23.10.10
Maria Rita Kehl: "Repulsa ao sexo"
O seguinte -- excelente -- artigo de Maria Rita Kehl foi publicado no jornal O Estado de São Paulo no dia 18 de setembro, isto é, duas semanas antes do episódio lamentável de sua demissão, em consequência da publicação de um artigo seu ("Dois pesos") que destoava da linha política declaradamente adotada pelo jornal, de apoio, nas atuais eleições, ao candidato José Serra.
Repulsa ao sexo
Entre os três candidatos à presidência mais bem colocados nas pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra. Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes custar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é tão conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com transgênicos ou células–tronco.
Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado pela corrida eleitoral. Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda que dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo.
Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto, raramente são levianas. São situações de abandono por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem sem nem saber que a moça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas para constituir uma família ou aumentar ainda mais a prole já numerosa. O debate envolve políticas de saúde pública para as classes pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro para abortar em clínicas particulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz nas páginas dos jornais.
O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua criminalização. Por pressões da CCNBB, o Ministro Paulo Vannucci precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O corajoso grupo das “Católicas pelo direito de decidir” reflete e discute a sério as questões éticas que o aborto envolve.
O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de vida. Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado uma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiro que examinemos as práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano mudou muitas vezes ao longo da história. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios do Novo Continente eram humanos, não bestas; o debate, que versava sobre o direito a escravizar-se índios e negros, estendeu-se até o século XVII.
A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, ao declarar que todos devem ter as mesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidade desigual, mas universal, dos homens. No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido como humano nunca incluíram o feto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituais simbólicos que identificam a vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortos espontâneos não são batizados. A Igreja não exige isto. Também não são enterrados. Sua curta existência não é imortalizada numa sepultura – modo como quase todas as culturas humanas atestam a passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que registram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.
A ambigüidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África, último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause...), tem 60% de sua população infectada pelo HIV. O que diz o Papa? Que não façam sexo. A favor da vida e contra o sexo – pena de morte para os pecadores contaminados.
Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das mães – este é o ponto! – é inadmissível. Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que agüentar as conseqüências. Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar.
Este artigo e o seu, Cícero, postado semana passada, fazem deste blog o lugar onde o que há de mais fundamental a ser lido sobre essa questão - secundária nesta hora, mas tornada urgente pelo oportunismo e a pusilanimidade de nossa política "oficial" e profissional - está exposto com lucidez e coragem.
ResponderExcluirÉ uma felicidade para quem, como eu, é professor poder remeter tantas pessoas a um lugar tão preciso de textos tão certeiros.
Parabéns e mais uma vez obrigado.
Maria Rita faz uma afirmação insofismável: ninguém pode negar que o feto seja uma forma de vida. Isso vai de encontro ao que Kaplan afirma, que o feto está vivo mas não é vida. O Brasil reconhece alguns direitos do nasciturno, como "alimentos gravídicos". Para haver coerência, os defensores da tese de que a mulher tem direito de decidir se mantém o bebê ou aborta deveriam abrir mão do "Nasciturus pro iam nato habetur quando de eius commodo agitur " que requentemente obriga o pai a sustentar as necessidades da mãe e do bebê desde a concepção.
ResponderExcluirMuito obrigado, Roberto.
ResponderExcluirA demissão de Maria Rita é o fato mais representativo da parcialidade que tomou conta dos "grandes" jornais.
ResponderExcluirA primeira página d'O Globo, por exemplo, tem sido o mais escancarado e abjeto veículo de propaganda a favor do candidato tucano.
Imprensa livre não pode ser sinônimo de imprensa tendenciosa.
abraço!
OLÁ, A. C.!
ResponderExcluirPENA QUE A VIDA MASCARADA DE TANTOS POLÍTICOS E RELIGIOSOS ESCONDE UMA FÚRIA CONTRA O FEMININO... MESMO SABENDO DAS ATROCIDADES, AFINAM SEUS DISCURSOS PARA ANGARIAR VOTOS DE UMA CLASSE QUE NÃO SE PERMITE O LIVRE PENSAR... SEM DOGMAS!
ALTAS LETRAS DE KEHL...
OPINAR DE FORMA GRANDIOSA CAUSA ESSE RUÍDO EM EMPRESAS VINCULADAS COM O PODER!
ABRAÇOS. ROBERTO MEDINA.
Estamos diante do paradigma da insensatez, onde os sujeitos dessa história, qual urubus, estão atrás de carniça pra coçar seus bicos.
ResponderExcluirExcetuando-se um (des)encontro de Maluf vs. Fleury na década de 1990, nunca tive tremenda apatia em escolher o "próximo inimigo".
Excelente!
ResponderExcluirSempre muito bom passar por aqui e ter acesso aos ótimos textos postados.
Obrigada!
Inteligência não tem partido
ResponderExcluirCorre a lenda, e deve ser só lenda mesmo: certa vez, numa sequência de debates, o líder sindical Vicentinho questionou o filósofo J. A. Gianotti: mas vc defendia o contrário tempos atrás. Ao que o outro respondeu: pois é, prerrogativa da minha profissão.
Amado Cicero,
ResponderExcluirUm poema meu, novo, entre os ótimos debates:
"babel"
entre o ar
e o açúcar
o voo curto
o descuido
a vítrea vida.
uma
duas
drosófilas...
talvez,
três.
em transe
transitam
formidáveis
formigas,
ganham o dia.
sob o céu
o abismo
babel de bicho
o próprio
instinto
o propósito
in situ
o meio
propício
o lixo
o pouso tímido
o ovo
a larva
o ciclo.
Abraço forte!
Adriano Nunes.
