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Genealogia do fanatismo
Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé -- dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de urna verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.
No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre... Sob as resoluções ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometéica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e, que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça — vícios mais nobres do que todas as suas virtudes —, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas conseqüências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo — tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror —, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque — verdadeiros benfeitores da humanidade — destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Em um espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-lo a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros seria um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Olhe à sua volta: por toda parte larvas que pregam; cada instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os templos; a administração, com seus regulamentos — metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com sua lanterna era um indiferente.
Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer "nós" com um tom de segurança, invocar os "outros" e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado, quase um carrasco, tão odioso quanto os tiranos e os carrascos de alta classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, ainda mais temível quando os "puros" são seus agentes. Suspeita-se dos espertos, dos velhacos, dos farsantes; no entanto, não poderíamos atribuir-lhes nenhuma das grandes convulsões da história; não acreditando em nada, não vasculham nossos corações, nem nossos pensamentos mais íntimos; abandonam-nos à nossa indolência, ao nosso desespero ou à nossa inutilidade; a humanidade deve a eles os poucos momentos de prosperidade que conheceu: são eles que salvam os povos que os fanáticos torturam e que os "idealistas" arruínam. Sem doutrinas só possuem caprichos
e interesses, vícios complacentes, mil vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos princípios; porque todos os males da vida provêm de uma "concepção da vida". Um homem político completo deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar aulas de canto; e de corrupção...
O fanático é incorruptível: se mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não foi cortada. Longe de diminuir o apetite de poder, o sofrimento o exaspera; por isso o espírito sente-se mais à vontade na companhia de um fanfarrão do que na de um mártir: e nada o repugna tanto como este espetáculo onde se morre per urna idéia... Farto do sublime e de carnificinas, sonha com um tédio provinciano em escala universal, com uma História cuja estagnação seria tal que a dúvida representaria um acontecimento e a esperança uma calamidade...
De: CIORAN. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
Anel
ResponderExcluirAnel
Meu doce, meu mel,
Minha calma
Quero casar-me contigo
Debaixo daquela igreja
Cuja abóbada, à noite,
Iluminada
Parece-se com seu sorriso
Livre, sem vestígio de mágoa,
Nada daquilo que estraga
O retrato do seu rosto
Impresso na minha alma.
Salve Cicero, excelente texto, tal qual o blog. Curto muito teus versos, desde que me entendo por gente. Quando tiver um tempo visite meu blog e conheça meu trabalho. Um grande abraço!
ResponderExcluirAMADO MESTRE,
ResponderExcluirDEEEEEEEMMMMMAAAAAIIIISSS! Você é... Seria, aqui, pecado dizer!
Adriano Nunes.
Numa arquitetura de ruínas,
ResponderExcluirpor água abaixo vai a própria vida,
tendo acima o céu das ilusões,
tempestuoso após o fim das fantasias,
ávido por ver o sol da claridade,
a contemplar da vida o lado cru, sem maquiagem.
Arquiteto de escombros recolhidos,
construí o meu castelo em solo vão,
argamassa fictícia, alicerce em pleno ar.
Aguardo, agora, a tempestade da tristeza,
para pôr fim à construção perversa que me rói a alma,
auxiliada pelo fel de muitas mágoas,
revalidadas nos fantasmas que carrego em mim.
Poeta amado,
ResponderExcluirQue texto inspirador!Deu nos versos da gente...Ah, Cioran, Cioran...Beijos.
O ROSTO DO GIRAMUNDO
Ele tinha o rosto triste
E uma vista avermelhada
Amanheceu pela vida
Filho único e mesada
Aos vinte teve dois filhos
Foi hippie vendeu cocada
Estudou Filosofia
E Religião Comparada
Caiu de febre terçã
Entre Diógenes e Lutero
Por tudo que estudou
Deus não lhe era sincero
Fez criadouro de rã
Idolatrou Emil Cioran
Foi professor com esmero
Quando a mulher precisou
Desistiu de lecionar
Virou dono de casa
Cuidou de tudo no lar
Ela foi ganhar o mundo
Giramundo giramundo
E virou diplomata exemplar
Ele construía uns versos
Enquanto lambia as crias
Em todo o tempo disperso
Lançou livro de poesias
A mulher mandou recado
Arranjou um outro amado
E resolveu não voltar
Mandou buscar os meninos
Ele pirou...bateu pinos
Mas resolveu acatar
Por fim virou peregrino
Foi viver de caça e pesca
Com um tio de Lumiar...
