5.10.08

Que é a poesia?

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo sábado, 4 de outubro:




Que é a poesia?

Para dizer o que penso ser a poesia, recorro, em primeiro lugar, ao poema "O Rio", de Manuel Bandeira:

“O rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.”

Desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite".

O rio a defluir silenciosamente dentro da noite não teme as trevas da noite porque ele é também o rio da noite, isto é, a noite enquanto rio. O infinitivo aqui é implicitamente desiderativo: ele manifesta um desejo. Mas quem é que aqui deseja? Talvez se possa dizer que aquele que deseja é o poeta, ou talvez o "eu" lírico, o heterônimo, o personagem em que o poeta se transforma para escrever o poema; mas o infinitivo excede qualquer subjetividade, qualquer "eu". A rigor, não interessa quem deseja, mas apenas o próprio desejo, que se identifica com o ser. Feito um fenômeno da natureza, feito o próprio rio silencioso dentro da noite e feito a própria noite, o desejo, o ser, os versos do poema e o próprio poema estão lá, no infinitivo, silenciosos como o rio e como a noite. Fundem-se no poema o leitor, o poeta, a noite, o rio, as estrelas: "Se há estrelas nos céus, refleti-las./ E se os céus se pejam de nuvens,/ Como o rio as nuvens são água,/ Refleti-las também sem mágoa / Nas profundidades tranqüilas".

Se há estrelas nos céus, o poema as tem na superfície. Se há nuvens que o impedem de refletir as estrelas, aquelas são refletidas na profundidade do seu ser, pois as nuvens são feitas da mesma água que ele. Aqui é de Tales, o primeiro filósofo grego, para quem tudo vem da água e tudo volta para a água, mais do que de Heráclito, que me lembro.

E me lembro sobretudo do poeta Jorge Luis Borges, cujo poema “Nuvens (I)” – do qual apresento a seguir uma tradução literal, seguida do original – diz:

“Nuvens (I)

Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que perdeste”.

"Nubes (I)

No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allanará. Lo es la Odisea,
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos. El reflejo
de tu cara ya es otro en el espejo
y en el día es un dudoso laberinto.
Somos los que se van. La numerosa
nube que se deshace en el poniente
es nuestra imagen. Incesantemente
la rosa se convierte en otra rosa.
Eres nube, eres mar, eres olvido.
Eres también aquello que has perdido."


As nuvens são as transformações da água originária, isto é, são todos os entes que o tempo aplanará. Também são nuvens os versos do poema de Homero. Há entretanto uma diferença: os entes em geral perderam a memória de sua origem aquática e se esqueceram de que são nuvens. A "Odisséia", porém – o poema por antonomásia –, muda como o mar. Algo há distinto cada vez que a abrimos. Eis a diferença entre o poema e os demais entes: o poema jamais olvida, no fluxo de sua superfície significante, morfológica, sintática, melódica, rítmica e de suas submersas correntes semânticas, a natureza líquida de todas as coisas e, principalmente, de si próprio.

Lembro que outro dos primeiros filósofos gregos, Anaximandro, dizia que todos os entes determinados provêm do indeterminado (que ele chamava "ápeiron") e têm como causa o indeterminado – que podemos entender como o movimento, a mudança, a vida, o tempo – do qual provêm. Em cada um deles, porém, o indeterminado se transformou em algum ente determinado. Também o poema é um ente determinado, mas um ente determinado que, refletindo o seu oposto, porta em si a marca d'água do movimento originário. Não apenas, cada vez que o lemos, ele se torna diferente do que era na leitura anterior, mas se torna diferente de si próprio no exato instante em que o estamos a ler. Chamo "poesia" essa propriedade do poema.

24 comentários:

  1. são meus inimigos:
    as dores nos pés
    a pressão alta
    o medo de morrer
    a obscuridade
    e a frieza frente à vida

    no mais, a viagem
    tem sido plena de alegria:
    amor infinito
    natureza exuberante
    o anoitecer nesta cidade
    e essa voz inigualável
    chamada arte

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  2. A reta é o menor caminho entre dois pontos.
    Mas, felizmente, para o poeta, existe a curva.

    A força da beleza o toca profundamente.
    De forma ímpar, ele pensa sobre a vida.

    Ele é a tempestade, que larga tudo e vocifera.

    Ele é o cinismo e o teatro, a plenitude e a derrota.

    O relato incendiário na floresta dos desejos.
    É quem se esgueira, quem faz alarde, quem finca a vida.

    Imaginário e denso, é o sonho de onde nasce o homem,
    sendo, ele mesmo, o homem que nasceu.