...seria desejável que toda a decisão fosse tomada com base na verdade, e não em invenções falaciosas com a finalidade de eliminar os sentimentos de culpa de todos os envolvidos. Não dá certo, e disto tenho uma longa prática de atendimento psicológico: a culpa está sempre presente, por mais eficiente que seja a racionalização consciente do ato.
ResponderExcluirhttp://www.heitordepaola.com/publicacoes_materia.asp?id_artigo=651
grande artigo!
ResponderExcluiro cristianismo moralista tende mesmo a reduzir o mundo à culpa, a um jogo mesquinho de recompensas e punições.
lembrei de um dos provérbios do inferno, de blake: "assim como a lagarta escolhe as melhores folhas para depositar seus ovos, o sacerdote lança suas maldições sobre as mais sublimes alegrias".
só uma imprecisão: m.r. kehl se equivocou na estimativa. “a áfrica tem 60% de sua população infectada pelo HIV”. a estatística é outra: 67% de todos os infectados no mundo estão na áfrica. a OMS estima que existam 33,4 milhões de infectados em todo o mundo. o continente africano abriga quase 1 bilhão de pessoas. a informação, portanto, está bem fora.
Além disso, embora eu tbm considere imoral o moralismo barato da igreja com relação ao uso de camisinha (a mesma igreja cujo papa, quando responsável pela “congregação para a doutrina da fé”, fez de tudo para encobrir casos de pedofilia e inimputar os sacerdotes envolvidos), as razões principais para a pandemia de AIDS na áfrica, dizem os especialistas, são outras: analfabetismo, desinformação, corrupção (desvios de dinheiro para compra de preservativos e remédios), péssimas políticas públicas, poligamia e superstições locais (em vários lugares da áfrica as pessoas encaram os doentes como se eles estivessem enfeitiçados e usam “métodos místicos” totalmente ineficientes para se proteger)...
rodrigo madeira
O aborto só é correto quando põe em risco a vida da mãe. Neste caso, a vida da mãe tem que ser preservada, em detrimento da vida do feto.
ResponderExcluirO resto, que for mencionado, é sem dúvida nenhuma egoísmo. Sei que é duro para mãe, mas seja qual for o motivo que gerou esta gravidez tem que ser encarada com responsabilidade, pois Deus tem seus motivos para com este acontecimento. Em resumo, cada um tem sua cruz para ser levada.
Parabéns pela clareza do texto e pelo respeito no tratamento de um assunto tão delicado.
ResponderExcluirEu tive outra idéia
ResponderExcluirE por isso sou condenada
Nada disso, sua errada
Mulher é para ser mãe
E mais nada
Pois, de repente,
Alguém quer ser diferente
Nada contra as mães
Irracional se dissesse isso
Mas posso ser gente
Mesmo sendo diferente
E amar todo mundo
Qual o fundo
Dessa farsa.
Cicero,
ResponderExcluirPor causa do tema:
"aborto"
dos dois
gametas
ao ovo
é tudo
tão novo
o lar
um útero
placenta
cordão
o líquido
envolto
do corpo
o escuro
hermético
do músculo
o mundo
a vida
ainda
sem vida
sem vez
sem voz
sem céu
sem chão
sem eco
sem ego
in situ
a vida
inerte
atrás
de vida
libélula
sem asa
sem voo
sem data
marcada
a vida
só célula
sem pôr
o pé
na estrada
à espera
à espreita
da próxima
parada
a vida
semana à
semana
em busca
de luz
de sol
a vida
trancada
no ventre
da vida
presente
da mãe
que sabe?
do pai
que pensa?
não pensa
não sabe
não pode
saber
não pode
pensar
hiberna
tal urso
em uma
caverna
sozinho
no aguardo
do parto
da vida
que é vida
do tempo
por falha
por fim
do trato
contrato
de vida
o feto
despede-se
do nicho
do ninho
qual lixo
expulso
do corpo
qual sêmem
qual lágrima
fugaz
um susto?
vontade
divina?
menino?
menina?
sem nome
sem nada
batismo
nem culpa
nem mágoa
a vida
não vem
ó via
correio
emeio
a vida
não tem
rodeio
a vida
não veio
depois
o lar
refaz-se:
mucosa
perfeita
de novo
os dois
gametas
darão
um ovo
o pai
já outro
a mãe
por pouco
não morre
o pai
é torto
o pai
é louco
sem pai
a mãe
sem diu
a mãe
sem pílula
a vida
o pai
sumiu
a vida
a mãe
o medo
a mãe
a dor
a mãe
tem hora
que importa?
a vida
completa
não vem
põe ferro
põe droga
por dentro
por menos
agrava-se
o quadro
mundano
bactéria
tomando
trincheira
a vida
inteira
não vem
à tona
a vida
é dona
de si
a sepse
os êmbolos
por sorte
ou pena
a vida
esvai-se
pequena
sangrando
sangrando
sangrando...
Abração,
A. Nunes.
A questão do aborto retoma o debate: humano quando? Vem de húmus. E vai pro íntimo. E é tão profundo que retomemos lá atrás na curva do tempo.
ResponderExcluirVixe! tem que andar é muito e destorcer as linhas da história.
Aprendi mais um pouquinho por aqui!
:)
alguns dizem que esse debate sobre o aborto não deveria atravessar uma eleição.
ResponderExcluireu já acho que os partidos e candidatos é que deveriam conseguir fazer um debate à altura sobre qualquer tema de interesse público - inclusive o aborto.
de tudo o que venho lendo, cicero, calligaris e kehl abriram minha cabeça e me fizeram pensar.
minha tristeza fica no fato que o debate político, salvo algumas excessões, vêm me fazendo despensar.
não abraço lagoa.
abraço pessoas.