Os filósofos esticam o significado de palavras até que essas mal conservam algo do seu sentido original; chamam alguma abstração borrada que criaram de “Deus” e posam para o mundo inteiro como deístas, crentes que conheceram um conceito mais puro de Deus, embora seu Deus seja apenas uma sombra sem substância, e não mais a personalidade poderosa da doutrina religiosa.
FREUD, Sigmund.
Die Zukunft einer Illusion. Leipzig: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927.
FUTURO DE UM USO
ResponderExcluirTalvez se possa falar da "História de um Conceito", do seu trajecto, da manipulação dos múltiplos sentidos e, ironia da ironias, estes sentidos não se fixam, não se cristalizam, mas deslizam, fluem, quase inapreensíveis. Talvez se possa falar que a filosofia precisa de inventar conceitos, é uma máquina de criação de conceitos, os seus instrumentos de interpelação, de diagnóstico e prognóstico. Mas, outra ironia das ironias, os conceitos são sempre reinvenções de conceitos, não escapamos a esta omnipresença conceptual. Assim, qualquer avaliação é já objecto de avaliação no seu momento de criação. O que seria um conceito puro? Um conceito sem termo, pura ideia, arquétipo, substância primeira, Verbo? Não há futuro para esta ilusão. Apenas podemos ficar com um certo uso e comunicar essa possibilidade de uso. Um conceito é um uso, nada mais.
Sobrou prá todo mundo! Deus não existe e a filosofia é a pré-história da ciência? É positiva essa proposta...
ResponderExcluirE se *deus* for de fato uma sombra sem substância e não aquela fictícia personalidade poderosa da doutrina religiosa?
ResponderExcluirJá dizia Lao Tzu…
[]’s
Cacilhας, La Batalema
Caro Carlos Frazão,
ResponderExcluirParece-me que o que Freud está dizendo é algo muito claro e verdadeiro. O Velho Testamento desenha uma noção bastante definida de um Deus patriarcal, um monarca de personalidade muito forte, criador do mundo e de tudo que nele existe, constantemente interferindo nos assuntos humanos, generoso para com seus favoritos, cruel para com os inimigos e pecadores etc. Nos tempos modernos, alguns filósofos conceberam o deísmo, cujo “Deus” nada tem de pessoal, nada tem a ver com os assuntos humanos, não possui nenhuma caracerística positiva, está ausente do mundo: é, em comparação com o Senhor do Velho Testamento, a “sombra sem substância” de que fala Freud. Marx dizia, por isso, que o deísmo era um ateísmo envergonhado ou medroso.
Mas não nos restrinjamos ao deísmo. De maneira mais geral, toda vez que se mostra a inconsistência de determinada noção de Deus, o teísta alega que a noção criticada não é a VERDADEIRA noção de Deus: e, caso pressionado, refugia-se em alguma “abstração borrada” ou “inefável”, pretensamente inalcançável pela razão crítica.
E, quando essa atitude mesma é criticada, sua saída é exatamente a de pretender que TODO conceito, TODA filosofia consiste numa abstração borrada. Ora, quem realmente acha coisas desse tipo deveria, para ser coerente, abdicar tanto de tentar fazer filosofias borradas quanto de tentar falar de deuses borrados.
Caro António Cicero
ResponderExcluirMeu comentário é mais abrangente do que a abordagem do conceito de "Deus". Pretendi expor que nenhum conceito tem a propriedade de reter um significado - seja ele qual for -, pelo simples ou complexo facto que ao entrar na comunicação, na partilha do seu uso, está sujeito a vários depósitos de interpretações. Por outro lado, quis negar qualquer "substancialismo", entendido no sentido de que as palavras ou os conceitos vêm etiquetar uma existência prévia.. Como dizia Heidegger, "a linguagem é a casa do ser", não há mundo sem palavras.
Mas não deitemos o bebé fora com a água do banho. Tanto na ciência como na filosofia é essencial a definição precisa de conceitos como instrumentos de investigação, definição integrada no contexto de um determinado paradigma em vigor. Dito isto, não podia estar mais de acordo consigo. Pode-se sempre argumentar segundo diferentes perspectivas a partir de um tema que se elegeu para análise. Não sugeri que toda a interpretação é legítima, mas fui mais radical. Na minha crítica integra-se a denúncia da facilidade, ou da cobardia de que falava Marx a propósito do deísmo, com que se pretende salvar o que ameaça derrocada. O deísmo facilitou, na modernidade, o contorno do problema do teísmo, digamos assim. Não é por acaso que Descartes é um defensor deste expediente de um deus criador e prófugo do mundo, num momento que era urgente pensar as consequências de uma revolução epistemológica.
Não se afigura um argumento de defesa, em concreto, do teísmo, o facto de eu afirmar que os conceitos deslizam, fluem, ou que escapam, se quiser, ao "tribunal da razão crítica". Pelo contrário, os conceitos são construções sujeitas a interpretações, mutações, reformulações, com um fundo, inexoravel, de avaliação crítica. Digo mais, de acordo com Popper quando fala em relação às teorias, os conceitos nascem e estão condenados a extinguir-se, sendo substituídos por outros que se revelaram mais aptos. Freud tem toda a razão, o conceito de “Deus” é uma ilusão, seja pelo lado teísta, deísta, ou qualquer outro. O seu uso não tem futuro, sendo que a sua perda é tanto mais iminente quanto mais se invoca nele uma VERDADE que escapa à razão. Isto parece-me fundamental. O teísmo esta armadilhado na sua ilusão de verdade. Tudo o que se possa dizer fica na periferia dessa essência por que indizível. Este é um velho argumento dos teólogos sem argumentos.
Termino como comecei, não há nenhuma verdade ínsita a algum conceito, nenhuma substância, ou essência, ou representação arquetipal. Um conceito é um uso colectivo ( e útil) que permite saber do que falamos e do que pensamos, sempre no limiar de uma perda, na fronteira de emergirem novos conceitos. O conceito de "Deus" é um bom exemplo disto mesmo.
Julgo que estamos no mesmo campo de pensamento, por vias distintas.
Caro Carlos Frazão,
ResponderExcluirobrigado pelos esclarecimentos. Vejo que eu não havia entendido bem o seu primeiro comentário.
Abraço
Muito bom!
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