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  3. Maravilha!
    Pelo artigo, já vislumbro a rara pérola que será o livro "sobre poesia".

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  4. Cícero, gosto muito de ler o que vc escreve meu caro. Poucos, pouquíssimos escrevem de maneira tão clara e contagiante. Conheço, além de seus poemas, apenas um dos ensaios de Finalidades sem fim, e não vejo a hora de curtir o livro todo, mais o que estar por vir, conforme prometido. Não sabe o quanto lamento não morar no RJ para participar dos cursos que ministra no POP. Não silencie, meu amigo, para que os ecos de suas palavras nunca deixem de chegar até mim... Um grande abraço! Leonardo, de Goiânia.

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  5. Prezado Antonio, um fato que tem me incomodado deveras é proliferação de pessoas escrevendo "poesias" em blogs e se achando poetas. A maioria dessas pessoas não leu o suficiente para escrever, não apresenta talento nato e nem estudou a lingua portuguesa e/ou literatura para poder se aventurar a fazer poesia. Parece fácil, mas é bem mais dificil do que escrever prosa. Talvez essas pessoas possam aprender com sua lição. Grande abraço

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  6. Não há como não me emocionar diante da leitura deste "didático" ensaio, porque profundo e poético.
    Mande outros assim por aqui, sobre este enigma tão grande, a poesia, e sua decifração.
    abraço!
    Nuno Rau

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  7. Querido Cicero,

    sublime o artigo. Como escreveu acima o Léo, seu texto é claro e contagiante. Fiquei ainda mais ansioso para ler o novo livro, com artigos sobre poesia.

    Concordo com o que disse Caetano, seu pensamento - tanto os livros, como a coluna da Folha - é a mais interessante manifestação cultural brasileira recente.

    Um beijo grande. Fique bem.

    A.

    PS: Gabeira no segundo turno. O grito dos que não estão mortos...

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  8. Agradeço as palavras de Léo, Leonardo, Mariano e Luiz.
    Abraços

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  9. plac plac plac! (são os aplausos - rs.)

    sabe o que achei mais curioso? foi o surgimento, após a leitura do seu artigo, dum poema do waly (a adriana clacanhotto musicou parte dele), chamado "a fábrica do poema". as imagens da tentativa de se montar o poema ideal, a sua dissolução nos sonhos, o estado do poeta após as tentativas, quando este desperta dos sucessivos sonos, aquela atmosfera que o waly cria, lenta, transcedente, onírica, bem característica do sonho, do ambiente em que reside o que vem a ser "ideal". não sei por que isso acabou me surgindo... mas achei bom. (me deu até vontade de escutar a canção, sabia?)

    um beijo grandão!

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  10. Texto inspirador!Agora me sinto poeta...

    Além

    (para Antonio Cicero e Jorge Mautner)


    Logo além das tempestades
    Onde os anjos são poetas
    Uns versos caem alados
    De umas asas indiscretas
    Costumam atiçar os homens
    Com pergaminhos tão sacros
    Que nascem poemas em ninhos
    No meio de homens fracos
    Ah, ali onde as liras sussurram
    As dores não põem seus ovos
    As rimas saem e depuram
    O céu que reúne os povos
    Um banquete de luz abre frestas
    E desce abraçado com as rosas
    Em sonetos que vertem prosas.


    Nina Araújo

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  11. Caro poeta,brilhante sua análise de "O Rio".Parece-me haver,também,um imperativo nas formas infinitivas.A audição do poema,na voz do autor,reforça essa idéia(a propósito,Bandeira admitiu que só compreendeu certos poemas após ouvi-los recitados pelos autores).Se a aspereza de sua voz dá o tom neutro do infinitivo,a ênfase em "não temer as trevas da noite" faz-me lembrar o último auto-retrato de Van Gogh:a firmeza da expressão,mesmo com o pintor envolto em névoas sinuosas-a loucura em que estava imerso.
    Uma ordem ao próprio poeta e ao leitor,esforço obstinado em manter as profundidades tranqüilas.
    Não sei se acerto,mas a múltipla interpretação,considerando tão só a forma verbal,essa propriedade do poema,como você disse,chamo também "poesia".
    Grande abraço.

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  12. Caro Antonio
    Parabéns pelo alto nível cultural dos participantes do blog. Este se tornou minha leitura diária. Adoro poesia e filosofia e tenho aprendido muito nessas linhas...


    Ana
    São Paulo

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  13. Meninos, lembrei-me de Sócrates :

    "Só sei que nada sei."

    abraços
    Ana

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  14. Em relação ao comentário de Luiz, o que ele quis dizer com "talento nato"? Fiquei curiosa. As pessoas têm o direito de escrever o que quiserem em seus blogs. O q é isso??

