porventura, a propósito, é o nome do livro (indicado
ao Portugal Telecom), de 2012, onde se abriga o poema Presente. Em vez da previsível
distribuição em estâncias de 4/4/3/3 versos, Cicero prefere o soneto compacto,
de modo a não dispersar no trânsito entre quadras e tercetos o pensamento que
se forja à medida que a leitura avança. Aqui, a despeito da inexistência da
separação espacial, pode‑se, sim, visualizar dois blocos (versos 1‑6 e 7‑14),
demarcados nitidamente pela frase‑pergunta que sustentam. O poema e seu teor
representam bem a dicção filosófica que acompanha a obra do autor de O mundo desde o fim (1995).
Tanto Antonio Carlos Secchin, na orelha de Porventura, quanto Alberto
Pucheu, no volume da coleção Ciranda
da Poesia (Eduerj, 2010)
dedicado a Cicero, apontam o gosto e a afinidade deste com a cultura clássica.
Não será por acaso, assim, que a tópica do carpe
diem destaque‑se do corpo de Presente – desde o título, aliás. Em
síntese, o que deseja o personagem ali projetado? Que ele possa, plenamente,
usufruir de si mesmo, neste momento de comunhão com a natureza, sem nada
exterior obstruir essa intensa fruição. Os signos da natureza transbordam:
gramado, flores, céu, brisa, pássaros, vento compõem um cenário bucólico,
idílico, que não se quer conspurcado. A regularidade rítmica e rímica colabora
sobremaneira para esse enleio a que o poema aspira: o movimento assonante de
todas as catorze rimas externas em /e/ se reforça com outras tantas rimas
internas também em /e/ e encontra eco no êxtase do penúltimo verso – “cabelos sonhos devaneios” em que a ausência de pontuação sugere
que o sujeito parece estar mesmo imerso em si.
Mas todo o clima, todo o desejo, todo o
(diria Freud) princípio de prazer se choca com o princípio de realidade, esse
inimigo da libido, de sonhos e devaneios. O poeta pressente que algo pode
estragar o dêitico momento, “este
presente” desde sempre desdobrado na
simultaneidade de uma “dádiva” e de um “agora”: como um fantasma ou uma
culpa, a sombra do “sofrimento” paira sobe tudo, incontornável, “de um lado e de outro e atrás e
à frente”. Cético, bem que o poeta tenta, retórico, desvencilhar‑se do incômodo
de ter de “lembrar que há
sofrimento”, mas a lembrança insiste, atrapalha, se fixa, constrangedora,
iniludível, nos versos 8 e 9. Na verdade, todo o poema, erguido em torno de
duas perguntas, afirma a dúvida: é possível escrever poemas assim, tão abnegadamente
líricos e subjetivos, enquanto permanece, ubíquo e monstruoso, o sofrimento
humano? A existência concreta do poema dirime a suspeita: sim, é possível. A
resposta, no entanto, está longe de resolver o impasse que a arte tem diante da
história, o artista diante da vida, o valor estético diante do compromisso
ético.
Na célebre Palestra sobre lírica e sociedade (1957), posterior ao texto Crítica cultural e sociedade (1949) em que se registrou o
imperativo de que “escrever um
poema após Auschwitz é um ato bárbaro”, Adorno dirá que “as mais altas composições líricas
são, por isso, aquelas nas quais o sujeito, sem qualquer resíduo da mera
matéria, soa na linguagem, até que a própria linguagem ganha voz”. Aqui me
parece residir o nó górdio e a glória dos versos de Antonio Cicero: o poema faz
duas longas e densas perguntas, mas não as responde. Não as responde porque
ele, o poema, seria a única resposta possível. O poeta deixa claro que não
desconhece a existência soberana do sofrimento, que está “de um lado e de outro e atrás e à
frente”, mas alimenta a hipótese de –diante
de uma brisa que lhe acaricia os cabelos e diante de uma idade que,
supostamente avançada, em breve levará esses mesmos cabelos – deixar-se curtir, quase
epifanicamente, aquele momento: singular e anônimo, pessoal e intransferível.
Mas toda epifania, quando se transforma em
arte, passa a obedecer a diverso modus
faciendi. A abstração vira enigma formal, que o poeta cifra. A experiência
do sujeito, sempre histórica, ganha corpo no poema, feito uma poeira incrustada
numa ranhura de um móvel antigo. O desejo abstrato não é representável; escapa.
Ao poeta compete tentar deixar‑se soar na linguagem, “até que a própria linguagem ganhe voz”.
O poema Presente de Cicero encena tal movimento: em
disfarce de soneto, elabora duas perguntas, com métrica e rimas planejadas,
indagando se é possível, ainda que “por
um momento”, deixar o sofrimento do mundo de lado e, aproveitando (carpe
diem) o que a natureza lhe oferta, dedicar‑se inteiramente a si mesmo; em
suma, “por que não (...) dar a
mim mesmo este presente?”. A resposta está na pergunta: se “este presente” é
o tempo real da experiência vivida e é também a dádiva, o mimo que se ganha em
ocasião especial, então este presente (tempo e dádiva) só pode ganhar forma em
um único lugar: na linguagem. Ou, no caso, no poema que temos à vista. O
presente – este – que
o poeta sempre quer é o poema.
E o sofrimento? Ora, o poema é a prova do
conflito existencial do poeta. Seduzido pelo êxtase epifânico e introspectivo,
que de algum modo o afastaria da dor mundana, o sujeito só pode, no entanto,
optar pela razão do poema, que exige dele cálculos internos (métrica, rimas,
pontuação, elipses, etc.) e que o aproxima de reflexões que incorporam aquele
mesmo sofrimento que não quer, pelo menos "por um momento", lembrar.
Talvez por, exatamente, tanto se “lembrar que há sofrimento/ de um lado e de
outro e atrás e à frente” é que tenha se agigantado tamanha vontade de
esquecimento, hedonismo e alienação, traduzida em carícia, sonho e devaneio. Em Presente, Antonio Cicero
insinua, com delicadeza, que, se na vida real prazer e sofrimento se conflitam,
no espaço fictício do poema se entrelaçam – como
se a dor do sujeito, virando poema, fosse a própria delícia da trama da
linguagem. E por que, se presente (em forma de tempo, dádiva e poema), não
seria?
me lembrou Epicuro
ResponderExcluirExcelente o texto sobre o poema "Presente". Acabei a leitura no jornal Rascunho e, por isso, acabei aqui, desfrutando do blog.
ResponderExcluirO poema "Presente" é envolvente, li e reli e reli. Poesia de primeira água - termo do gosto de José Paulo Paes, que conservo por dizer muito. De primeira água, repito, e não resisto: belíssimo poema!
Gerana Damulakis
Muito obrigado, Gerana!
ResponderExcluirAbraço,
Antonio Cicero
Bela análise de um belo poema.
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