O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 7 de fevereiro.
Os estudos literários e o cânone
COMO MUITOS outros críticos literários contemporâneos, Terry Eagleton pensa que "o chamado 'cânone literário', a 'grande tradição' inquestionada da 'literatura canônica', precisa ser reconhecido como um constructo, modelado por pessoas particulares, por razões particulares, em determinado momento".
Apesar de presunçosa, é na verdade ingênua a afirmação de Eagleton. A ironia da referência entre aspas à "grande tradição" é impotente: queira-se ou não, o cânone literário é uma grande tradição. Deve-se dizer, porém, que ela está longe de ser inquestionada ou inquestionável. Ao contrário, essa tradição se construiu e se mantém hoje, entre outras coisas, através do questionamento e por causa dele.
Trata-se de um constructo, sem dúvida, desde que se retire dessa palavra qualquer conotação de arbitrariedade, uma vez que não pode ser considerado arbitrário aquilo que, tendo se submetido à crítica incessante e implacável, sobrevive. O cânone nada tem a ver com as coisas que são "modeladas por pessoas particulares, por razões particulares, em determinado momento". Essas, produzidas por sociedades fechadas, são impostas à força. Só por cegueira ideológica pode alguém pretender que seja assim a sociedade moderna.
Eagleton se considera marxista. A certa altura, ele comenta que "Karl Marx se preocupara com a questão de saber por que a arte grega conservava um "encanto eterno", embora as condições sociais que a haviam produzido já tivessem passado há muito tempo".
Normalmente, o texto em que Marx assim fala é tomado como uma prova da grandeza do autor de "O Capital", que teria preferido reconhecer uma dificuldade da sua teoria a tentar encaixar toda a arte do mundo no leito de Procusto da ideologia ou da "superestrutura". Desse modo, Marx teria preservado o seu -o nosso- direito de amar a beleza da arte do passado.
Não é o que pensa Eagleton. Mais marxista que Marx, ele vê nisso uma fraqueza, e pergunta: "Como podemos saber que [a arte grega] permanecerá "eternamente" encantadora, se a história ainda não terminou?" Segundo ele, se, por exemplo, uma descoberta arqueológica nos obrigasse a reconhecer que as preocupações das audiências originais da tragédia grega eram inteiramente alheias às nossas, poderíamos deixar de apreciá-las.
Ora, quem verdadeiramente ama um poema – como Marx, por exemplo, ama os poemas de Homero – ama-o porque considera que ele lhe pertence e lhe diz respeito de um modo extremamente íntimo: porque intimamente conhece e, em reciprocidade, sabe ser conhecido pelo poema que ama. Conhecer desse modo um poema e amá-lo é tê-lo pela expressão acabada de alguma dimensão fundamental do próprio ser.
Pergunto-me: como é possível que Eagleton suponha que, seja qual for a novidade de uma revelação arqueológica, ela possa ser maior e mais importante que a revelação oferecida pelos próprios textos das tragédias? Pensemos em "Édipo Rei", por exemplo. Como ele é capaz de imaginar que "Édipo Rei", ou "Prometeu Acorrentado", ou "As Bacantes", ou qualquer uma das grandes tragédias possa ser ofuscada ou anulada por uma descoberta arqueológica?
A resposta é clara: ele pensa assim porque não tem uma relação vital com a poesia; porque, para ele, a poesia não vale por si. É evidente que tal modo de se relacionar com a poesia não pode resultar de uma decisão intelectual. Ao contrário: a decisão intelectual sobre o valor (ou a ausência de valor) da poesia é que é resultado da relação real que o leitor estabelece com ela. Não é porque decide que a poesia não tem valor que ele deixa de ter uma relação vital com ela: é antes porque não tem uma relação vital com a poesia que ela não tem valor para ele.
Na verdade, estou sem dúvida exagerando no que diz respeito a Eagleton. Com certeza a poesia tem algum valor para ele. Está longe, evidentemente, de ser um valor imanente e vital, como para Marx. Creio que para Eagleton, como para muitos, um poema ou uma tragédia têm o valor de um documento histórico como qualquer outro. Ora, basicamente o que interessa saber sobre um documento histórico são duas coisas: se ele é autêntico e o que representou para as pessoas que o produziram ou dele se serviram. Ele se reduz a um índice ou sintoma de uma relação social. Daí a importância atribuída à arqueologia.
Infelizmente, é essa a relação com a literatura que parece determinar a atitude ante o cânone que hoje predomina no campo dos estudos literários acadêmicos "posmodernos" e/ou marxistas.
antonio isso é muito importante (a sua obra, como a de outros pesadores)
ResponderExcluirSem qualquer vitalidade, os estudos literários acadêmicos servem no momento somente para tornar seus estudantes outros seres "sem vitalidade". É um cemitério: alunos mortos, pesquisadores mortos, poesia morta. Naquele espaço ninguém se propõe a LER. Corroboram uma atitude fatal: estudam tudo ao estudar um poema menos o poema mesmo. A literatura nesses casos existe como PRETEXTO enquanto a literatura é o TEXTO. Abraços.
ResponderExcluirEstá perfeito, é isso mesmo. A observação quanto à ironia em "grande tradição" é preciosa. Amamentados por leituras superficiais de textos no entanto fundamentais do Modernismo, produzidos entre nós e em outras literaturas, o característico (não a totalidade, ainda bem)no entanto dos estudos literários é não saber se colocar a não ser de forma presunçosamente irônica diante da tradição. E aí ficam (ficamos?), como dizia o Oswald, perdidos como chineses na genealogia das idéas...