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  15. Elisa,
    De que texto de Derrida você está falando?

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  16. "Che cos'e la poesia?", traduzido na Inimigo Rumor, se não me engano, número 17. Bj.

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  17. LIMITES AO LÉU
    POESIA: “Words set to music” (Dante
    via Pound), “uma viagem ao
    desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e
    medulas” (Ezra Pound), “a fala do
    infalível” (Goethe), “linguagem
    voltada para a sua própria
    materialidade” (Jákobson),
    “permanente hesitação entre som e
    sentido” (Paul Valéry), “fundação do
    “a religião original da humanidade”
    (Novalis), “as melhores palavras na
    melhor ordem” (Coleridge), “emoção
    relembrada na tranqüilidade”
    (Wordsworth), “ciência e paixão”
    (Alfred de Vigny), “se faz com
    palavras, não com idéias” (Mallarmé),
    “música que se faz com idéias”
    (Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um
    fingimento deveras” (Fernando
    Pessoa), “criticism of life” (Mathew
    Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
    “linguagem em estado de pureza
    selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
    inspire” (Bob Dylan), “design de
    linguagem” (Décio Pignatari), “lo
    imposible hecho posible” (García
    Lorca), “aquilo que se perde na
    tradução” (Robert Frost), “a liberdade
    na minha linguagem” (Paulo Leminski)...

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  18. Elisa,

    o nome é o mesmo, mas é a única coisa que o meu artigo tem em comum com o de Derrida, que considero um dos mais fracos dele.
    A impressão que me ficou quando o li foi que o pensamento de Derrida sobre a poesia é tão trivial ou tão insustentável que ele teve que turvar o texto em que o expõe, de modo que sua ininteligibilidade fosse tomada pelos ingênuos como profundidade e irrefutabilidade. A mim, ele parece apenas confuso.

    Beijo

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  19. Acho que quando o Derrida fala sobre poesia ele não diz o melhor que pode ser dito. Ele não escrevia poemas, não era um produtor de poemas, quero dizer. Podia até ser um filósofo-poeta, mas não era um poeta poeta, aquele que escreve o que se pode chamar de poesia. Não sei se estou sendo clara. Interessante o seu comentário. Sabe, nunca ouvi ninguém falar que esse texto dele não parece muito claro. Eu até consegui entender o lance do ouriço, mas alguns pontos em relação ao par coeur, por exemplo, parece uma escrita forçada, parece que ele está desesperado para dar sentido a uma coisa e não consegue. Bj.

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  20. Cícero,



    depois do seu comentário fiquei pensando...



    Derrida é muito mal explicado nas universidades, pelo menos na área de letras q é de onde eu venho.



    leio textos de Derrida desde a iniciação científica na graduação. Depois fiz o mestrado sobre Hélène Cixous. Sabe, na universidade onde fiz meus cursos nunca conseguiram explicar o conceito de desconstrução. O/a professor/a sempre ia pro lado de que a desconstrução não é um termo simples e q ela fala por si, como se não fosse necessário nenhum tipo de explicação. Ora, hj penso q quem disse isso só disse pq ele/a mesmo não conseguia explicar. Na letras, ninguém nunca diz q desconstrução viria da idéia inicial de "destruktion", de Heidegger, q não significa ruína, mas desmontar, abrir nossos ouvidos, torná-los livres, segundo as palavras do próprio Heidegger. Então, ninguém nunca diz isso. Passam para os alunos algo como: a desconstrução é uma entidade auto-sustentável. Se fosse assim, para q estudá-la? Alguns professores de lit. q trabalham com Derrida querem fazer dele um grande enigma, e esses professorem criam para si o status de paradoxo para se elevarem a um nível especial dentro da hierarquia acadêmica. Faz-se um pós-doutorado na Paris VIII, gasta-se tubos de dinheiro do CNPq p passar uma temporada em Paris e em seguida, no Brasil, dizem aos alunos q a desconstrução é uma instância muito especial q não deve ser interpretada. Ora, isso é uma brincadeira.



    Só consegui uma leitura mais clara depois de 10 anos lendo Derrida por conta própria e recorrendo a artigos de professores de filosofia. Ah, e claro, consultando o glossário do Silviano. Já entendi q o conhecimento não deve ser enciclopédico, já entendi q as interpretações não devem ser superficiais, mas está faltando clareza por parte de quem se propoe a ensinar, principalmente na área de literatura. Por isso, atualmente, prefiro os textos de Derrida voltados para a política.

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