O FIM E O RECOMEÇO DA ESPERANÇA
Desde que foi oficialmente anunciada a derrota de Gabeira, algumas horas atrás, tenho recebido muitos emails de amigos comentando o ocorrido. Em meio à consternação geral e às diversas tentativas de análise das causas da derrota e de suas conseqüências, um email tocou num aspecto essencial, que exige a seguinte reflexão. O texto em questão é do jornalista e escritor Fernando Molica; nele, Molica pergunta minha opinião sobre se a derrota de Gabeira significaria a irrefutabilidade política, concretamente falando, do "axioma pernicioso" que Gabeira teria tido a coragem e firmeza éticas de atacar, sendo esse o sentido fundamental de sua candidatura. Esse axioma, eu o descrevera em texto anterior (publicado aqui nesse site), nos seguintes termos: "A eleição de Gabeira fará ruir um axioma pernicioso que vem dominando a cena política no Brasil, e em que tanto o PSDB como o PT, nas últimas quatro eleições presidenciais, mergulharam de cabeça: o axioma segundo o qual não se vence uma eleição sem fazer o jogo sujo das alianças espúrias, do loteamento prévio de cargos, dos golpes baixos eleitorais e por aí em diante. Esse jogo sujo, ao começar logo na campanha, invariavelmente caminha para o exercício do poder, onde o mais despudorado fisiologismo (vide, como exemplo recente, o episódio Renan Calheiros) é sempre desculpado pela “governabilidade”, palavrinha mágica com a qual os governantes legitimam sua fraqueza ideológica e moral."
Pois bem, o que mais me entristeceu na derrota de ontem - e ao mesmo tempo é o que deixa acesa uma centelha de esperança - é que Gabeira, a meu ver, não perdeu porque fez uma campanha historicamente inovadora, orientada por princípios éticos inarredáveis. Perdeu por detalhes. Sobretudo erros que ele próprio cometeu durante o segundo turno. Podem-se elencar vários: a declaração infeliz sobre a vereadora Lucinha (a qual, segundo Gabeira, teria "uma visão suburbana" a respeito da instalação de um lixão na zona oeste do Rio), a declaração mais infeliz ainda sobre os sambistas que apoiaram publicamente Eduardo Paes (que, segundo o candidato do PV, "foram atraídos por uma feijoada"), as imagens muito centradas na zona sul em seus programas, os artistas idem, uma postura pouco incisiva em denunciar os golpes baixos do adversário, entre outros.
Esses erros têm a ver, em parte, com seus próprios méritos. A declaração sobre a vereadora Lucinha é, numa dimensão conceitual mais profunda, desprovida de qualquer preconceito: Gabeira empregou a palavra "suburbana" no sentido de provinciana, limitada, excessivamente local e conjuntural, e não como um preconceito contra a origem de alguém. Da mesma forma, ao falar que os tais sambistas foram atraídos por uma feijoada ele certamente tinha em mente o papel cúmplice da vítima simbólica no populismo brasileiro: a definição do populismo é precisamente a relação não-institucional, não-legal, portanto não-republicana entre o dono do poder e o "povo". Trocando em miúdos, trata-se do político que oferece cesta-básica em troca de votos, pessoalizando a política ao invés de universalizá-la. Os cidadãos pobres que aceitam esse jogo comportam-se exatamente como quem aceita votar em alguém por causa de uma feijoada, e era a esse mecanismo histórico que Gabeira, no fundo, aludia. Não há como comprovar que os sambistas em questão apoiavam Paes por motivos de ordem pessoalizante, daí a declaração de Gabeira ter sido mesmo infeliz e até leviana, mas ela, num nível mais profundo, tocava numa questão fundamental.
