30.12.09

Carlos Drummond de Andrade: "Passagem do ano"




Agradeço ao querido Aetano por me ter enviado o seguinte poema, de que já não me lembrava, de Drummond:



Passagem do ano


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor [da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, [doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o [clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do [acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos [séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras [espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.



ANDRADE, Carlos Drummond de. "A rosa do povo". In: Poesia completa.. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

10 comentários:

  1. Caríssimo Antonio Cicero,
    Grato pela sensibilidade, inteligência e generosidade oferecidas neste espaço maravilhoso que é o "Acontecimentos".
    Vida plena em 2010 para você.
    Abraço fraterno,
    Mariano.

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  2. Obrigado, Mariano.

    Feliz 2010!

    Abraço fraterno

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  3. Eu é que lhe sou sempre grato, querido Cicero!

    Um forte abraço!

    Aetano

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  4. Cicero,

    Que poema excelente! Uma obra-prima!

    Feliz Ano Novo! Que o Acontecimentos continue a brilhar!

    " Para que Utopia, se temos Cicero!" (p.s.: peguei carona numa letra de música sua que você fez para Ritchie!)

    Grande beijo,
    Adriano Nunes.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Passagem de ano, ato I: a volta às origens na medida do possível, no limite do sangue familiar – no pai e no avô que se foram.

    Passagem de ano, ato II: a vida que desponta e urge – o copo na mão ao amanhecer, novas coxas, novos ventres.

    Drummond parece nunca esquecer dos mortos porque neles se vê, porque para eles sabe estar a caminhar – ainda que bem alerta esteja em meio à vida, a gorda e oleosa vida, de que não abre mão, mestre da ironia que é. Bela dialética para a noite de hoje...
    Obrigado.
    Um abraço,
    Vinicius

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  7. Receita

    por CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

    Para você ganhar belíssimo Ano Novo
    cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
    Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
    (mal vivido ou talvez sem sentido)
    para você ganhar um ano
    não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
    mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo

    até no coração das coisas menos percebidas
    (a começar pelo seu interior)
    novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
    mas com ele se come, se passeia,
    se ama, se compreende, se trabalha,
    você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
    não precisa expedir nem receber mensagens
    (planta recebe mensagens? passa telegramas?).
    Não precisa fazer lista de boas intenções
    para arquivá-las na gaveta.
    Não precisa chorar de arrependido
    pelas besteiras consumadas
    nem parvamente acreditar
    que por decreto da esperança
    a partir de janeiro as coisas mudem
    e seja tudo claridade, recompensa,
    justiça entre os homens e as nações,
    liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
    direitos respeitados, começando
    pelo direito augusto de viver.

    Para ganhar um ano-novo
    que mereça este nome,
    você, meu caro, tem de merecê-lo,
    tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
    mas tente, experimente, consciente.
    É dentro de você que o Ano Novo
    cochila e espera desde sempre.

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  8. paulinho (paulo sabino)7 de janeiro de 2010 às 16:38

    cicero cicero cicero,

    pensei (juro!!!!) em publicar essa poesia no "prosa em poema" como mensagem ao fim do ano!!! que coincidência boa encontrar as linhas aqui!!!

    drummond é o que há!!! foda!!!

    ADOREI!!!!

    beijú!

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  9. Olá, Cícero: ainda e sempre atual CDA.
    Releio aqui por sugestão de um texto (ensaio) de Waldecy Tenório ("Escritores, gatos e Teologia").

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