30.7.08

Demétrio Magnoli: "Visita à 'terra dos negros'"

O seguinte artigo de Demétrio Magnoli foi publicado em O Estado de São Paulo, em 24 do corrente:


Visita à 'terra dos negros'


Milton Gonçalves encarna um personagem protagonista na novela do horário nobre da Rede Globo. É uma boa notícia para todos os que apreciam a arte do grande ator. Devia ser motivo de celebração pelos grupos do movimento negro que apontam, com razão, a persistência de uma regra racial oculta na seleção de elencos no Brasil. Mas eles não gostaram, pois o personagem de Milton Gonçalves é um político corrupto. O deputado estadual José Candido (PT-SP) acusou o ator de prestar um “desserviço” ao movimento negro, passando “uma má impressão do negro à população”. Se entendi direito, o corpo negro é imune à corrupção.

Numa entrevista a este jornal, o ator não se limitou a responder a Candido, mas ofereceu uma aula singela. Disse ele: “Algumas coisas mudaram na minha cabeça” depois de visitar a África: “Descobri que não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro. Descobri que não sou africano, sou brasileiro.” São descobertas incompreensíveis para os que nos governam.

Uma lei de 2003 tornou obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira e africana” nas escolas brasileiras. A determinação não se circunscreve a indicar uma temática, mas pretende orientar uma abordagem. Num parecer de março de 2004, destinado a esclarecer o espírito da lei, o Conselho Nacional de Educação afirma que o “fortalecimento de identidades e de direitos deve conduzir para o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Segundo a palavra impressa do Estado brasileiro, a humanidade se divide em raças e as crianças devem aprender que uma ponte racial liga os negros do Brasil a uma pátria ancestral africana.

“Não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro.” O ator está dizendo que a sua identidade principal emana da esfera política e tem como referência o conceito de cidadania, não o de raça. Os brasileiros, de todos os tons de pele, formam uma nação única, alicerçada sobre o contrato da igualdade perante a lei. A identidade brasileira constitui nossa identidade pública. No espaço privado, segundo opções pessoais, podemo-nos definir como negros, brancos, mestiços, gays ou corintianos.

“Não sou africano, sou brasileiro”. A segunda descoberta esclarece a primeira - e esclarece muito mais. A África está no Brasil, de mil maneiras, e há inúmeros bons motivos para se falar mais da África na escola. O melhor foi explicado pela antropóloga Yvonne Maggie, no seu O Medo do Feitiço: Relações entre Magia e Poder no Brasil (RJ, Arquivo Nacional, 1992). Analisando a perseguição judicial contra as religiões mediúnicas, Maggie comprova a hipótese de que a crença na magia afeta pessoas de todas as cores e classes sociais no Brasil. Isso forma uma ponte essencial entre nós e a África. Mas essa ponte também conecta todos os brasileiros e faz de nossa mestiçagem algo mais profundo que o intercâmbio de genes. Mesmo assim, não somos africanos.

O Brasil é o Novo Mundo, a África é o Velho Mundo. No Brasil, o que vale não é a ancestralidade, mas a posição e a renda. Na esperança de inventar uma Europa tropical, o Império do Brasil distribuiu títulos nobiliárquicos, mas tais signos da diferença circulavam como mercadorias especiais no bazar dos privilégios simbólicos. Na África, como em tantos lugares da Europa, a linhagem de sangue define posições e regula relações. Atrás de uma fachada política de Repúblicas, as sociedades africanas continuam a girar à volta de constelações de reis tradicionais e líderes ancestrais. Sob certos sentidos, não é o brasileiro, mas o europeu que está mais em casa na África.

“Não sou africano.” Ninguém é africano. África, no singular, é uma declaração de ignorância. As crianças dizem que algum lugar está na África, como se o continente fosse um país. Os europeus inventaram uma África singular para designar a “terra dos selvagens” e, mais tarde, a “terra dos negros”. Os intelectuais negros dos EUA e do Caribe que formularam a doutrina do pan-africanismo beberam no conceito racial europeu para desenhar no céu dos seus sonhos a África singular. No início do século 21, o Brasil oficial ainda não aprendeu que existem Áfricas incontáveis e pretende usar o nome do continente como metáfora para ensinar uma fábula racial às crianças.