Com efeito, a candidatura de Gabeira tinha sua força maior numa dimensão simbólica (centrada na sólida afirmação dos valores republicanos, eles mesmos simbólicos e abstratos por definição) que, por sua vez, exige do eleitorado uma alta capacidade de abstração. Não é por acaso, obviamente, que a imensa maioria de seus eleitores é dotada de maiores níveis de instrução. A essa força simbólica, o candidato adversário respondia com uma retórica concreta, palpável, de ação e números, supostamente esvaziada de caráter ideológico. O embate se estabeleceu entre esses pólos, e Gabeira errou decisivamente ao fornecer munição para que seu adversário, valendo-se dos golpes baixos da política tradicional, transformasse seu republicanismo em elitismo, sua sofisticação intelectual em preconceito. No meu entender, esse erro determinou sua derrota.
Mas, assim como sua candidatura transcendia, simbolicamente, seu tempo e lugar efetivos, sua derrota também transcende seu resultado efetivo. À pergunta de Fernando Molica, com que iniciei esse arrazoado, eu responderia então o seguinte: a derrota de Gabeira não significa a vitória do axioma pernicioso acima referido, mas, ao contrário, a prova de que é possível desmenti-lo. Pois Gabeira não perdeu porque desobedeceu o axioma, mas porque errou em detalhes de campanha. Detalhes que, numa contenda acirrada, acabaram por fazer a diferença. Quando surgirá uma outra figura política com tamanha estatura ética e vontade política para enfrentar tudo isso, aí são outros quinhentos (espero que não quinhentos anos), mas, tal como se deu, a derrota reacende a esperança no momento mesmo que a apagou.
Francisco Bosco
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Caro Cícero,
ResponderExcluirConcordo com a reflexão do Francisco. Assisti à campanha sobretudo do segundo turno, e percebi nessa audiência a preocupação extremamente positiva de se implementar uma nova linguagem de campanha na publicidade. Há um gesto de linguagem que julguei muito interessante como avanço da reflexão política; um gesto, diga-se de passagem, em consonância com a própria campanha do TRE - a valorização da importância do voto na consciência do eleitor. Gabeira, à sua maneira, fez a campanha da campanha limpa, o que, a meu ver, significa o amadurecimento do modo de se fazer política que se evidencia no Rio de Janeiro. Ao menos é o que se pode concluir considerando sua surpreendente chegada ao segundo turno enfrentando um mar de panfletos distribuídos e bandeirolas empunhadas por uma multidão ambígua entre militantes convictos e, quantas vezes, anônimos.
E um dos pontos que achei mais alto nesse debate foi o tema de como se deseja conceber a cidade do Rio: a campanha de Gabeira lança a bandeira do cosmopolitismo do Rio como há muito não se vê nessa cidade não só favelizada, bem como condominizada (não resisti ao neologismo para dar nome a esse duplo da favelização que, sutilmente ideológico, também assola a cidade com sua especulação, força e conivência) que só tinha as pretensões de ter um bom síndico (quem dera esse fosse Maia, o Tim evidentemente, e não o César, o professor de Paes e peso morto nas costas do Gabeira...). Concordo com as palavras de Francisco, portanto, no quanto a esperança possa derivar desse amadurecimento do debate político no Rio de Janeiro e de ele ter sido proporcionado por uma expressiva votação que, essa sim, parece ter transcendido a divisão sul-norte, cosmopolita-suburbano, tão insistente na campanha adversária.
No entanto, atribuo ainda a derrota (se é que podemos considerar uma derrota um candidato quase empatar as eleições no Rio ocupando os últimos lugares nas estatísticas do primeiro turno... – a meu ver, a vitória profilática do Rio se deu no primeiro turno, tanto pela sua recusa a um candidato quanto pela sua aceitação de outro) ao peso das alianças que se mobilizaram em torno de Gabeira. A onda de Gabeira parecia ter consciência de que essas forças que o apoiaram poderiam ser sua fragilidade e, de certo modo, muitos que se levaram não quiseram enxergá-la. Mas, elas de certo modo se nutriram dessa invisibilidade sob a eminência parda que paira sob a imagem de Gabeira. A campanha de Gabeira quis transcender a polarização política entre PT e PSDB (da qual o PMDB e DEM se aproveitam, diga-se de passagem, bem como tantas outras siglas que mal sabemos soletrar...): de certo modo transcendeu, com sua simpatia, com sua linguagem, com sua inteligência; no entanto, essa polaridade que se deu em todo o segundo turno nacional se fez valer aqui no Rio: talvez a “derrota” de Gabeira seja o sintoma mais evidente dessa polarização do tabuleiro político das próximas eleições presidenciais. Só mesmo no Rio, para o PV ser o pivô de tantas siglas e simpatias! Gostei da comemoração do Minc!