Nina Araújo e Vera Borato.
- E agora examinemos aqueles casos mais raros de que falei, os últimos idealistas que existem hoje entre os filósofos e doutos: teremos neles talvez os desejados ADVERSÁRIOS do ideal ascético, os seus CONTRA-IDEALISTAS? De fato eles ACREDITAM sê-lo, esses “descrentes” (pois isso é o que são todos); seu último resto de fé parece estar precisamente nisto, em ser adversários deste ideal, tão sérios são nesse ponto, tão apaixonados tornam-se precisamente aí suas palavras e seus gestos – seria por isso VERDADEIRO aquilo em que crêem?... Nós, "homens do conhecimento", somos enfim desconfiados em relação a toda espécie de crentes, nossa desconfiança gradualmente nos ensinou a concluir o inverso do que outrora se concluía: isto é, toda vez que a força de uma fé aparecer com grande evidência, concluir por uma certa fraqueza da demonstrabilidade, pela IMPROBABILIDADE mesma daquilo que é acreditado. Tampouco nós negamos que a fé "torna bem-aventurado": JUSTAMENTE por isso negamos que a fé DEMONSTRE algo - uma fé forte, que torna bem-aventurado, levanta suspeita quanto ao que se crê, não estabelece "verdade", estabelece uma certa probabilidade - de ILUSÃO. Esses negadores e singulares de hoje, esses irredutíveis em UMA coisa, na exigência de asseio intelectual, esses duros, severos, abstinentes, heróicos espíritos que constituem a honra do nosso tempo, todos esses pálidos ateístas, anticristãos, imoralistas, niilistas, esses céticos, efécticos, HÉCTICOS do espírito (todos sem exceção, de um modo ou de outro), esses últimos idealistas do conhecimento, únicos nos quais habita e está hoje encarnada a consciência intelectual – eles se crêem tão afastados quanto possível do ideal ascético, esses “espíritos livres, MUITO livres”: e no entanto, eu aqui lhes revelo o que eles próprios não conseguem ver – pois estão demasiado próximos a si mesmos –: esse ideal é também o SEU ideal, eles mesmos o representam hoje, ninguém mais talvez, eles mesmos são o rebento mais espiritualizado desse ideal, sua mais avançada falange de guerreiros e batedores, sua mais insidiosa, delicada e inapreensível forma de sedução – se jamais fui um decifrador de enigmas, quero sê-lo com ESTA afirmação!... Esses estão longe de serem espíritos livres: ELES CRÊEM AINDA NA VERDADE...
ResponderExcluirNietzsche. “Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. Terceira dissertação, § 24, PP. 137-8.
Fantástico esse texto. Obrigado.
ResponderExcluirmas essa é a voz do diabo, vc sente aquela sedução que só o demo tem, acho que Cioran faz um jogo com as palavras, uma espécie de brincadeira entre verdades evidentes e falácia bem feita... bom ele é, mas a gente se pergunta, e dai?
ResponderExcluirMarcone,
ResponderExcluirPois eu basicamente concordo com o que o Cioran diz. Aliás, o Michel Tournier, num post antigo deste blog, diz o mesmo. Dê uma olhada.
Abraço
Cicero,
ResponderExcluirA meu ver o Cioran "de fato", aquele que se tornou uma das minha companhias literárias preferidas, é o Cioran dos 'Cahiers', de seus cedernos de notas...lá este Cioran "maldito" é diluído (afinal maldizer a vida é uma forma de melhor suportá-la, de não 'esperar' nada).
Certa vez apresentei, num encontro de iniciação científica da faculdade, um texto (muito ruim, mas bem intencionado!) sobre Cioran e Saint John-Perse...sobre o mistério da mútua admiração entre este "passimista irredutível", e o poeta da alegria,da 'afirmação trágica da vida'...terminei o texto com a seguinte passagem dos Cahiers do Cioran:
"Eu não sou um pessimista, eu amo este mundo horrível"
"Je ne suis pas un pessimiste, j’aime ce monde horrible" (Cahiers, p.238) !!!