O ministro da Educação, Fernando Haddad, prometeu apresentar em agosto um plano nacional para a implementação da lei de 2003. Leonor Franco de Araújo, coordenadora-geral de Diversidade do MEC, identificou dificuldades na aplicação da lei e as atribuiu ao fato de que os professores “não recebem essa formação durante a graduação”. Deixem-me contribuir com o esforço de Haddad e Leonor na formação dos professores, oferecendo-lhes duas pequenas citações. A primeira: “As raças, como as famílias, são organismos e ordenações de Deus; e o sentimento racial, tal como o sentimento familiar, é de origem divina. A extinção do sentimento racial é tão possível quanto a extinção do sentimento familiar. Na verdade, a raça é uma família.” A segunda: “A história do mundo é a história não de indivíduos, mas de grupos, não de nações, mas de raças.” Os autores, pela ordem, são Alexander Crummell (1819-1898) e W. E. B. Du Bois (1868-1963), americanos, negros, pais fundadores do pan-africanismo.

O diagnóstico de Leonor está correto, mas de um modo que ela não suspeita. Há muito a fazer no campo da formação de professores. Contudo, no caso, as dificuldades de aplicação da lei de ensino racial não derivam da ignorância teórica dos mestres, mas do seu saber prático, vivido e experimentado. Como Milton Gonçalves, os professores sentem-se brasileiros e aprenderam, bem antes da graduação, que existe “uma identidade humana universal”. Eles têm dificuldades em narrar a história segundo o paradigma racial. Eles resistem à diretiva de dividir a humanidade e seus alunos em raças. O MEC terá de se esforçar mais.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

12 comentários:

  1. Caro Antonio,

    Absolutamente preciso e necessário esse artigo. Não se pode utilizar a necessidade de proteção aos indíviduos (e o seu direito à identidade cultural que bem desejarem) como pretexto para impor identidade aos cidadãos desde a formação escolar. Não consigo imaginar algo que atente mais contra a liberdade e a democracia.
    O pior é que há nesses movimentos uma inversão de lógica em que a idéia do "ser humano universal" é entendida como discurso de opressão. Se isso fosse verdade, então seria impossível a não-opressão e só existiria uma escolha de partidos. Se as leis continuarem por esse caminho, em breve poderemos ser presos pelo crime de racismo ao afirmar em público que todos os seres humanos são iguais.
    De fato, já houve prisões de manifestantes contrários à implantação das cotas nas universidades.
    O que me penaliza, mas não com muita surpresa, é ver o governo do PT cedendo por vários lados aos autoritarismos das novas "vanguardas políticas". Substui-se a luta de classes pela luta de raças e continuamos vítimas do velho patrulhamento ideológico.

    um abraço,
    lucas

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  2. Vida, sexo
    Humano, cor
    Em cada esquina
    Na neblina, ou
    Debaixo do sol
    Espanhol, latino
    Estrangeiro, esquisito
    Aflito
    Portugês, Escocês
    Fluentes, afluentes
    O amor, o sorriso e a flor
    Da nossa gente.

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  3. Apesar de estar do lado de cá das águas (que nos unem) gostei muito de ler esta "matéria". Obrigada por o trazer aqui!
    :)

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  4. Caro Lucas,
    Concordo inteiramente com o que você diz.
    Abraço.