( No engarrafamento:
- Meu primo foi eleito.
- Que bom! Qual partido?
- Sei lá qual é a sigla dessa vez. )
Abraços para você e para Francisco.
Marcelo Diniz
Prezado Antônio Cícero,
ResponderExcluirAcho muito difícil identificar erros e acertos numa derrota por 55.000 votos num total de mais ou menos 3.300.000 eleitores, pois a diferença foi 2/3 de um Maracanã.
Mas o Gabeira sai da eleição como o grande candidato do Rio pra o Senado.
Um abraço,
JR.
Antonio,
ResponderExcluirComo costuma acontecer, o Chico escreve algo que eu penso mas não sei expressar.
Só não devemos esquecer que Gabeira está bem vivo, e que pode ainda disputar outras eleições. Também tenho certeza de que outros políticos tentarão repetir o feito da "onda verde", e perceberão que a defesa dos valores republicanos é sim, importante para o povo brasileiro.
abraço,
Lucas
observador,
ResponderExcluirpouco ainda se sabe a respeito das conseqüências da não eleição de gabeira (não digo derrota, veja: gabeira chegou a um lugar nunca antes visitado por alguém que carrega em sua história atitudes julgadas polêmicas para uma sociedade reconhecidamente preconceituosa como a nossa, então eu não posso dizer derrota, digo "não eleição"), imagino que daqui a uns 30 anos talvez se consiga enxergar, pela distância, a dimensão do quanto revolucionária e bonita foi a campanha do candidato.
porém já dá para saber que muita coisa no comportamento de futuros candidatos a prefeitura da cidade do rio de janeiro vai ter que mudar radicalmente. com a campanha de gabeira o nível de exigência do eleitor carioca subiu e quanto a esta questão gabeira é um marco!
as considerações de Francisco Bosco estão bem ponderadas e a análise é minuciosa. gostei muito.
sigamos!
grande abraço!
Fiquei muito triste com a "derrota" do Gabeira, mas concordo com os pontos colocados por Francisco.
ResponderExcluirtb não creio q Gabeira tenha algum preconceito contra as pessoas do subúrbio carioca. o q acontece, é q pessoas com muito pouca instrução podem ser manipuladas com uma certa facilidade. O "povão" talvez não se identifique muito com as imagens de Gabeira posando na orla da zona sul. E tem o lance dos artistas: o Wagner Moura fez um papel de uma figura opressora para muitas pessoas, em "Tropa de Elite". Essas imagens ficam marcadas. Gabeira teve o apoio de artistas maravilhosos, mas não são imagens tão significativas para grande parte da população.
Mas não penso q a declaração em relação a Lucinha tenha influenciado negativamente.
Oi, Antônio,
ResponderExcluirO texto de Francisco Bosco resume bem uma forma de pensar que oxalá pudesse ser disseminada na mente dos eleitores. Historicamente nos deparamos sim com uma falta de sagacidade na análise de propostas e declarações de nossos candidatos. Ora, a coragem de Gabeira em enfrentar a mesmice dos discursos políticos contemporâneos, onde imperam a demagogia, o populismo e a hipocrisia, revelam a falta de hábito que temos em privilegiarmos a transparência política e a agudeza de espírito crítico com os quais Gabeira se utilizou para fundamentar sua campanha, em detrimento à demagogia, à hipocrisia e à falta de ideologia que assombram nossas vidas há tempos. Não estamos acostumados com isso? Espero que um dia possamos assumir que não se trata de costume, mas de uma clareza de consciência mais ampla e profunda que ultrapasse a superfície das coisas e que atinja o povo de modo que possamos refletir eticamente sobre a postura dos candidatos.