Abraço!
Tiago L. Garcia
P.S.: Este texto (que é o que inaugura o 'breviario')..-pode- ser lido tendo em vista o arrependimento de Cioran em relação à sua juventude na 'guarda de ferro'. Ele se refere diversas vezes a seu feroz dogmatismo na juventude, assim como se refere (nos Cahiers) abertamente a seu arrependimento em relação a isto.
ResponderExcluirAetano,
ResponderExcluirPeço desculpas por uma confusão que fiz. Achando que já tinha postado o seu comentário acima, comentei-o aqui. O comentário ficou no ar. Só hoje percebi a confusão, alertado pelo Adriano. Mas acabo de corrigir tudo: apaguei o meu comentário original e postei o seu. E agora re-posto o meu, modificado apenas por incluir esta explicação.
Abraço
Como você sem dúvida sabe, Nietzsche mudou várias vezes de opinião sobre esse assunto. Quando escreveu Humano, demasiado humano, ele pensava mais ou menos como o Cioran, pelo menos quando afirmou que “As convicções são mais perigosos inimigos da verdade do que as mentiras”. Nessa época, ele mesmo ainda acreditava na verdade.
No texto que você cita, porém, como em muitos outros, a própria verdade é questionada, quando ele diz “eles crêem ainda na verdade”.
Mas pergunto: tem mesmo sentido não crer na verdade? Tem sentido dizer “é verdade que X, mas eu não creio em X”? Tem sentido dizer, por exemplo, “É verdade que Deus existe, mas eu não acredito que Deus exista”? Ou fazer como o mexicano da piada, que, quando lhe perguntaram se acreditava em fantasmas, respondeu: “No, pero que los hay, los hay”?
Ou ainda, tem mesmo sentido dizer: “Não há verdade” ou “nada é verdadeiro”?
Abraço
Caro Antonio Cicero,
ResponderExcluirVc está desculpado rsrsrs. À parte essa coisa séria, vamos à brincadeira das idéias:
1. Acho q o texto de Nietzsche q eu postei guarda alguma convergência com o texto do Cioran. A diferença, penso eu, é q Nietzsche aprofunda a crítica, alcançando com ela não só os dogmáticos, mas tb os céticos (apologizados por Cioran).
2. Vc tem razão, não faz sentido dizer "é verdade isso, é verdade aquilo, mas não acredito na verdade". Todavia, eu não entendo assim a formulação nietzschiana. Até onde consigo ver, o q ele denuncia é o dogmatismo, que não permite OUTRA INTERPRETAÇÃO do mundo. Aliás, a sentença que segue, de Cioran, até poderia ser dita por Nietzsche:
"O que é a Queda senão a busca de UMA verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por UM DOGMA, o estabelecimento de UM DOGMA?" (Grifei).
Ora, o perspectivismo de Nietzsche não é QUASE isso?
"Começa a despontar em cinco, seis cérebros, talvez, a idéia de que também a física é APENAS UMA interpretação e disposição do mundo (nisso nos acompanhando, permitam lembrar!) e não UMA explicação do mundo" (BM, § 14. Tradução de Paulo César de Souza. Grifei).
Tratando sobre o perspectivismo, Oswaldo Giacoia Junior defende que ele “não é a negação da verdade, mas a condição do próprio conhecimento ‘verdadeiro’, que culmina no resultado paradoxal de acordo com o qual não temos acesso a fatos, unicamente a interpretações.” (“Nietzsche e para além de bem e mal”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 10).
Isto posto, vale perguntar: Nietzsche questionava a possibilidade de haver verdades ou apenas impugnava a pretensão de UNIVERSALIDADE dessas verdades? Ninguém melhor do que o próprio filósofo para responder:
“Serão novos amigos da ‘verdade’ esses filósofos vindouros? Muito provavelmente: pois até agora todos os filósofos amaram suas verdades. Mas com certeza não serão dogmáticos. Ofenderia seu orgulho e também seu gosto, se a sua verdade fosse tida como verdade para todos: o que sempre foi, até hoje, desejo e sentido oculto de todas as aspirações dogmáticas. ‘Meu juízo é MEU juízo: dificilmente um outro tem direito a ele” – poderia dizer um tal filósofo do futuro.” (BM, § 43. Tradução de Paulo César de Souza. Grifo original).