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  5. Humildemente eu só queria agradecer a publicação desse artigo em seu blog.
    É um ato importante e fundamental para impulsionar nossa reflexão.
    Parabéns pela escolha dos 'posts' e pelo seus Acontecimentos!
    Beijo e carinho,
    Lua

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  6. PREZADO ANTONIO CICERO,

    Leio muito rapidamente o texto postado aqui. Mas pelo que já vi do sociólogo, não me parece algo legal não. Sabe aquelas coisas freudianas de ato falho... Pois é! Não sei nem se é disso o que o sociólogo fala -- mas o problema de caracterizar está no outro. O pobre sente a sua necessidade, até diz que é pobre -- mas aí haveria uma diferença no seu conceito de pobreza comparado com o conceito do rico-burguês que o observa com todas as categorizações possíveis -- no que denota a estratificação social. E assim poderíamos dizer sobre tudo que tange o preconceito. Só para citar um exemplo: o pobre vê-se sem dinheiro apenas -- mas o rico o vê como periférico, burro, analfabeto, sujo, inferior etc. Estou dando o exemplo da pobreza, só para estabelecermos ´etwa denkbar´ acerca de tantas outras atitudes que permeiam sobretudo e notadamente ainda a nossa sociedade brasileira.
    grato
    wilson luques

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  7. Um aspecto extra e, do meu ponto de vista, grave desta questão – aqui analisada com lucidez pelo doutor Magnoli – é o fato de que os atuais detentores do poder estão fazendo da promoção do preconceito racional relativo ao que denominam genericamente “afrodescendentes” uma mercadoria eleitoral.
    De modo mais ou menos equivalente ao que, em essência, acontece com o maternalista programa de distribuição de renda denominado Bolsa Família.
    Aqui na Bahia – moro em Salvador – sente-se isso de forma tão contunde quanto maresia.
    Agradecido pelo acréscimo de conhecimento ao autor e a você, Antonio Cícero, pela oportuna publicação no seu espaço.

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  8. A cor da pele não importa.

    Importa a do sorriso, abrindo a porta.



    Seu cabelo, sua fé,

    seu guarda-roupa,

    pouco dizem.



    Reparo em tudo:

    vejo por dentro

    o pensamento,

    o coração...



    A cor da pele, não.



    Já o matiz da alma, é coisa muito preciosa.



    Estar atento ao homem branco

    ao homem preto

    à distinção.



    Não permitir espadas sobre a mesa,

    espinhos no colchão.



    Tudo que existe deveria ser irmão.

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  9. QUASE PROSA SOBRE NOSSA QUASE LIBERDADE


    O rebelde personifica o desejo

    humano, insuportavelmente humano,

    de viver em liberdade,

    sem admitir nada além de sua própria vontade.



    A escravidão foi um momento

    terrível, assustadoramente terrível,

    quando alguns homens foram

    perversamente

    destituídos de qualquer desejo.




    Não há como descrever quão horrível.

    Não há como saber o que se passou

    com eles, considerados

    uma espécie de sub-homens.



    Deus, ó Deus, onde estás quando não respondes?

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  10. O artigo é ótimo e trata de questão bastante importante e de difícil trato.
    Adoramos vir aqui.
    Beijocas, Rostinhos Bonitos.

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  11. observador,

    amém, ao importantíssimo artigo do Doutor Demétrio Magnoli,


    amém, ao comentário excelente de Lucas Nocolato!


    grande abraço,

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  12. muito bonito este texto, cicero!

    também temo essas políticas protecionistas... as coisas não se resolvem por "cotas" em bancos de escolas, se se pensa um sistema educacional de qualidade para todos. as melhorias do ensino devem surgir através de políticas voltadas para as instituições de base, o ensino fundamental, bem como para as universidades e para os cursos de pós-graduação. em suma, políticas que atendam a todos os estágios do ensino institucionalizado para, desse modo, atender à toda população. se assim o for, ganhamos todos. isso envolve aquela discussão que rolou aqui, no seu espaço, sobre identidade cultural: somos todos brasileiros, e isso independe de sermos brancos, pretos, azuis, amarelos, católicos, umbandistas, espíritas, vegetarianos, carnívoros de carteirinha, enfim, isso fica para a esfera privada, pra dentro de casa, como bem colocou demétrio magnoli.

    e a coisa mais doida é pensar que esta história de raça deveria estar superada, porque raça não existe, o conceito, cientificamente, foi extinto. enfim.

    acorda, brasil!

    adorei o artigo! nota 10!

    beijoca boa!

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