Falar em "erro" de campanha? sim, do ponto de vista colocado pelo Francisco, foi um "erro". O curioso é que não nos apercebemos que maior erro é acreditar, seja por uma feijoada, seja por qualquer outra promessa mascarada que nos são apresentadas, que Eduardo Paes ou Gilberto Kassab (aqui em São Paulo) possam efetivamente provar sua honradez em ações políticas democráticas e republicanas que visem mais do que a manutenção dos poderes instituídos, carentes de crítica e consistência.
Mais quatro anos danosos, provavelmente, nos esperam, tanto no Rio quanto em São Paulo... o meio que temos de aplacar esta falta de consciência seria por meio da Educação, desde o nível fundamental até o superior, numa reforma complexa e difícil de ser executada, e que no entanto faz-se necessária - um planejamento que integre todos os elementos que nos constituem como humanos, culminando numa consciência de si que só tem sentido na consciência do outro, seja um nosso vizinho, seja a coletividade social representada pela cidade, pelo Estado e pelo País.
Um sonho difícil de sonhar... sonhemos, porém.
abraços, meu belo.
"O que acontece, é que pessoas com muito pouca instrução podem ser manipuladas com uma certa facilidade."
ResponderExcluirAssim fica difícil de concordar com vocês. Tal nível de intolerancia democrática me deixa mais confortável com a derrota do Gabeira.
Caro anônimo,
ResponderExcluiras palavras que você pôs entre aspas não se encontram no texto que você comenta. Trata-se, portanto, de uma citação apócrifa. Desse jeito não se pode discutir.
salve Cícero
ResponderExcluirpode ser um erro admitir que a derrota se deveu a detalhes quando a vitória desde o início sempre pareceu improvável. depois da onda e com o segundo turno então parece que ficou muito claro quem queria ser prefeito e quem não fazia questão, então... os tempos são incertos, e deu o outro. gabeira nunca foi do executivo e isso não lhe concede uma vantagem, ao contrário, sobretudo em se tratando de eleição pra prefeito, pra cuidar do lixo da cidade. A presença incisiva no Congresso repetida na campanha de tv, com o dedo em riste contra o ex presidente da casa, pobre homem, cá entre nós, foi como "chutar cachorro morto"... é terrível, ninguém fala mas precisa ser avaliado melhor aquele episódio. Foi de um oportunismo político que não chamaremos de vil por conta da biografia do nosso Gabeira, mas não creio que mereça o destaque, como tem e teve. Aquilo ali não engrandece Gabeira nem a ninguém, meditemos. Qual foi o grande embate do nosso Gabeira no Congresso, contra que graúdo ele se levantou com dedo em riste? É evidente que aquele homem ali foi plantado, não era liderança de nada. Mas isso sim é detalhe. Imagino o que levou Gabeira no dia seguinte da derrota a rezar pro santo, seria agradecimento? Saiu mais forte e nem teve que sujar as mãos porque ser prefeito aqui não é nem será mole não, acaba com um César Maia e isso não é pouco não. Gabeira veio redimindo a participação dos artistas nas campanhas, sem os showmícios detestáveis. Veio relembrando as campanhas homéricas do PT que não ganhava, mas que deram gosto pela democracia. A luta política é por definição confrontação e historicamente beligerante ainda mais num ambiente tão contrastado como o nosso. Há que endurecer portanto, se for mesmo pra ganhar. Mas valeu, vamos ver o peso do fantasma no comportamento do vitorioso, queremos o Rio limpo.