3. O texto de Nietzsche, que foi transcrito parcialmente por mim, lido em toda a sua completude demonstra que ele não estava questionando a verdade, mas sim o valor da verdade (questionamento muito presente na última fase do pensamento nietzschiano, vc sabe).
4. Bom, Cicero, não vou cansar vc com coisas que não representam nenhuma novidade. O que expus acima é a visão de mundo com a qual me afino, só isso. Porém, antes de finalizar, quero dizer que entendi a sua frase “Nietzsche mudou várias vezes de opinião sobre esse assunto” como uma expressão do seu generoso didatismo e não como um argumento levantado contra a natural falta de coerência em Nietzsche – que existiu até mesmo quando o tema era a coerência –, afinal de contas, sabemos que o pensamento nietzschiano era um constante experimento – aliás, razão pela qual, segundo alguns, ele recorria tanto ao aforismo.
Ademais, e agora considerando a questão da coerência de modo poético, acho que pra vc não constitui uma objeção mudar de opinião quando é lua cheia, certo?
Imensamente grato pela espaço e pela prazerosa oportunidade dessa conversa.
Flw.
@eta.
Aetano,
ResponderExcluirObrigado por pensar e estimular o pensamento. Continuemos a pensar sobre Nietzsche, a verdade e o perspectivismo.
Item 4: Começo pelo seu último item, o 4. Não foi para desqualificar Nietzsche que eu lembrei que ele mudou várias vezes de opinião sobre esse assunto, mas para relativizar essa opinião em particular. Você mesmo diz que o pensamento de Nietzsche era “um constante experimento”. Por que então não poderíamos continuar o experimento, talvez até negando o que Nietzsche disse por último, já que ele próprio negava o que havia dito antes? Lembre-se da recomendação de Zaratustra a seus discípulos:
“Em verdade, vos aconselho: Afastai-vos de mim e defendei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: Envergonhai-vos dele! Talvez vos haja enganado. [...] Recompensa-se mal o professor, quando se permanece apenas aluno. E por que não quereis arrancar minha coroa? Vós me venerais; mas e se vossa veneração um dia desmoronar? Cuidai-vos, para que não vos esmague uma estátua! [...] Agora vos ordeno me perderdes e vos encontrardes; e somente quando me houverdes todos renegado, retornarei a vós”.
Item 1: O próprio Cioran era um cético. Como você fala da crítica de Nietzsche aos céticos, amanhã postarei um dos textos mais inteligentes que já foram escritos sobre Nietzsche: por Cioran.
Itens 2 e 3: Acho que o que Nietzsche diz é muito mais forte do que uma crítica ao dogmatismo. Você cita o § 43 de “Além do bem e do mal”, em que ele afirma que os filósofos do futuro “com certeza não serão dogmáticos”. Como você sabe, esse “anti-dogmatismo” nada tem a ver com tolerância em relação às verdades alheias. Entre as coisas que Nietzsche mais despreza estão a tolerância, a democracia, o liberalismo. Na citação que você mesmo faz já transparece o sentido desse “anti-dogmatismo”: os filósofos do futuro não querem impor as suas verdades porque “ofenderia seu orgulho e também seu gosto se a sua verdade fosse tida como verdade para todos: o que sempre foi, até hoje, desejo e sentido oculto de todas as aspirações dogmáticas. ‘Meu juízo é MEU juízo: dificilmente um outro tem direito a ele’ – poderia dizer um tal filósofo do futuro”. Em outras palavras, as verdades dos filósofos do futuro não podem virar dogmas porque são seus privilégios. Os espíritos livres são avarentos de sua riqueza, logo, de suas verdades, que não querem ver vulgarizadas (V., na mesa obra, o §44).
