24.10.11

Carlos Drummond de Andrade: "Relógio do Rosário"




Relógio do Rosário


Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.




ANDRADE, Carlos Drummond de. "Claro enigma". In:_____Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

7 comentários:

  1. Cicero,

    A isso, chamo: ARTE, OBRA-PRIMA. Belíssimo! Grato por compartilhar!



    Abraço forte,
    Adriano Nunes

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  2. cicero,

    que coisa boa encontrar drummond aqui!

    parece uma dobradinha (das "quentes", diferentemente daquela provada por Pessoa - rs rs): lá no "PEmP" há uma entrevista, a última, concedida pelo mestre. linda linda linda.

    aqui, no seu espaço, este LINDÍSSIMO poema, que trata da dor primeira, da dor que antecede qualquer dor, da dor primordial: a dor de estar vivo, de ser só no mundo, a dor do indivíduo, ímpar, intransferível.

    maravilha! adorei!

    beijoca boa!

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  3. Olá Antônio parabéns pelo belíssimo poema postado do Drummond e saiba que você é pra mim referência como letrista e poeta Obrigado por tudo que você já fez pela arte.

    Abs

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  4. Como uma pequena e iniciante leitora eu ainda não consegui entender esse poema de Drummond, mesmo lendo Claro Enigma!

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  5. Caro Cicero,

    creio que Relógio do Rosário seja meu poema favorito de Drummond...

    Um meu:

    VASTO CORO

    Abrir a tampa da tumba
    e ler os restos mortais:
    a voz que retumba e exala
    na minha voz se intercala
    até não saber exata-
    mente quem fala. Jamais
    morrer enquanto respira
    a voz que por hora exuma
    a si própria como a pira
    bebendo na escura espuma.

    __________

    Grande abraço!

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  6. De uma sensibilidade,impar,capaz de a todos nos depurar e redimir.Com os valores pétreos acima e à frente de todos nós,"Cidadãos Brasileiros",nos envergonham os políticos e as politicagens por eles perpetradas,sangrando de morte a nossa Querida,Amada Pátria Mãe Brasileira.

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  7. a dor como motor do mundo, da máquina do mundo repelida?

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