22.3.13

Machado de Assis: "Uma criatura"





Uma criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a vida.




MACHADO DE ASSIS. "Ocidentais". In:_____. Obra completa. Vol.III. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973.

4 comentários:

  1. Este Machado que tão cedo conheci e do qual, ainda hoje, descubro inéditos... para mim.
    Sim, é a Vida!

    Obrigada, pela partilha

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  2. Cicero,

    que poema belo! Grato por compartilhar!



    Abraço forte,
    Adriano Nunes

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  3. "Toda a poesia - e a canção é uma poesia ajudada - reflete o que a alma não tem. Por isso a canção dos povos tristes é alegre e a canção dos povos alegres é triste".

    Com essas palavras Fernando Pessoa traduz o que vai pela alma dos compositores. Os grandes talentos são antagônicos e díspares...
    Machado é sarcástico e, por vezes, destila um humor fino. De outras, impinge ao leitor uma crítica social amarga. O talento, porém, é sempre extraordinário, e o autor sempre surpreendente.

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  4. Caro Cicero,

    quando fiz este poema abaixo lembrei-me desse do Machado, que aqui li.

    VOCÊ SOUBE?

    O homem vai para Marte
    numa viagem sem volta.
    É que lá a gravidade
    é leve, e as coisas da Terra
    insuportáveis quando se retorna.

    A água é lá mais gelada
    que a neve, e a radiação
    ferve o sangue. Quem iria
    na viagem só de ida?

    É como a morte, ela disse.
    Eu disse Não,
    é como a vida.

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