O problema do perspectivismo é que, se ele for afirmado como uma verdade objetiva, ele se nega; se, por outro lado, ele não for afirmado como uma verdade objetiva, ele se enfraquece, pois se reduz a apenas uma opinião, do mesmo valor que a opinião oposta a ele. Mas Nietzsche não poderia aceitar a idéia de que todas as opiniões se equivalem: por exemplo, a idéia de que a opinião de um escravo ressentido valesse a mesma coisa que a opinião de um filósofo do futuro. A saída seria, para os filósofos do futuro, dizer que o perspectivismo é uma perspectiva MELHOR que as outras: mas, se essa última proposição mesma não for afirmada como uma verdade objetiva, também ela se enfraquecerá, pois se tornará apenas uma opinião, como a oposta a ela: a menos que seja afirmada de modo totalmente dogmático. O “filósofo do futuro” talvez dissesse: “o perspectivismo é melhor porque é melhor; ou é melhor porque eu, que o afirmo, sou melhor”. Mas o anti-perspectivista também pode dizer isso da sua opinião... E, o que é pior, o anti-perspectivista pode, ao contrário do perspectivista, dizer, sem autocontradição, que aquilo que afirma é uma verdade objetiva. Com isso, a sua posição fica sendo mais forte, mais poderosa...
Abraço
Cicero,
ResponderExcluirnunca consegui resolver, em mim, uma certa inquietação pelo fato de ter deixado essa nossa conversa assim, como deixei. Hj, lendo o blog de Caetano, encontrei algumas palavras dele que considerei muito apropriadas para explicar o meu comportamento aqui, nessa conversa. Diz ele, sobre um artigo de Augusto de Campos:
"[...] é artigo que discute com meu papo sobre João, Mário e Orlando em Verdade Tropical. TENHO MUITA VONTADE DE PREPARAR UMA TRÉPLICA, NÃO DIGO À ALTURA, QUE É IMPOSSÍVEL, MAS DIGNA. Terei de ter tempo [...]". (Grifei).
É isso. Gostaria de um dia poder balbuciar algumas palavras numa resposta - q me contentaria se chegasse a ser digna - a esses princípios lógicos - para mim - aprisionantes.
A propósito, algum pensamento já balançou o seu racionalismo?
Abraço grande.
Aeta
Aetano,
ResponderExcluirO que você chama de meu "racionalismo" é, na minha cabeça, o mínimo de racionalidade necessária para garantir o máximo de espaço para o irracional: para que a viagem irracional de fulano não tolha a viagem irracional de sicrano. Por isso, eu falhei, se acabei por tolher o seu direito ao irracional.
Abraço
Cicero,
ResponderExcluirDe modo nenhum vc tolheu o meu direito ao irracional. Ao contrário, sinto-me estimulado a buscar uma formulação filosófica (já existente, por óbvio) q me apresente uma saída para aquilo q Nietzsche chamava de a prisão da linguagem - e essa foi a razão pela qual eu perguntei se algum pensamento já havia feito vc questionar a validade dos princípios basilares da Lógica e do Racionalismo.
Mas agora, pensando sobre isso, suspeitei q talvez não iremos escapar nunca dessa prisão, digo, pela porta da filosofia.
Ao mesmo tempo, tb suspeito que um pensamento finamente elaborado do ponto de vista lógico não é garantia de nada, posto que a Razão, parece-me, pode engendrar várias respostas racionais para uma mesma questão, cada uma com seus próprios pressupostos e, portanto, lógica e intrísecamente válida.
Aí eu me pergunto: será q tudo não é, de fato, irracional, e só convecionalmente racional? (Tenho medo desse pensamento).
Levo comigo essas suspeitas e essas impressões, meras impressões. Ponho-nas aqui pq vc tem-me ajudado muito a varrer alguns "lixos" da minha cabeça.
Grato, Cicero, grato mesmo.
Aeta
Aeta,
ResponderExcluirAfinal recebi os exemplares portugueses de “O mundo desde o fim”. Ele fala desses assuntos, de modo que acho que lhe interessará.
Para mim, a linguagem é prisão e libertação.
Você se pergunta: “será que tudo não é, de fato, irracional, e só convencionalmente racional?”
Se fosse assim, de que adiantaria perguntar uma coisa dessas? Como, se fosse assim, esperar que alguma resposta fosse melhor do que outra qualquer ou do que nenhuma? No entanto, perguntamos e tentamos responder.
Para mim, a razão é:
1) O sopro que derruba todos os castelos de cartas que merecem ser derrubados;
2) O chão sobre o qual caem as cartas assim derrubadas.
Abraço,
Antonio Cicero