ResponderExcluirboa reflexão. o cânone não é apenas necessário, é essencial. e, enfim, em que teto de cristal os jovens vão jogar suas pedrinhas?!
ResponderExcluir- henrique pimenta
Estou no meio do atoleiro
ResponderExcluirEu não sei se há um meio
No atoleiro
Tem um mundo
Que é fundo
Um mundo vagabundo
Meio moribundo
Ali, a flor é o que ressalta
No meio do atoleiro
Tenho que ficar em pé, inteiro
O dia, belo como a primavera
Saltou no ar
Debaixo da chuva forte
No meio do atoleiro
As palavras que lembram nada
Também nadam
São guardiãs
Da voz, que se for calada
Não é voz
É espingarda.
Durante uma época, eu me presumia um ser pequeno no meio literário, pois não lia como os acadêmicos e eruditos deviam, segundo minha imaginação, ler, abarcando a obra, a fortuna crítica etc. Tudo me era fragmentado e apaixonante. Aí percebi (auxiliado por uma amiga, por ironia professora de literatura, estudiosa de Kafka e Lima Barreto) que eu não era um erudito, e sim um poeta. Que lia de outro modo. Menos minucioso, talvez, mas mais quente, mais próximo e apaixonado. Assim são os que amam a poesia. Assim devia ser o velho Marx, um pensador de largo espectro, um dos visionários da virada do século XIX para o XX, como Freud, maculado pelos anões do marxismo capenga.
ResponderExcluirVocê conhece o ensaio que Borges escreveu sobre os clássicos? Ele sugere que uma obra pode, por motivos mais ou menos acidentais, ser declarada canônica, e a partir daí nossa atitude em relação a ela fica determinada a priori. Tudo nela é tão inescrutavelmente profundo e rigorosamente deliberado quanto o texto da Torá para os cabalistas. Eu acho que a canonização de textos litrários pode gerar uma reverência prejudicial a uma abordagem mais compreensiva dos mesmos.
ResponderExcluirAmado Cicero,
ResponderExcluirBELO e CERTEIRO! PARABÉNS!
Abraço forte!
Adriano Nunes.
Antonio,
ResponderExcluirVocê trata com precisão o assunto, apesar do espaço curto. A pós-modernidade (e o marxismo) justamente tenta mostrar que todo o pensamento deve ser necessariamente e uma imposição, um reflexo de uma relação de poder. Quando se leva essas idéias às últimas consequencias (sendo mais marxista que o próprio marx), já não pode haver beleza verdadeira, nem liberdade verdadeira, nem qualquer esperança verdadeira de paz.
Bozzetti,
Fico feliz de ver seu comentário aqui. Saudades das suas aulas. Qualquer dia acabo retomando o curso de Letras.
abraços,
Lucas
pensador,
ResponderExcluirexcelente raciocinio!
como sempre:
certeiro no tema,
honesto nas conclusões!
grande abraço!
Antonio,
ResponderExcluirTotalmente belo e lúcido! Grata por sempre nos brindar com essas pérolas!
***INTERIORES***
Mata-me mesmo essa paisagem.
A mata devastada,
As casas velhas, enfileiradas, roídas,
O asfalto em brasa,
O cais por trás da visão.
Tudo passa e, opaca, deixa a retina.
Buracos na alma...
Quem fui? Que importa
Quem sou? Nada mais
Interessa àquela estada,
De passagem. Nem fotos,
Nem versos: tudo
Começa a ter sentido dentro
Desse cosmo urbano,
Cinza, poluído por
Mera quimera química
Da saudade.
Eu era menina...
Vi o mundo dos meus vestidos
Rendados, dos meu troços,
Bilhetes, papéis de chiclete,
Pétalas de rosas, diárias
Anotações, suspiros...
Eu era ser a paisagem
E ver escorrer o sangue,
Feito poema,
Por entre as minhas coxas.
Eu era menina...
Depois, morreria
Em mim o medo
De ser gente grande.
Eles sempre me diziam
Assim.
Beijos,
Cecile.
olá Antônio Cícero,
ResponderExcluiré a primeira vez q passo pelo seu blog.
gostei bastante, espero voltar mais.
aproveito e deixo o endereço do nosso, o BARKAÇA.
é isso,
poesia contra a pasmaceira culturar!!!
lol
barkaca.blogspot.com
abraço,
diOli
Bravo! Bravo! Bravo! "Meu mundo vc é quem faz".
ResponderExcluirisso aí, isso aí. :)
ResponderExcluirAntonio Cícero,
ResponderExcluirtexto claro e instigante. De fato, uma relação imanente e vital com o texto poético t´a cada mais difícil, nestes tempos de estudos culturais. No entanto, acho que Eagleton tem posições bem mais anuançadas. Sua reflexão é boa e valida, repito, mas vc bateu numa caricatura. Se tiver interesse, convido-lhe a conferir meu ponto de vista no texto "A virada cultural e a crise dos estudos literários" (Kairos - http://wandersonlimatorres.blogspot.com/). Abs e parabéns pelo excelente espaço de reflexão.
Este comentário foi removido pelo autor.
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